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21 de outubro de 2016

INTIMIDAÇÃO COMO ARGUMENTO

Quem conheceu a ascensão de Olavo de Carvalho nas redes sociais, turbinado pelos movimentos milenaristas que escolheram este neoconverso e compromissado militante como líder máximo, financiado por carros de som nas manifestações com o slogan Olavo Tem Razão, e denunciante implacável da imoralidade da juventude petista nas demonstrações públicas e eventos generalizados, ficou surpreso ao saber que a chamada direita liberal não foi capaz de dar resposta em tempo hábil à sua argumentação pateticamente anti-intelectual. Com o foco dirigido para a conspiração petista de destruição da sociedade, os liberais não foram capazes de segurar a avalanche de adesões ao olavismo, identificado como o salvador intelectual da brasilidade que, em frente ampla com os escombros do regime militar, se aglutinou na candidatura de Bolsonaro e na submissão de todo o pensamento político a seu comando.

Se a penetração de seu pensamento foi produto das redes sociais, a explicação para seu sucesso só pode ser concedida à psicologia social, que não vem ao caso para estas linhas. O importante é que suas ideias apareceram como uma revelação mística para as pessoas que nunca estudaram o Brasil fora da superficialidade cultural que nos caracteriza e que, através de um mundo de referências literárias desconhecido, se tornaram cativas de uma sabedoria capaz de destruir qualquer adversário pelo debate. Sua onipotência intelectual produzia temores em seus admiradores, e era cultivada como uma palavra sagrada, no qual qualquer deslize seria esmagado com a humilhação atroz do desafiante. Quem se atreveu a desafiar sua sabedoria imbatível foi atacado por um enxame de fanáticos com a beligerância de guardiões do templo sagrado do saber. Para combater a estupidez, lancei em primeira mão no Facebook do artifício do ad hominen, conseguindo reduzir a sanha insultante de seus militantes pela demonstração da técnica de combater uma pessoa no lugar de suas ideias. Arrefeceu para alguns, mas não foi suficiente. Para demonstrar que seu procedimento não era mais do que um truque de intimidação difundido pelos milhares de baba-ovos que o idolatram, publiquei o artigo de Ayn Rand abaixo: A INTIMIDAÇÃO COMO ARGUMENTO.

Em 1933, no ensaio intitulado “O triunfo da estupidez”, o filósofo Bertrand Russell escreveu: “O problema fundamental do mundo é que os estúpidos estão seguros de si mesmos e os inteligentes, cheios de dúvidas!” Poderia ter sido tomada como uma advertência séria, mas não foi e dificilmente o será enquanto o espírito crítico independente, o exame desapaixonado, o método empírico de examinar conteúdos e proposições, se chocar com o sectarismo de uma sociedade vertical em busca de ícones e símbolos para se redimir de sua inferioridade congênita.


Ayn Rand

(Julho de 1964)

Há um certo tipo de argumento que, de fato, não é um argumento, mas um meio de evitar debate e extorquir a concordância de um oponente com noções não discutidas. É um método de contornar a lógica por meio da pressão psicológica. Já que é particularmente predominante, na cultura de hoje, e o será mais, nos próximos meses, seria bom aprender a identificá-lo e a ficar prevenido contra ele.

Este método tem alguma semelhança com a falácia ad hominen, e vem da mesma raiz psicológica, mas é diferente, em essência. A falácia ad hominen consiste em tentar refutar um argumento pondo em dúvida o caráter de seu proponente. Exemplo: “O candidato X é imoral, portanto o seu argumento é falso”.

Mas o método da pressão psicológica consiste em ameaçar por em dúvida o caráter de um oponente por meio de seu argumento, pondo, assim, em dúvida, este, sem debate. Exemplo: “Somente os imorais podem não conseguir ver que o argumento do candidato X é falso”.

No primeiro caso, a imoralidade do candidato X (real ou inventada) é oferecida como prova da falsidade de seu argumento. No segundo caso, a falsidade do argumento é afirmada arbitrariamente e oferecida como prova de sua imoralidade.

Na selva epistemológica de hoje, este segundo método é usado mais frequentemente do que qualquer outro tipo de argumento irracional. Deve ser classificado como uma falácia lógica e pode ser designado como “O Argumento da Intimidação”.

A característica essencial do Argumento da Intimidação é o seu apelo à auto incerteza moral e sua confiança no medo, culpa ou ignorância da vítima. É usado na forma de um ultimato que exige que a vítima renuncie a uma suposta ideia, sem discussão, sob a ameaça de ser considerada indigna, do ponto de vista moral. O padrão é sempre o mesmo: “Somente aqueles que são nocivos (desonestos, desumanos, insensíveis, ignorantes, etc.) podem sustentar esta ideia”.

O exemplo clássico do Argumento da Intimidação é a história intitulada As Roupas Novas do Rei.

Nessa história, alguns charlatões vendem roupas inexistentes ao Rei, afirmando que a beleza incomum destas torna-as invisíveis para aqueles moralmente depravados de coração. Observe os fatores psicológicos envolvidos neste trabalho: os charlatões contam com a auto-incerteza do Rei; este não questiona a declaração daqueles, nem sua autoridade moral; rende-se de imediato, afirmando que certamente vê as roupas — negando, deste modo, a evidência de seus próprios olhos e invalidando sua própria consciência —, ao invés de enfrentar uma ameaça a sua precária autoestima. Sua distância da realidade pode ser medida pelo fato de preferir caminhar nu pela rua, exibindo suas roupas inexistentes ao povo — ao invés de arriscar-se a incorrer em condenação moral por dois vigaristas. O povo, movido pelo mesmo pânico psicológico, tenta exceder-se em exclamações ruidosas sobre o esplendor das roupas — até que uma criança grita que o Rei está nu.


Esse é o processo exato do funcionamento do Argumento da Intimidação, como está sendo explorado a nossa volta, atualmente.

Todos nós já ouvimos e ainda estamos ouvindo constantemente; “Apenas aqueles que carecem de instintos mais requintados, podem não conseguir aceitar a moralidade do altruísmo.” — “Apenas o ignorante pode não conseguir saber que a razão foi invalidada.” “Apenas os reacionários intimamente convictos podem defender o capitalismo.” — “Apenas os fomentadores de guerras podem opor-se às Nações Unidas.” — “Apenas a horda lunática ainda pode acreditar em liberdade.” — “Apenas os covardes podem não conseguir ver que a vida é um esgoto.” — “Apenas o superficial pode buscar a beleza, a felicidade, a conquista, os valores ou os heróis”.

Como um exemplo de um campo total de atividade baseado apenas no Argumento da Intimidação, dou-lhe a Arte Moderna — onde, para provar que realmente possuem a percepção especial dominada somente pela “elite” mística, os homens estão tentando ultrapassar uns aos outros em altas exclamações ao esplendor de algum pedaço rudimentar de tela (apenas manchada).

O Argumento da Intimidação domina de duas formas as discussões atuais. Em discursos e impressos, floresce na forma de longas, envolventes e elaboradas estruturas de palavrório ininteligível que transmite claramente uma ameaça moral. (“Apenas a pessoa de mente primitiva pode não conseguir perceber que a clareza é simplificação em demasia,”) Mas na experiência diária particular, ele surge de forma não-identificável, nas entrelinhas, na forma de sons inarticulados que exprimem implicações indeterminadas. Ele confia, não no que é dito, mas em como é dito — não no conteúdo, mas no tom de voz.

O tom é, geralmente, de incredulidade desdenhosa ou beligerante. “Certamente você não é um defensor do capitalismo, não é?” E se isto não intimidar a provável vítima — que responderá, apropriadamente: “Eu sou’ — o diálogo decorrente será mais ou menos assim: “Ah, você não pode ser! Não mesmo!” “Mesmo.” “Mas todos sabem que o capitalismo está fora de moda!” “Eu não.” “Ah, não!” “Já que eu não sei, você me diria, por favor, as razões para pensar que o capitalismo está fora de moda?” “Ah, não seja ridículo!” “Você me diria as razões?” “Bem, realmente, se você não sabe, provavelmente eu não poderia lhe dizer!” Tudo isso é acompanhado por sobrancelhas levantadas, olhares fixos arregalados, dar de ombros, grunhidos, risinhos e o arsenal completo de sinais não-verbais que dão indiretas funestas e comunicam vibrações emocionais de um único tipo: desaprovação. Se as vibrações falham, se os debatedores são desafiados, pode-se achar que estes não têm argumentos, evidências, provas, razões, nenhum motivo pra insistir — que sua agressividade barulhenta serve para esconder um vácuo — que o Argumento da Intimidação é uma confissão de impotência intelectual.

O arquétipo primordial deste Argumento é óbvio (e também as razões de seu apelo ao neomisticismo de nossa era): “Para aqueles que compreendem, nenhuma explicação é necessária; para aqueles que não compreendem, nenhuma é possível”.

A fonte psicológica deste Argumento é a metafísica social.

Um metafísico social é aquele que considera a consciência dos outros homens como superior à sua própria e aos fatos da realidade. Para um metafísico social, a avaliação moral que os outros fazem dele é um interesse primordial que substitui a verdade, os fatos, a razão, a lógica. A desaprovação de outros é tão destruidoramente apavorante para ele, que nada pode resistir ao impacto dentro de sua consciência; assim, negaria a evidencia de seus próprios olhos e invalidaria sua própria consciência pelo bem de qualquer sanção moral de um charlatão errante. Apenas um metafísico social poderia imaginar este absurdo de esperar ganhar um argumento intelectual insinuando: “Mas as pessoas não gostarão de você!”

No sentido estrito das palavras, um metafísico social não concebe seu Argumento em termos conscientes: ele “instintivamente” o encontra por introspecção — já que representa sua maneira psico-epistemológica de vida. Todos nós já encontramos o exasperante tipo de pessoa que não ouve o que se diz, mas sim as vibrações emocionais da voz, ansiosamente traduzindo-as em aprovação ou desaprovação, e assim respondendo de acordo. Este é um tipo de Argumentação da Intimidação auto-imposto, ao qual um metafísico social se rende na maioria de seus contatos humanos. E, assim, quando encontra um adversário, quando suas premissas são desafiadas, imediatamente recorre à arma que mais o aterroriza: a retirada de uma sanção moral.

Já que esse tipo de terror é desconhecido dos homens saudáveis psicologicamente, estes podem aceitar o Argumento da Intimidação precisamente por causa de sua inocência. Incapazes de compreender este motivo do Argumento ou acreditar que é simplesmente um blefe sem sentido, presumem que o seu usuário possui algum tipo de conhecimento ou razões para apoiar suas asserções aparentemente autoconfiantes e beligerantes; eles dão-lhe o beneficio da dúvida — e são deixados numa confusão desamparadamente desnorteante. É assim que os metafísicos sociais podem vitimar os jovens, os inocentes, os conscienciosos.

Isto é particularmente predominante nas salas de aula de faculdades. Muitos professores usam o Argumento da Intimidação para sufocar a opinião independente dos alunos, fugir das perguntas que não conseguem responder, desencorajar qualquer análise crítica de suas suposições arbitrárias ou qualquer divergência do status quo intelectual.

“Aristóteles? Meu caro amigo” — (suspiro cansado) “Se você tivesse lido o artigo do Professor Spiffkin” — (respeitosamente) “no exemplar de janeiro de 1912 da revista Intellect, o qual” —- (desdenhosamente) “obviamente você não leu, saberia” — (vagamente) “que Aristóteles foi desmentido”.

“Professor X?” (X no lugar do nome de um destacado teórico da economia de livre mercado) “Estaria você citando o Professor X? Ah, não, não mesmo!” — seguido por um sarcástico sorriso entredentes com intenção de transmitir que o Professor X já tinha sido completamente desacreditado. (Por quem? Sem resposta).

Estes professores são, frequentemente, ajudados pelo esquadrão dos inconvenientes “liberais” da sala de aula, que morrem de rir nos momentos apropriados.

Em nossa vida política, o Argumento da Intimidação é quase que o método exclusivo de discussão. Predominantemente, os debates políticos atuais consistem em dois tipos: tentativas de difamação e desculpas, ou intimidação e apaziguamento.[No Brasil dizemos "morde e assopra"]. O primeiro geralmente é (embora não exclusivamente) praticado pelos “liberais”; o segundo, pelos “conservadores”. Os campeões, a este respeito, são os republicanos “liberais”, que praticam ambos: o primeiro, para com os seus colegas republicanos “conservadores” — o segundo, para com os democratas.

Todas as tentativas de difamação são Argumentos da Intimidação: consistem em afirmações pejorativas sem qualquer evidência ou prova, oferecidas como um substituto destas, com o objetivo de atingir a covardia moral ou a credulidade irrefletida dos ouvintes.

O Argumento da Intimidação não é novo: tem sido usado em todas as épocas e culturas; raramente, porém, em tão larga escala como hoje. É usado mais cruelmente na política do que em qualquer outro campo de atividade, mas não é restrito àquela área. Penetra em nossa cultura inteira. É um sintoma de falência cultural. Como se resiste a este Argumento? Existe apenas uma arma contra ele: certeza moral.

Quando se entra numa batalha intelectual, importante ou não, pública ou privada, não se pode buscar, desejar ou esperar a aprovação do inimigo. Verdade ou falsidade deve ser a preocupação única de alguém e seu exclusivo critério de julgamento — não aprovação ou desaprovação de alguém; e, acima de tudo, não a aprovação daqueles cujos padrões são opostos aos que se tem.

Deixe-me enfatizar que o Argumento da intimidação não consiste em introduzir julgamento moral em questões intelectuais, mas em substituir o julgamento moral pelo argumento intelectual. Avaliações morais estão implícitas na maioria das questões intelectuais; não é simplesmente admissível, mas imperativo, expressar um julgamento moral quando e onde apropriado; suprimir este julgamento é um ato de covardia moral. Um julgamento moral, porém, sempre deve seguir e não preceder (ou substituir), as razões nas quais é baseado.

Quando se dá razões ao veredito de alguém, assume-se responsabilidade por ele e coloca-se a si mesmo à disposição para um julgamento objetivo: se as razões deste alguém são erradas ou falsas, sofrem-se as consequências. Mas condenar sem dar razões é um ato de irresponsabilidade, uma maneira de conduzir do tipo “bate e foge”, que é a essência do Argumento da Intimidação.

Observe que os homens que usam este Argumento são os que temem um ataque moral fundamentado, mais do que qualquer outro tipo de batalha — e quando encontram um adversário moralmente confiante, são os mais ruidosos ao protestar que a “moralização” deve ser mantida fora das discussões intelectuais. Mas discutir-se o nocivo de uma maneira que implique neutralidade, é sancioná-lo.

O Argumento da Intimidação ilustra por que é importante estar-se certo das próprias premissas e motivos morais. Ilustra o tipo de cilada intelectual que aguarda aqueles que se aventuram sem um conjunto de convicções completas, claras e consistentes, inteiramente integradas do início ao fim aos fundamentos — aqueles que precipitadamente saltam para a batalha, armados apenas com poucas noções casuais, flutuando na névoa do desconhecido, do não-identificado, do não-provado e sustentado apenas por seus sentimentos, esperanças e medos. O Argumento da Intimidação é o seu merecido destino. Em questões morais e intelectuais, não é suficiente estar-se certo: deve-se saber que se está certo.

O exemplo que mais ilustra a resposta adequada ao Argumento da Intimidação foi dado, na história americana, pelo homem que, rejeitando os padrões morais do inimigo com total certeza de sua própria retidão, disse:

“Se for traição, tire todas as vantagens que puder”.


19 de outubro de 2016

OS CONSTRUTORES DE MONUMENTOS

Ayn Rand

(Dezembro de 1962)

O que foi uma vez um pretenso ideal, é agora um esqueleto esfarrapado agitando-se como um espantalho ao vento, sobre todo o mundo; mas os homens carecem de coragem para dar uma olhada para cima e descobrir a caveira com seu sorriso malicioso exposto sob os trapos ensanguentados. Este esqueleto é o socialismo.

Há cinquenta anos atrás, deve ter havido alguma desculpa (embora sem justificativa) para a crença generalizada de que o socialismo é uma teoria política motivada pela benevolência e que aspira a conquista do bem-estar dos homens. Hoje, esta crença já não pode ser considerada como um erro inocente. O socialismo foi tentado em cada continente do globo. À luz de seus resultados, está na hora de se perguntar os motivos dos defensores do socialismo.

A característica essencial do socialismo é a negação dos direitos da propriedade individual; sob este sistema, o direito à propriedade (o direito de uso e controle) é outorgado à “sociedade como um todo”, isto é, coletivamente; a produção e a distribuição são controladas peio Estado, ou seja, pelo governo.

O socialismo pode ser estabelecido pela força, como na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas — ou por voto, como na Alemanha (Nacional Socialista) Nazista. O grau de socialização pode ser total, como na Rússia — ou parcial, como na Inglaterra. Teoricamente, as diferenças são superficiais; na prática são apenas uma questão de tempo. O princípio básico, em todos os casos, é o mesmo.

Os supostos objetivos do socialismo eram: abolição da pobreza, conquista da prosperidade geral, do progresso, da paz e da fraternidade humana. Os resultados têm sido um fracasso aterrorizante —- aterrorizante no caso da razão ser o bem-estar dos homens.

Ao invés de prosperidade, o socialismo trouxe a paralisia e/ou colapso econômico a cada país que o experimentou. O grau de socialização tem sido o grau do desastre. As consequências têm variado correspondentemente.

A Inglaterra, uma vez a nação mais livre e mais orgulhosa da Europa, foi reduzida ao status de uma potência de segunda classe e está perecendo lentamente de hemofilia, perdendo o melhor de seu sangue econômico: a classe média e os profissionais. Os homens capazes, competentes, produtivos e independentes estão partindo aos milhares, migrando para o Canadá ou Estados Unidos, na busca da liberdade. Estão fugindo do reino da mediocridade, desse desagradável lar para pobres de onde, tendo vendido seus direitos em troca de dentaduras grátis, os reclusos estão agora se queixando que preferem ser vermelhos do que mortos.

Em países mais completamente socializados, a fome foi o começo, a insígnia que anunciava o regime socialista — como na Rússia Soviética, na China Vermelha, em Cuba. Nestes países, o socialismo reduziu o povo a uma pobreza inexprimível de eras pré-industriais, à literal inanição, e manteve-os num nível estagnado de miséria.

Não, não é “apenas temporário”, como os apologistas do socialismo têm dito por meio século. Após quarenta e cinco anos de planejamento governamental, a Rússia ainda é incapaz de resolver o problema de alimentar sua população.

No que diz respeito à produtividade superior e à rapidez de progresso econômico, a pergunta de todas as comparações entre o capitalismo e o socialismo foi respondida de uma vez por todas — para qualquer pessoa honesta — pela presente diferença entre Berlim Ocidental e Oriental.

Ao invés de paz, o socialismo apresentou um novo tipo de insensatez horripilante, nas relações internacionais — a “guerra fria”, que é o estado de guerra crônica com períodos não declarados de paz entre invasões injustificadamente repentinas — com a Rússia apoderando-se de um terço do globo, com as tribos e nações socialistas nas gargantas uns dos outros, com a Índia socialista invadindo Goa, e a China comunista invadindo a Índia socialista.

Um sinal eloquente da corrupção moral de nossa era é a complacência insensível com a qual a maioria dos socialistas e seus simpatizantes, os “liberais”, consideram as atrocidades perpetradas nos países socialistas. É como aceitam o governo pelo terror como um meio de vida — enquanto posam como defensores da “fraternidade humana”. Na década de trinta deste século, protestaram contra as atrocidades da Alemanha Nazista. Mas, aparentemente, não foi uma questão de princípios, mas apenas o protesto de uma gangue rival lutando pelo mesmo território — porque não ouvimos mais suas vozes.

Em nome da “humanidade”, eles toleram e aceitam a abolição de toda liberdade e todos os direitos, a expropriação de toda a propriedade, execuções sem julgamento, câmaras de torturas, campos de trabalho escravo, a chacina em massa de incontáveis milhões na Rússia Soviética — e o horror sangrento de Berlim Oriental, incluindo os corpos crivados de balas de crianças que tentavam escapar.

Quando se observa, como num pesadelo, esforços desesperados feitos por centenas de milhares de pessoas lutando para fugir dos países socializados da Europa, para fugir das cercas de arame farpado, sob o fogo de metralhadoras — já não se pode acreditar que o socialismo, em qualquer de suas formas, é motivado pela benevolência e pelo desejo de alcançar o bem-estar dos homens.

Nenhum homem autenticamente benevolente poderia fugir ou ignorar tamanho horror em tão vasta escala.

O socialismo não é um movimento do povo. É um movimento de intelectuais, levado por eles para fora de suas torres sufocantes de marfim em direção a estes campos sangrentos da prática onde se unem com seus aliados e executores: os facínoras.


Qual é então o motivo destes intelectuais? Ânsia de poder. A ânsia de poder — como uma manifestação de desamparo, de auto-repugnância e de desejo pelo não-merecido.

O desejo pelo não-merecido tem dois aspectos: o não-merecido em matéria e o não-merecido em espírito. (Por “espírito” quero dizer: a consciência do homem.) Estes dois aspectos estão necessariamente interrelacionados, mas o desejo de um homem pode ser focalizado predominantemente em um ou em outro. O desejo pelo não-merecido em espírito é o mais destrutivo dos dois e o mais corrupto. É o desejo pela magnitude não-merecida, é expresso (mas não definido) pela escuridão nebulosa do termo “prestígio”.

Os caçadores de benefícios materiais não-merecidos são simplesmente parasitas financeiros, vagabundos, saqueadores ou criminosos, limitados demais em número e em inteligência para serem uma ameaça à civilização, até e a menos que sejam libertados e legalizados pelos caçadores da grandiosidade não-merecida.

A grandiosidade não-merecida é tão irreal, tão neurótica em conceito, que o infeliz que a procura não pode identificá-la: identificá-la é torná-la impossível. Ele precisa de slogans irracionais e indefiníveis do altruísmo e do coletivismo para dar uma forma semi-plausível ao seu impulso anônimo e ancorá-lo na realidade — para sustentar sua própria auto-decepção mais do que enganar suas vítimas. “O público”, “o interesse público”, “o serviço ao público” são os meios, as ferramentas, os pêndulos oscilantes da auto-hipnose daquele que vive a ânsia do poder.

Dado que não existe a entidade “o público”; dado que o público é simplesmente um número de indivíduos, qualquer pretensão ou conflito implícito entre “interesse público” e interesses privados significa que os interesses de alguns homens devem ser sacrificados aos interesses e desejos de outros. Já que o conceito é tão convenientemente indefinível, seu uso repousa apenas em qualquer habilidade das supostas gangues para declarar que “o público,c’est moi” — e sustentar a pretensão a ponta de faca.

Nenhuma pretensão desse tipo foi ou pôde alguma vez ser mantida sem ajuda de uma arma — isto é, sem força física. Mas, por outro lado, sem esta pretensão, os pistoleiros permaneceriam no lugar a que pertencem: no submundo, e não subiriam aos conselhos de estado para dirigir os destinos das nações.

Há duas maneiras de reclamar que “o público, c’est moi”: uma é praticada pelo parasita moral bruto que clama por distribuições governamentais em nome de uma necessidade “pública” e embolsa o que não mereceu; a outra é praticada por seu líder, o parasita espiritual que tira sua ilusão de “grandiosidade” — como um receptador acolhendo produtos roubados — do poder para dispor do que não mereceu e da visão mística de si mesmo como a voz encarnada “do público”.

Dos dois, o parasita material é o psicologicamente mais saudável e mais próximo da realidade; pelo menos, come ou veste seu saque. Porém, a única fonte de satisfação aberta ao parasita espiritual, seu único meio de ganhar “prestígio” (além de dar ordens e espalhar terror), é a mais supérflua, inútil e sem sentido de todas as atividades: a construção de monumentos públicos.

A grandiosidade é alcançada pelo esforço produtivo da mente de um homem na busca de objetivos racionais claramente definidos. Mas uma ilusão de grandeza pode ser realizada apenas pela mutável e indefinível quimera de um monumento público — apresentado como um presente generoso às vítimas cujo trabalho forçado e dinheiro extorquido pagaram-no — dedicado ao serviço de todos e de ninguém, pertencente a todos e a ninguém, admirado por todos e aproveitado por ninguém.

Esta é a única maneira que os dirigentes têm de aplacar sua obsessão: “prestígio”. Prestígio — aos olhos de quem? De ninguém. Aos olhos de suas vítimas torturadas, dos mendigos nas ruas de seu remado, dos aduladores de sua corte, das tribos estrangeiras e seus dirigentes. Foi para impressionar a todos estes olhos — os olhos de todos e de ninguém — que o sangue de gerações de súditos foi derramado e gasto.

Pode-se ver, em certos filmes bíblicos, uma imagem gráfica do significado da construção de um monumento público: a construção das pirâmides. Hordas de homens famintos, esfarrapados e emagrecidos fazendo um último esforço com seus músculos insuficientes à tarefa desumana de puxar as cordas que arrastam enormes pedaços de pedra, esforçando-se como bestas de carga torturadas sob as chicotadas de feitores, desfalecendo no trabalho e morrendo nas areias do deserto — para que um faraó morto possa descansar numa estrutura imponentemente sem sentido e, deste modo, ganhar o “prestígio” eterno aos olhos das futuras gerações por nascerem.

Templos e palácios são os únicos monumentos deixados pelas civilizações primitivas do gênero humano. Foram criados pelos mesmos meios e ao mesmo preço — um preço não justificado pelo fato de que os povos primitivos indubitavelmente acreditavam, enquanto morriam de fome e exaustão, que o “prestígio” de sua tribo, seus dirigentes e seus deuses era, de alguma maneira, de valor para eles.

Roma caiu, falida por tributos e controles do Estado, enquanto seus imperadores estavam construindo coliseus, Luís XIV da França tributou seu povo até o estado de indigência, enquanto construía o Palácio de Versalhes para que monarcas seus contemporâneos o invejassem e para os turistas modernos visitarem. O metrô revestido de mármore em Moscou, construído pelo trabalho “voluntário” e não-pago de trabalhadores russos, incluindo mulheres, é um monumento público, assim como o é o luxo similar das recepções czaristas a caviar e champanha nas embaixadas soviéticas, necessárias — enquanto o povo fica na fila por rações insuficientes de comida — para "manter o prestígio da União Soviética".

A grande distinção dos Estados Unidos da América, até as últimas poucas décadas, foi a modéstia de seus monumentos públicos. Estes monumentos tal como existiam eram genuínos: não eram erigidos para “prestígio”, mas eram estruturas funcionais que acolhiam eventos de grande importância histórica. Se você já viu a austera simplicidade do Independence Hall, percebeu a diferença entre uma grandeza autêntica e as pirâmides de “espírito público” dos caçadores de prestígio.

Na América, o esforço humano e os recursos materiais não foram expropriados para a construção de monumentos e projetos públicos, mas gastos do progresso do bem-estar individual, pessoal e particular de cada cidadão. A magnitude da América repousa no fato de que seus monumentos reais não são públicos.

O horizonte de Nova Iorque é um monumento de um esplendor a que nenhuma pirâmide ou palácio se igualará ou aproximar-se-á. Porém os arranha-céus não foram construídos com fundos públicos, nem com um propósito público: foram construídos pela energia, iniciativa e riqueza dos indivíduos comuns para lucro pessoal. E, ao invés do empobrecimento do povo, estes arranha-céus, assim como subiram cada vez mais altos, continuaram aumentando o padrão de vida do povo — incluindo os habitantes das favelas, que levam uma vida de luxo, comparada à dos antigos escravos egípcios ou de um trabalhador socialista moderno.


Esta é a diferença — na teoria e na prática — entre o capitalismo e o socialismo.

É impossível calcular o sofrimento humano, a degradação, as privações e o horror que constituíram o pagamento de um único dos chamativos arranha-céus de Moscou, ou das fábricas soviéticas, ou minas ou barragens, ou qualquer parte de sua “industrialização” sustentada a sangue e saques. O que de fato sabemos, entretanto, é que quarenta e cinco anos é um longo tempo: é o tempo de duas gerações; sabemos, também, que, em nome de uma prometida abundância, duas gerações de seres humanos têm vivido e morrido em pobreza sub-humana; e sabemos, também, que os defensores atuais do socialismo não são desencorajados por um fato deste tipo.

Independentemente do motivo que eles possam dar, a benevolência é algo a que já há muito perderam o direito de reivindicar.

A ideologia da socialização (numa forma neofascista) está atualmente flutuando, por negligência, através do vácuo de nossa atmosfera cultural e intelectual. Observe quão frequentemente somos questionados por "sacrifícios" indefinidos para propósitos não-especificados. Observe quão frequentemente a administração presente está invocando “o interesse público”. Observe que proeminência a questão do prestígio internacional repentinamente adquiriu, e que políticos grotescamente suicidas são justificados por referências a questões de “prestígio”. Observe que durante a recente crise cubana — quando a questão factual dizia respeito a mísseis e guerra nucleares — nossos diplomatas e comentaristas acharam adequado pesar seriamente em coisas como o “prestígio”, os sentimentos pessoais e o “salvar as aparências” dos diversos dirigentes socialistas envolvidos.

Não há distinção entre os princípios, as políticas e os resultados práticos do socialismo — e daqueles de qualquer tirania histórica ou pré-histórica. O socialismo é simplesmente uma monarquia absolutista democrática — isto é, um sistema de absolutismo sem um chefe fixo, aberto ao roubo de poder por todos os que se aproximam, por qualquer alpinista implacável, oportunista, aventureiro, demagogo ou facínora.

Quando você julgar o socialismo, não se engane sobre a sua natureza. Lembre-se de que não há a tal dicotomia de “direitos humanos” versus “direito de propriedade”. Nenhum direito humano pode existir sem direito à propriedade. Já que os produtos materiais são produzidos pela mente e esforço de homens individuais, e são necessários para sustentar suas vidas, se o produtor não possui o resultado de seu esforço, não possui sua própria vida. Negar os direitos de propriedade significa transformar homens em propriedades possuídas pelo Estado. Quem quer que reivindique o “direito” a “redistribuir” a riqueza produzida por outros, estará reivindicando o “direito” de tratar os seres humanos como um bem móvel.

Quando você julgar a devastação global perpetrada pelo socialismo, o mar de sangue e os milhões de vítimas, lembre-se de que estas foram sacrificadas, não pelo “bem da humanidade”, nem por um “ideal nobre”, mas pela vaidade envenenada de algum brutamontes amedrontado ou alguém mediocremente pretensioso que almejou um manto de “grandeza” não-merecida — e que o monumento ao socialismo é uma pirâmide de fábricas públicas, teatros públicos e parques públicos, erigidos sobre a fundação de um cadáver humano, com a figura do dirigente posando no alto, batendo no peito e gritando sua justificativa pelo “prestígio” ao vazio sem estrelas abaixo dele.


10 de julho de 2015

A mente petista

Carlos U Pozzobon

“Se a única esperança do niilismo reside no pensamento de que milhões de escravos possam um dia constituir uma humanidade que seria livre para sempre, então a história não é mais do que um sonho desesperado. O pensamento histórico foi libertar o homem de uma submissão para um paraíso; mas esta libertação demandava dele a mais absoluta sujeição à evolução histórica. O homem se refugia na permanência do partido da mesma forma que ele antigamente se prostrava perante o altar. Por isso que a Era que ousa clamar ser a mais rebelde que jamais existiu apenas oferece uma opção entre os vários tipos de conformismo. A paixão real do século vinte é a servidão”. (Albert Camus, L'Homme Revolté, p. 234).


Existem três fatores interligados que compõem o universo da mente petista. Discorrer sobre eles se torna um imperativo para o entendimento do Brasil em sua crise mais profunda desde a tomada do poder em 2002 pelo PT.

  • Negativismo
  • Niilismo
  • Negação da riqueza

Como se pode explicar o somatório de fatores negativos que nos cercam? A vida social do homem se forma com o aprendizado para lidar com os fatos negativos que lhe ocorrem necessariamente como uma condição de estar no mundo . Os perigos do meio, a violência social ou da natureza, os maus tratos, a falta de solidariedade e de oportunidade, a rejeição social, as humilhações, as dificuldades impostas por serviços públicos degradados, a insensibilidade, e tantas pequenas coisas que nos levam cotidianamente a detestar os outros, vão se acumulando no espírito e servem de substrato para moldar uma psicologia específica.

Se em nossa biografia, o entendimento da sociedade implica em uma série infindável de fatos negativos que vão decantando um acumulado de decepções proporcionais às dificuldades do meio em que estamos inseridos, o repertório mais popular e abrangente de crítica social capaz de abraçar os fatos negativos se chama marxismo.


Marxismo como contraponto ao Negativismo

O marxismo oferece uma explicação para os males sociais e uma solução profética para a sua superação. Para que o negativismo não seja conduzido para um fim escatológico em que presente e futuro se confundam, torna-se imperativo que ele seja contrabalançado por uma visão otimista do futuro. Este é o segundo elemento importante oferecido pelo marxismo: um antídoto para o suicídio individual cultivado na certeza de uma esperança profética, de uma libertação vindoura.

No profetismo marxista, sabemos que os males do capitalismo serão superados pelo advento de uma nova sociedade que libertará os homens oprimidos pelo egoísmo e crueldade de seus semelhantes. Para que o negativismo não se transforme em um pessimismo autodestruidor, ele precisa ser equilibrado com um futuro promissor, e só o marxismo consegue oferecer esta esperança por ser construído como uma plataforma de ideias edificantes. Isto lhe confere um enorme poder de expansão e penetração.


Niilismo

No entendimento da sociedade capitalista, chama-se niilismo a combinação de negativismo associado ao futurismo doutrinário moralizador reivindicado para uma nova sociedade, com outros ingredientes, entre os quais o sectarismo e o dogmatismo. O longo percurso da prática política vai absorvendo muito mais elementos para que setores sociais possam repeti-los sempre com o mesmo padrão.

O niilismo não é um sentimento novo. Afonso Arinos de Melo Franco em "Um Estadista na República", fala sobre o meio intelectual de seu pai, Afrânio, ainda no final do Império:

“Quando ingressou na Faculdade de São Paulo, distantes estavam os tempos da boemia literária, quando Álvares de Azevedo simbolizava aquela espécie de niilismo juvenil, atitude de frenético desespero em que homens de vinte anos se compraziam nos ambientes byronianos, envenenando o corpo com álcool e a alma com furiosas abstrações sobre o amor e a morte.

A geração estudantina da abolição e da República estava mais interessada pelo desabamento de velhos edifícios jurídicos e sociais e pela construção dos novos, que os deviam substituir. Naturalmente que tinham também os seus boêmios literários, como Bilac ou Raimundo Correia. Mas mesmo neles a boemia tomava um aspecto diferente, ligava-se ardorosamente às lutas do tempo, à vida real que em volta fervilhava.

Quando esta vida real apresenta interesse afetivo e dramático, como no tempo deles e no nosso, os melhores espíritos são atraídos para ela. O pélago dos dramas subjetivos, das especulações abstratas, dos sofrimentos morais gerados pelos movimentos espontâneos da alma, e não pela ação do mundo exterior, são consequências dos períodos de estabilidade social e política, de cristalização conservadora.

No advento da República os estudantes eram espíritos mais políticos e jurídicos que literários. A tradição político-jurídica do Império, e principalmente a admirável influência pessoal do imperador, no sentido de basear tanto quanto possível o Estado brasileiro num governo de opinião, facilitavam o desenvolvimento da vocação daqueles rapazes sem grandes obstáculos nem reações.

A vida de Afrânio é um exemplo disto. Foi naturalmente, sem nunca lutar com o meio, que ele pôde expandir seus dotes de jurista político. Coisa que a larga fase da ditadura republicana vedou aos moços da geração de 1930.

A geração de estudantes de hoje (1944) foi também chamada ao realismo porque o Brasil atravessa novamente uma fase aguda de possibilidades e experiências. Mas, ao contrário da de Afrânio, suas inclinações naturais pela vida pública são entravadas pela mais formidável reação que conheceu o país. Isto poderá dar aos seus componentes um caráter violento e revolucionário, que não conheceram os bacharéis da República, cujo espírito construtivo não se afastou nunca da prudência e da moderação.

A tendência dos moços para a violência de ideias e atitudes depende da reação que seja oposta à evolução natural do seu pensamento. Neste ponto o exemplo do tzarismo russo é demonstrativo. A fúria da sua reação formou, mais que qualquer outra causa, a mocidade revolucionária da geração bolchevista.

Inutilmente se procuraria fenômeno semelhante na Inglaterra ou nos Estados Unidos contemporâneos. Eis por que nos parece pesada a responsabilidade que assume no Brasil o poder que, neste ano de 1944, procura conter a evolução natural do pensamento político dos moços. Talvez os transforme numa geração de violentos revolucionários”. (p. 174)

O revolucionarismo de que fala o autor surge com a própria dinâmica das mudanças impostas pela revolução industrial do primeiro capitalismo e seus desdobramentos sobre as comunidades humanas. As transformações criadas pelas estradas de ferro, telégrafo e bens de consumo industriais produziram uma mudança qualitativa do ser humano que continua até hoje.

O futuro se torna ocupado pelo evolucionismo fundado em descobertas que não podemos prever, mas que sabemos que mudarão a sociedade e, com isso, abrem as consciências para a aceitação de novas ideias, muitas das quais extremamente pessimistas sobre o presente e altamente positivas sobre o futuro, consolidando assim a consciência niilista.

O pessimismo tem suas razões de existir quando o próprio mundo nos fornece dados comparativos sobre as assimetrias de desenvolvimento entre as nações e a incapacidade das sociedades atrasadas de se colocarem em marcha rumo ao crescimento pelo deteriorado modelo político que abrigam e o extraordinário quadro de rapacidade social dos modelos estatais no consumo da poupança nacional.


Perseguição à riqueza

Um terceiro fator, no entanto, tem sua origem no mundo ibérico e sua particularidade guarda uma importância capital na constituição do niilismo latino-americano: trata-se da visão da riqueza como pertencente, de direito e moral, a entes coletivos que a distribuem para toda a sociedade. A riqueza pertencente aos entes coletivos seria o valor moral primitivo mais renitente em nossa formação social, no passado conhecidos como o Império, a Igreja, empresas públicas e uns poucos cidadãos delegados por ordem expressa do imperador.

Na moral medieval, a Igreja seria o instrumento social destinado a coroar o ascetismo e a virtude como valores fundamentais ao espírito humano, e a riqueza uma necessidade de todas as ordens religiosas para custear os encargos administrativos de sua imensa máquina de condução das almas nas comunidades humanas.

Por esta moral, a riqueza em mãos privadas corria o risco de subverter esses valores e conduzir os homens à dissipação, à luxúria, à ostentação petulante, ao comportamento arrogante e à soberba. Contendo-se a riqueza individual, acreditava-se controlar os vícios humanos.

Os evangelhos já pregavam a hostilidade aos ricos, e quando estes foram identificados com os judeus, o estigma permaneceu ao longo dos séculos. Para evitar a perda dos valores religiosos produzidos pela riqueza, criou-se a Inquisição na forma de tribunal pelo qual somente o socialismo real viria a utilizar os mesmos métodos de obtenção da "verdade".

No livro Inquisição e Cristãos Novos, Antonio José Saraiva nos dá uma ideia do anticapitalismo tricentenário que moldou a consciência brasileira:

“De todas as ocupações da vida, quase nenhuma é tão condenável – se a observarmos segundo as regras da religião – como a mais comum, quero dizer a das pessoas que trabalham para ganhar dinheiro quer pelo negócio quer por outros meios honestos. Os meios mais legítimos, humanamente falando, de enriquecer, são contrários não só ao espírito do Evangelho, mas também às interdições literais de Jesus Cristo e de seus apóstolos” (p. 207).

A importância do papel da riqueza na formação da mente petista tem sido negligenciada: no passado colonial, os excedentes da exploração açucareira eram postos em circulação através de empréstimos, mas a aplicação de juros para remunerar o capital era vista como o pecado da usura, e o combate e perseguição aos financistas judeus ou cristãos-novos era uma forma de saldar dívidas para os devedores e de apropriação de bens por parte da Igreja. A fúria contra o capital financeiro existe até hoje e encontra raízes profundas na mente petista provinda desse passado reacionário.

Antonio Paim, historiador que tentou decifrar a nossa história através dos valores que se opuseram ao capitalismo, mostra como a perseguição à riqueza privada foi capaz de colocar em declínio nossa superioridade mundial na produção de açúcar no século XVIII. Em seu livro, Momentos Decisivos da História do Brasil, ele traz à luz os valores de nosso passado obscuro:

“A ação da Contra-Reforma se completa pela chamada pregação dos moralistas do século XVIII, que se incumbem de difundir no seio da elite a mais rigorosa condenação da riqueza. E assim se completa a nossa opção pela pobreza, que irá consistir numa das mais sólidas tradições da cultura brasileira” (p. 69).

Por esse passado nada altruístico podemos ver como a Teologia da Libertação tem suas raízes na negação da riqueza produzida pelo empreendimento individual, e na defesa intransigente de todas as iniciativas que sejam mantenedoras da pobreza. A pobreza da população era conservada como relicário do exemplo da vida cristã autêntica e do desapego material, e sua similaridade com o socialismo real não poderia ser escondida, razão pela qual este segmento atrasado da Igreja tem ligações emocionais e identidades práticas com o socialismo.

Qualquer empreendimento suspeito de prosperidade logo arregimenta os doutrinadores da fé com os apóstolos do ateísmo em frente única. Nas eleições de 2010, o candidato do PSOL, Plínio de Arruda Sampaio, disse abertamente na TV que era contra a transposição do rio São Francisco porque a chegada de água no nordeste iria alterar as condições de vida da população miserável, tornando suas terras invejadas pelo agronegócio que logo iria comprá-las e tornar os miseráveis atuais em trabalhadores agrícolas. A igreja da teologia da libertação formou fileiras em sua causa com bispos liderando a mobilização contra a ameaça de abundância no nordeste.

Este terceiro fator – a noção de riqueza – se casou com os outros dois de forma a cristalizar os valores de nossa nacionalidade e sua enorme resistência à modernidade. Em todo o processo social, os valores nascem da herança cultural, e depois se internalizam nas preferências dos indivíduos, para mais tarde se materializarem nas suas escolhas.

A vitória eleitoral e a popularidade do PT na conquista do poder tinham os fatores combinados: crítica social impiedosa do passado, responsabilizando todos os males às pessoas identificadas como elites e não às instituições; grande esperança no futuro, atribuída aos poderes messiânicos do novo presidente e sua equipe, combinando crítica negativista com utopia voluntarista, e uma promessa de superar todos os males pela correção dos vícios do estado comandado por uma fração preparada com iniciativas qualificadas de “vontade política”, criando uma narrativa que iria construir a mais espetacular crise social de todos os tempos: a inversão dos valores éticos e morais como jamais se viu em momento algum no Brasil.

Como provar que a riqueza entendida como um ente coletivo que deve ser distribuída para a sociedade faz parte de nossos valores primitivos que vão formular as preferências e depois as escolhas individuais?

Basta se observar os fatores ligados ao imaginário do brasileiro no tocante a riqueza: quase todo o brasileiro acha que o país é extremamente rico, mas, ao mesmo tempo, extremamente explorado por grupos gananciosos que fazem a riqueza desaparecer para o exterior misteriosamente por contrabando ou por esperteza, sendo a causa de nossa miséria.

Neste imaginário botocudo, a riqueza é um bem estático, que se acomoda em arcas cheias de ouro e que poderia servir a todos e não aos malditos capitalistas que a exploram. A visão da riqueza como uma montanha dourada transparece nos discursos das pessoas magnetizadas pelos metais raros como o nióbio e o petróleo. Não se entende a riqueza como um bem em circulação, mas algo de que se deseja apoderar por um ato de pirataria política, isto é, obtenção de um privilégio de exploração por meio de monopólio. O monopólio é visto como representante da nacionalidade e da moral pública do bem comum, não como um obstáculo à geração de riqueza.

Nem mesmo a água é vista como um bem em circulação. Depois que se criou a Agência Nacional de Águas no ano 2000 por iniciativa do Congresso, os integrantes desta agência começaram a espalhar a ideia de que a água iria acabar no mundo todo e, especialmente no Brasil, onde a extração do subsolo deveria ser acompanhada do pagamento de um imposto para que o estado estivesse suficientemente preparado para intervir quando de sua escassez. Que alguém possa acreditar neste bizantinismo pode parecer estupefaciente, no entanto está no discurso de seus membros. E a crise hídrica em SP permitiu avaliar que na opinião de muita gente estava estampada a noção de que a água pode se esgotar para sempre na natureza.

Agindo apenas pelos instintos do nosso arcaísmo histórico, as pessoas acham melhor guardar uma riqueza para o futuro do que explorá-la no presente por encargo de empresas privadas, mesmo sabendo que quase a metade voltaria para o estado na forma de impostos: o horror ao lucro e o ódio ao empreendimento privado são mais fortes do que a obtenção de recursos através dos impostos e empregos gerados pela produção.

Quando se argumenta que a nossa riqueza petrolífera poderia gerar uma exportação diária de uns 5 milhões de barris, e um “government take” de uns 150 bilhões de dólares anuais, as pessoas começam a suar frio e o pânico se instala em suas mentes com a imagem de um país transformado em cemitério pela exaustão de seus tesouros naturais.

As novas ideias de perseguição da riqueza estão presentes na moral ecológica, onde se coloca o interesse de conservação da natureza em sua forma primitiva como mais importante e autêntica do que a utilização desta mesma natureza para o enriquecimento de particulares. O meio ambiente, o ambientalismo petista, é a fonte mais importante da geração de ideias perseguidoras da riqueza como uma manifestação reacionária do passado colonial.

Trata-se do princípio de que um particular não gera outro particular e que o coletivo não é formado pelo agregado de particulares, mas por outra instância que está acima e além dos seres individuais: o estado onipotente. Por esta mentalidade, somente o estado pode ser essa agregação orgânica de indivíduos, e este sentimento arcaico ensinado nas escolas foi o responsável pela propagação e triunfo do niilismo petista.


Estado dentro do Estado: um exemplo

Qual a prova que correlaciona a riqueza com os valores sociais anticapitalistas?

Considere o sistema tributário brasileiro. Seu funcionamento talvez explique por que somos um povo atrasado e sem vias de se modernizar. O sistema tributário brasileiro constitui uma ditadura dentro do país, exercido por uma elite profissional que se encarrega da arrecadação de recursos para as várias instâncias das administrações em caráter absolutista.

As decisões tributárias são feitas pelas comunidades de secretários estaduais, pelas secretarias municipais da fazenda e pelo complexo de entidades em volta da Receita Federal. Os tributos não são mediados pelo sistema legislativo e tampouco contidos pelo sistema judicial.

Portarias, normas, instruções e decretos são emitidos por estes órgãos apenas sob consenso da autoridade política executiva, e sua obediência tem caráter de lei. Os impostos, taxas e contribuições não são elimináveis a menos que se possa declará-los inconstitucionais, e, uma vez em vigor, o judiciário não tem autoridade para questioná-los.

Quem define os crimes tributários são os próprios órgãos tributários, a quem se deve apelar e pelo qual se é julgado. Um imposto que foi declarado inconstitucional, como a taxa de lixo em São Paulo, nunca foi devolvido aos contribuintes. E quem estava em débito permanece na dívida ativa do município.

Trata-se do mesmo procedimento da Inquisição e dos processos de Moscou: no sistema soviético os procuradores acusavam, julgavam e executavam a sentença. Não havia a mediação de organismos separados.

A questão tributária não se limita ao recolhimento de tributos. Ela vai muito além da mera arrecadação. Seu papel principal consiste na certificação, na autorização e licenciamento, todos enfeixados em uma lógica de pureza que se comprova com um troca-troca de certidões em que um órgão demanda uma informação de outro órgão pelo qual o requerente deve ser o intermediário da transação e para cuja finalidade não existe nenhuma obrigatoriedade cronológica do órgão fornecedor, que dispõe de liberdade para requisitar quaisquer recursos que achar pertinente à consecução do interesse privado. E, naturalmente, estes recursos terminam na realidade do mundo subdesenvolvido: a indústria da propina.

A tão conhecida burocracia brasileira mereceria prêmios para universitários sequiosos por diplomas de doutorado. Explicar as motivações por trás de procedimentos que não existem em países adiantados poderia fornecer um entendimento muito mais acurado de nossa natureza social do que as centenas de teses acadêmicas pífias que são produzidas anualmente em nossas universidades. Ao longo dos últimos cinquenta anos, até ministérios foram criados para desburocratizar o país, mas seu resultado tem sido muito pequeno e circunscrito à obtenção de documentos pessoais.

Esta incrustação do mundo colonial na organização da sociedade brasileira tem implicações tremendas na formação do país. Funciona como um tribunal de exceção para industriais, pequenos empreendedores, comerciantes e proprietários rurais.

Pelo sistema tributário podemos entender como um modelo político se molda em uma sociedade onde toda a carreira política implica em patrimonialismo e no costume de colocar os interesses do estado acima dos cidadãos no discurso, e o estado a serviço dos seus apropriadores na prática. Que importância tem a gastança irresponsável dentro das casas legislativas se existe uma estrutura estatal que tem poderes especiais para resolver estes excessos?

O poder discricionário de um órgão arrecadador de estado implica em assumir a responsabilidade pela manutenção do próprio estado, e os organismos fazendários são incumbidos de resolver déficits, obter empréstimos e negociar dívidas, desde que não tenham o poder de dissolução do que possam entender como além e excedente do próprio estado, que neste caso está a cargo do sistema político.

O poder tributário como entidade autônoma dentro do estado brasileiro forma um dos itens da cesta dos fatores que fazem nosso PIB representar apenas 1/5 quando comparado a um país que passou pelo desenvolvimento capitalista independente. A musculatura deste poder está contida dentro de uma burocracia que funciona como uma estrutura asfixiante de toda atividade produtiva legal.

Os órgãos tributários agem como tribunais amparados por uma complexa legislação que obriga as empresas a um contingente enorme de funcionários e advogados para manter a ordem na contabilidade, e, mesmo assim, são frequentemente chantageadas por quadrilhas de fiscais com a capacidade de dissolução do aparelho comercial ou industrial criado a duras penas pelos empreendedores privados.

Como estes 'raids' burocráticos sedimentados ao longo das décadas não passam para os livros de história, o saldo de destruição que se pode apurar consiste na verdade inescondível dos números da renda per capita. Nenhum país do mundo tem tantas micro, pequenas e médias empresas frustradas em poucos meses de vida: o empreendedor que inicia um negócio logo aprende que não está trabalhando para a sua atividade fim. Sua energia fica canalizada para ser um mandalete de órgãos burocráticos cujas exigências parecem ter sido inventadas para ser resolvidas nas propinas.

Existe uma relação entre a Inquisição e a Fiscalização que deveria ser explorada por nossos historiadores de ideias, ao estilo dos seguidores de Antonio Paim. Estas duas instâncias históricas da brasilidade estão sedimentadas na consciência niilista.

Como se pode desconfiar, trata-se de um sistema que não mantém relações com o capitalismo, já que não lhe serve de apoio, mas vive de sua própria rapacidade, e cuja estrutura se concilia com a dos regimes do socialismo real.

E, falando em socialismo real, considere este texto do século XVIII, escrito por D. Luis de Souza em carta ao rei de Portugal, em uma época ainda insuspeita de socialismo:

“... que os corregedores e juízes do crime fossem obrigados a dar ao presidente do paço e ao regedor das justiças todos os meses uma exata lista das pessoas que moram nos seus bairros, e de que vivem, e como vivem, das companhias que frequentam, e dos que de novo nele vêm habitar para não consentir neles nem ociosos, nem vagabundos, porque são os que matam e roubam por não serem conhecidos.

E como as mulheres públicas são pela maior parte a causa destes desatinos, não as sofrerão nas suas jurisdições, de maneira que o regedor das justiças lhes fará culpa das desordens, que nelas acontecerem. Da mesma sorte tomarão conhecimento dos pobres, para lhes não permitir que peçam esmola senão os que absolutamente, e de nenhuma sorte não puderem trabalhar. Isto se pratica em Holanda, onde não se vê um só pobre, nem às portas das igrejas, nem nas ruas, que embaraçam os que vão à missa, e os que por eles passam. A caridade é muito louvável, e o Evangelho a recomenda, mas não para que contribua para a ociosidade, de que resulta toda a espécie de vício”.

Controlar as pessoas em seus bairros passou do mundo medieval para o socialismo real incólume, e não espanta que esta moral seja defendida por marxistas e padres da teologia da libertação. E o que dizer da noção de bolsa família quando correlacionada com a caridade?


A crença no estado salvador

A mente petista, sendo herdeira dessas tradições reacionárias, ainda precisa ser nutrida de novos elementos para se cristalizar em seu niilismo devastador da razão. O outro elemento consiste na forma de entendimento do estado como uma crença de que é a única estrutura social pela qual todos os problemas humanos podem ser resolvidos. Basta apenas que ele se molde de maneira a realizá-las. Se o estado deixar de ser apropriado pela classe dominante e se transformar em prestador de serviços para os despossuídos, a sociedade vai se curar de todos os seus males. E toda a atividade política se reduz à luta da pureza dos representantes estatais contra a impureza dos agentes sociais privados.

Esta foi a base moral do medievalismo, e, no entanto, está vivíssima na esquerda brasileira. Basta lermos os jornais diariamente para acompanhar o desfile de transgressões efetuadas contra as normas estabelecidas pelo estado condutor. Existem épocas em que o gosto popular se especializa em difamar a classe política, mas o produto que elabora, as normas e leis, são vistas como algo sagrado a que se deve obediência e respeito, nunca faltando uma dose de hostilidade moral a todos os seus transgressores.

O estado tem sido o aporte por onde se realiza o patrimonialismo e a carreira mais segura para ascensão social em um país assoberbado por crises periódicas. Na medida em que o petismo se transforma em ideologia do estado, ele tem o papel de difundir para a sociedade uma narrativa moral idealizada na questão dos direitos humanos, nas relações trabalhistas e nas obrigações sociais que são conduzidas de forma Inquisitória pela responsabilização solidária de todas as empresas privadas no ciclo de produção.

Tais valores contaminaram a ciência jurídica, onde diariamente se veem exemplos destas aberrações: um fabricante doméstico de camisas que tenha irregularidades em suas relações trabalhistas e tributárias, arrasta para o representante e distribuidor da marca o peso de sua culpabilidade.

A combinação de niilismo e estatismo tem mais efeitos arrasadores. A consciência petista funciona como construtora de narrativas apropriadas ao uso das circunstâncias, e recusa toda e qualquer experiência prática ou ponderação fora de sua lógica artificial. E quanto maior se torna a ruptura entre as evidências da realidade e os argumentos de sua narrativa, mais entorpecedores se tornam os argumentos.

O desprezo para com o mérito é o caso mais eloquente. Já se disse no século XIX que os povos que desdenham do mérito são aqueles que nunca se sentiram ameaçados.

O altruísmo embevecido pela justiça social cria uma rede de solidariedade que não existe em pessoas com ideias independentes. Parece que a mente niilista exige demonstrações reiteradas de solidariedade para se sentir autenticada em cada conjuntura adversa. São as únicas pessoas que, quando criticadas pessoalmente, recorrem a abaixo-assinados de apoio e desagravo. Trata-se de um psiquismo coletivo do vitimismo.

Certas florações psicossociais são próprias do niilismo: a questão da imigração é uma delas. Todo o niilista acha natural que um país rico seja invadido por imigrantes, na maioria das vezes sem qualificação para o mercado tecnológico, pelo simples motivo de que a solidariedade humana se alia ao propósito de subversão da ordem social, uma vez que uma sociedade rica contendo uma parcela muito pequena de pobres, ao aumentar seu contingente de pobres invasores, cria uma base de apoio para grupos radicais.


Niilismo x Tecnologia

Um dos elementos mais comuns do niilismo consiste em ser completamente insensível à tecnologia. Parece que se trata de uma síndrome secundária do estatismo. Todos os anos temos melhores automóveis, celulares, fármacos, bens de consumo, etc, mas isso não os comove a achar que o mundo capitalista esteja melhorando.

Todos querem os benefícios, mas não as condições que organizam a sociedade tecnológica e fazem com que contingentes inteiros de profissionais se dediquem ao esforço tecnológico de fazer a vida melhor para a humanidade. Parece paradoxal que frente a todas as demonstrações de progresso seguidas pelos países asiáticos, com diferentes empuxos ideológicos, tal esforço não seja sequer discutido entre os integrantes de uma agremiação que controla o poder no Brasil há mais de 12 anos. A confissão de que são consciências preparadas apenas para parasitar o estado pode ser vista pela relação que eles mantêm com o embalo das revoluções tecnológicas sucessivas que vamos acumulando década após década.

Um indivíduo niilista é capaz de ser salvo da morte em um hospital por um medicamento israelense de última geração e na semana seguinte estar nas ruas defendendo uma manifestação do Hamas pretensamente representativa dos palestinos. Esta capacidade de ser incoerente se explica pela rejeição ao individualismo sem tutelas.

Os filósofos e demais humanistas niilistas não só mantêm um desdém para com a tecnologia, como acham que ela não existe para melhorar as práticas da vida produtiva. Ao contrário, elas são desenvolvidas para as empresas ganharem dinheiro, sendo, evidentemente, esta postura altamente condenável porque acreditam que o estado pode fazer a mesma coisa desinteressadamente. É um momento em que se fundem os valores medievais com o socialismo latino-americano.

Como o capitalismo produz e distribui itens que exigem dinheiro, a mente niilista aspira a obtenção de todos os bens pelo simples direito de cidadania. E este benefício não sendo possível para todos, só pode ser concedido pelo estado que pratique a discriminação pelo uso de um critério elitista, onde uma nomenklatura tenha estes benefícios pelo direito autoatribuído de representar a classe proletária, o que explica subsidiariamente a rapacidade de tais agremiações políticas quando no poder.

De um lado, o desprezo pela meritocracia da sociedade tecnológica capitalista: de outro, a entronização do mérito como submetido à posição do indivíduo na estrutura política do partido. A consolidação do estado como uma crença provém de uma distorção dos princípios básicos de economia social e da impotência frente à diversidade do mundo científico e tecnológico, quando não da inadequação ao conhecimento gerada nos primeiros anos de uma escola calamitosa que deformou as novas gerações para qualquer possibilidade de abstração intelectual. Por trás de um niilista existe um histórico de frustrações que somente uma utopia futurista pode compensar.


Sectarismo

O resultado de tudo isso na mente humana consiste na criação de um dos fenômenos mais notórios dos nossos tempos: o sectarismo político. O sectarismo se consolida na consciência como uma forma de pensar extremamente hostil às ideias que estão fora da bitola das pregações políticas e que pertencem em geral a adversários odiados.

O pensamento alheio é sentido com hostilidade, como um perigo que é preciso esconjurar com as narrativas de demonização preparadas para servir de alívio às próprias contradições e bode expiatório para ocultação dos fracassos. Não existem escrúpulos com a verdade. As pessoas são tomadas de prejulgamentos preparados por publicistas partidários e perdem a capacidade de investigação independente.

O sectarismo atua como uma aversão totalizante representada em um conjunto de ideias identificáveis com uma ideologia, em um partido político, ou em uma organização social.

O sectarismo funciona na articulação de narrativas adequadas ao enfrentamento das contradições. Por exemplo: como as notícias dos jornais são frequentemente contrárias às opiniões de um grupo político, este precisa desqualificá-las em bloco, sem que necessite responder a cada caso. Para isso, usa o argumento de que se trata de uma imprensa burguesa que atua em consonância com a classe dominante. Tudo se passa como se a burguesia possuísse um comitê central que deliberasse as “verdades” que passariam a circular pelos jornais sob seu domínio. Trata-se de uma projeção de seu próprio comportamento como grupo para o resto da sociedade.

A desqualificação generalizada dispensa a necessidade de enfrentar cada argumento em separado e, ao mesmo tempo, estreita os laços de coesão de um grupo com sua doutrina, onde os eventos são tratados como necessariamente enquadrados nas constantes reiterações de suas premissas: a luta de classes, os interesses das classes dominantes, a corrupção dos empresários, a indiferença do capitalismo pela pobreza, etc.


A crítica da sociedade como projeção de si mesmo

O descontentamento dos adversários com a corrupção praticada no governo petista como política de cooptação é respondido por seus porta-vozes como se esses críticos odiassem os pobres, ou se sentissem incomodados pela presença cada vez maior da população de baixa renda nos aeroportos do país.

De fato, existe uma relação freudiana de desejo com aquilo que se critica nos outros quando tais críticas ultrapassam as raias dos fatos e se estendem a uma confissão de ódio subjetivo. Quando lemos o livro A Nomenklatura de Michael Volensky verificamos que na antiga União Soviética, existiam salas VIPs para os dirigentes (de qualquer nível) do partido e da burocracia soviética não apenas em aeroportos, mas também em estações ferroviárias.

Os dirigentes eram recebidos com carros e motoristas para os conduzirem aos seus destinos. Não se misturavam com o povo, em nenhuma hipótese. Até para descer dos aviões havia o ritual de separação de dirigentes dos demais tripulantes. Além de lojas e supermercados particulares para as famílias. Mas, quando caíam em desgraça, eram frequentemente acusados de ter perdido a “ligação com as massas”.

“Em 1621 o frade inquisidor de Lisboa dizia que eram Judeus não só os que praticavam o judaísmo, mas também os que contrariavam o Santo Ofício. Esta declaração remete aos nossos tempos de ortodoxia em que se diz que são contrarrevolucionários todos os que se opõem ao governo revolucionário” (Saraiva, op. Cit).

O sectarismo permite entender como certos tipos de crítica emanam de uma consciência que psicopaticamente deseja usufruir daquilo que denuncia nos adversários como uma perversão moral. Um desejo secreto de luxúria se esconde por trás não apenas dos miseráveis de Joãozinho Trinta, mas também dos ideólogos da miséria como podemos constatar do crescimento dos bens materiais da elite petista.

E a necessidade de esconder o fracasso do presente consiste na obsessão de criticar o passado com todas as falsificações possíveis e inevitáveis para uma mente contaminada pela fé ardente no coletivismo.

Para provar que o espírito de colaboração é muito mais poderoso em países onde a cultura do individualismo é preponderante, bastaria levantar os dados do sucesso de empreendimentos criados com a adesão voluntária de participantes, como os milhares de softwares de código aberto, a Wikipédia e tantos outros. Não por acaso, a cultura do individualismo sempre foi prestigiada como sinônimo de liberdade, pois é dela que emana o empreendimento independente, cujo sucesso está marcado pelo apoio espontâneo e sem tutela de sua comunidade.

O fracasso do PT como partido e ideologia não se limita a um fenômeno isolado e pertencente a um grupo de ativistas desmiolados. Têm razão os críticos que o equiparam a um fenômeno social genuinamente nacional. O PT representa o conglomerado mais vasto de um modo de pensar calcado em valores arcaicos que estão em todas as instâncias de nossas instituições degradadas pela ignorância de querer mudar os outros sem mudar a si mesmas.

Não é necessário perguntar às professoras que fazem o magistério nas ruas se elas se acham responsáveis pelo declínio de nossos índices de educação para termos as respostas de nossas calamidades históricas das quais o petismo foi o mais colossal acolhedor, e que o Brasil carregará como mais uma herança maldita ao longo das décadas que virão.

A longa permanência no poder das ideias petistas serve de aferição crepuscular de uma cultura imersa em um obscurantismo cultivado nas cátedras.

Estaria o Brasil condenado a reviver uma nova expulsão dos jesuítas como fez Pombal em Portugal, na segunda metade do século XVIII, como única forma de permitir que as ideias iluministas transitem em nosso território?

Só o tempo dirá se nossa crise será capaz de criar a unidade necessária para enfrentar os maiores inimigos da inteligência e do saber: o professorado petista herdeiro de nosso passado jesuítico adaptado ao niilismo marxista.

Em todo caso, o legado do petismo não desaparecerá tão cedo de nossa sociedade. Ele persistirá enquanto o estado brasileiro conseguir se manter à margem da modernidade e impedir que a sociedade desabroche em todo o esplendor de seus talentos esbulhados.

O socialismo brasileiro tem suas raízes no mundo jesuítico e numa interpretação do cristianismo ainda coagulado pela moral medieval. Enquanto estes valores não desaparecerem, o populismo pode mudar de nome, mas sempre vai nos assombrar com sua tragédia de decomposição moral e colapso econômico.


21 de maio de 2014

Você é aquilo que lê

Carlos U Pozzobon

Desabafos sobre filosofalhas e literatolices dos tempos em que vivemos

Carlos U Pozzobon

Que todos conhecem a desgraceira de nossa vida política, não é preciso comentar. O que precisamos entender é a relação de uma sociedade de corte estatal com a cultura, em que o mérito sempre esteve seriamente comprometido com as cotas destinadas à proteção dos tolos, dos despojados de energia intelectual, dos fraquinhos, dos frívolos inseridos no processo de produção cultural ― marca indelével de um país contaminado pela corrupção intelectual, que consiste no espírito de rebanho em aderir à onda produzida pelas calamidades elevadas ao pedestal da glória ― causa maior e mais aviltante do que a corrupção moral em que chafurdamos.

Quando uma Academia de Letras homenageia Ronaldinho Gaúcho com uma medalha de mérito, quando universidades distribuem títulos de doutor honoris causa a um apedeuta, podemos entender por que tanta gente expressa suas preferências por autores com obras vazias de conteúdo estético e artístico.

São essas cotas de literatolice que transformam autores sem conteúdo em celebridades nacionais e internacionais, confundindo o leitor eventual que ainda não tem um gosto consolidado, ou que não dispõe das ferramentas de análise do crítico. Supostamente deve ser a principal razão para que a leitura seja afinal considerada um sofrimento pela maioria dos brasileiros, e por sua inclinação à brevidade do jornal e da revista em lugar do livro.
Escravo do “ouvir dizer”, da fama turbinada pelas editoras “do mercado” (espécie de “seguimento da deseducação geral do país”), e de colunas de revistas, o brasileiro lê com sofreguidão o que lhe dizem que é bom, e procura fugir como o diabo da cruz do próximo bestseller, até que, forçado pela necessidade de inserção social, volta a porejar o sacrifício da leitura, o que o impede de evoluir intelectualmente para apurar seu gosto para os refinamentos mais sutis das formas de expressão, para o deleite eriçante da beleza da linguagem, ou para a compreensão do sublime ou do paradoxal, do poético ou do assombro que só o escritor erudito e talentoso pode proporcionar.

Dependente do padrão alienígena, em uma sociedade cujos valores mais cultivados são a imitação do estrangeiro, cativo das opiniões de membros de instituições avacalhadas difundidas incansavelmente, o leitor comum nunca desenvolverá a sensibilidade para contestar aquilo que a maioria consagra como grande autor. E esta deformidade atravessa as décadas com a mesma constância e uniformidade de nossa imutável realidade social, acorrentada nas tradições desesperadoramente retrógradas.

Quem lê a avassaladora crítica de Sylvio Romero ao espírito limitado de José Veríssimo, em Zeverissimações Ineptas da Crítica – Repulsas e Desabafos, percebe claramente a diferença abissal entre o erudito e o convencional, e entende muito bem por que somos uma sociedade onde a mediocridade tem um lugar garantido no triunfo das corriolas paroquianas, da crítica sem profundidade, do aceito sem controvérsias, para vislumbrar a amorfia que causa a repulsa ao próprio gênio da brasilidade que as instituições têm por missão instigar, pois nem sequer sabem como fazê-lo. Nossa sociedade está tão aviltada intelectualmente que perdeu os sensores que emitem os sinais de alerta para a chegada do mais dotado, para a presença catalítica dos melhores. Vive o entorpecimento de seu próprio contexto de servidão institucional.


Primeiro problema:

O vírus do paternalismo que informa a opinião alheia é o mesmo que cria os gostos literários no Brasil, e estes gostos e tecnicalidades literárias exaustivamente explorados nos EUA, com sua sequência de fórmulas buriladas no jornalismo, e de truques de marketing para a venda massiva pelas casas editoriais, são hoje parte de um universo que idealizamos, mas que não tem um pingo de nossa realidade. Como gostar de nossa realidade se queremos uma literatura engajada na modernidade e nossos autores só fornecem novelas de cangaceiros, bandidos e marginais? Cansados da imutabilidade de nossa realidade social, da resistência intransponível à inserção na modernidade, buscamos no personagem do escritor alienígena as pontes de identidade com nosso mundo subjetivo, para escapar da massacrante realidade de nossa jecolândia ridícula.

Grande engano: os leitores do primeiro mundo mergulham nos escritores do século XIX com uma voracidade insaciável, provando que não é o personagem moderno que atrai, mas a captura da imaginação do leitor pelo mecanismo de marketing das casas editoriais. Portanto, o aspecto histórico é menos importante que a narrativa em si, e não justifica a escolha do padrão. Ninguém usa o padrão de seu próprio tempo como bitola para o julgamento de uma obra literária.


Segundo problema:

Não resta dúvida que a acumulação em proporções legionárias de autores no repertório das letras nacionais deixa o leitor desorientado sobre a quem seguir, especialmente numa fase de rompimento institucional, em que a arrogância passa despercebida no quadro geral da burrice imperante.

Alguém que tenha lido 1000 livros, acha-se no devido direito de recomendar seus leitores para a importância do que sabe, do que lhe parece o melhor de nossas letras e pensamento, e chamar a frivolidade existente de imbecilidade geral.

Mas se no quadro geral da cultura encontramos um conjunto de 4 a 5 mil livros igualmente importantes, e muito além da disponibilidade de leitura do comum dos mortais (pois estou falando apenas da cultura nacional), como afirmar que se conhece “tudo” de mais importante, se todo o dia encontramos autores e livros esquecidos ou desconhecidos de altíssimo conteúdo estético e moral?

Como resolver esta questão volumétrica? A saída parece ser a constante renovação de nossas listas. É por isso que um autor consagrado em uma década, torna-se esquecido logo depois. Sem o saber, ele teve que dar lugar a outro na lista do leitor por simples esgotamento humano. E isto já vem se sucedendo desde Gutemberg.


Terceiro problema:

Amadeu Amaral publicou um livro de crítica literária em 1924, chamado Elogio da Mediocridade, em que enfatizava a necessidade dos menores talentos para que surja um grande talento do meio das sombras: “toda literatura pressupõe uma multidão de medíocres, e não só de medíocres, senão também de inferiores, de rudimentares, de falhados e de decadentes. Tanto mais pujante e luminosa ela é, tanto mais grossa a multidão rasteira. Esse mato baixo sustenta a indispensável camada de húmus, resguarda e entretém a vida incipiente das árvores destinadas à máxima expansão. Foi esse mato que permitiu, na Inglaterra, o crescimento fabuloso de Shakespeare, a cuja volta trabalhava e produzia uma plêiade de dramaturgos fortes e uma turbamulta obscura de escribas irrequietos”.

A ideia de que os menores são absolutamente necessários para o aparecimento e robustez dos maiores foi algo inusitado até então. A questão adquire relevo quando os menores são tomados como maiores, quando as inversões são a própria natureza das instituições. Neste caso, o dano ao espírito pode ser irreversível na formação do gosto, ou ao menos retardar o descobrimento do gênio por muitos anos.

Se o próprio ato de ler é entregar o espírito ao autor, e esta entrega não é feita sem cobrança, só se prepara para a cobrança aquele que atravessou estilos, colecionou trechos, comparou autores e, através da sensibilidade adquirida, soube amadurecer seu entendimento e se tornar um emissor de opinião independente, isto é, um verdadeiro crítico. Com isso, toda a vez que entramos em uma biblioteca e percorremos suas prateleiras, ficamos com a nítida impressão de que um gesto ao acaso pode nos revelar um gênio adormecido no meio da multidão.


Quarto problema:

O crítico profissional tem que lidar com valores que não interessam ao leitor comum. Para Sylvio Romero, a análise da obra literária deveria tratar de sua “personalidade, força, movimento, precisão, elegância, colorido”. O crítico deveria conhecer a evolução dos gêneros, os fatores mesológicos (ecológicos), os fatores étnicos, históricos e psicológicos. Ao leitor comum, estes fatos pouco importam. Mas ele insiste que a crítica deve ter um olho na sociologia e outro na filosofia. Para o leitor doméstico classificar um livro como bom, este deve ser excelente em mais de um dos seguintes tópicos:

  1. O mainstream da obra. Em uma novela ou romance, o argumento principal da narrativa pode ser interessante, por novidadoso ou convencional, por já ter sido abordado por inúmeros autores. Neste caso, o escritor deve ser comparado com os que melhor se conhece em obra semelhante. Mas um livro não pode receber o qualificativo de bom só por isso. Um livro deve ser lembrado pela sua moldura. Por exemplo, em A Montanha Mágica, de Thomas Man, as discussões no sanatório dos Alpes Suíços sobre o espírito da época e a decomposição dos valores liberais que precede a Alemanha Nazista. O projeto de um livro pode ser um debate em torno de algumas ideias, a saga de uma família, um crime hediondo, etc. É o que dele vai ser lembrado em primeira instância.
  2. O tom geral que introduz um livro, um assunto, um capítulo, uma parte. A boa leitura tem esse clima de enlevo e sedução que aumenta à medida que vamos avançando. Ezra Pound disse que um “clássico é clássico não porque esteja conforme certas regras estruturais ou se ajuste a certas definições (das quais o autor, provavelmente jamais teve conhecimento). Ele é clássico devido a certa juventude eterna e irreprimível”. E adverte para as propriedades visuais e sonoras do texto. Poesia ou prosa evocam sons e imagens que podem ser entendidos com a seguinte terminologia: a fanopéia, isto é, a imagem produzida pelas palavras; a melopéia, os sons da linguagem, a sua musicalidade; e a logopéia, a combinação da imagem com o som.
  3. A qualidade da linguagem. A maior praga na vida do escritor é a linguagem jornalística, por se tratar da prosa convencional, do vocabulário restrito ao gosto do povo semiletrado, da forma corriqueira de se escrever. A pobreza com que as pessoas são diariamente bombardeadas pelas mídias tem reflexo na preferência do leitor por uma literatura despojada, em que por incapacidade intelectual o autor se esconde na falsa trincheira do classicismo, como se o clássico fosse o modo de escrever simples e direto. Examinando Dante, Shakespeare, Cervantes e Sterne ficamos bastante chocados com a inexistência do “simples e direto”. Pela linguagem se conhece o autor. Sem o exercício da linguagem, não se conheceria Guimarães Rosa, James Joyce e Falkner. Barrocos como Euclides da Cunha, Alberto Rangel e Lezama Lima não seriam publicados. Mas a linguagem, evidentemente, não é tudo. A narrativa precisa de um fio condutor, para não ser apenas experimentalismo sem trama, alegorias desossadas, como, aliás, esteve na moda no final do século passado.
  4. A qualidade das metáforas. Este é o terreno onde mais transparece a diferença entre um escritor de verdade e um convencional, destituído de conteúdo e de sensibilidade poética e humana. É um dos elementos que vai ficar na nossa memória como qualificação do escritor, mesmo depois de muitos anos. Eu nunca mais esqueci a metáfora de Lezama Lima para a modorra de uma tarde de domingo: “arena demasiada espesa en la clepsidra”. A metáfora fala por si mesma: nela está o universo posto em relação. Associada à metonímia, temos um dos ingredientes que mais nos encantam em qualquer livro. Boa parte do talento de escrever surge da propensão natural do escritor para a criação de metáforas que se encaixam perfeitamente na descrição e a que correntemente chamamos de inspiração.
  5. As grandes manifestações da alma humana na questão da ironia, da evocação do riso, na construção da sátira, do sarcasmo. Existem escritores famosíssimos que não têm o mínimo senso de humor. Outros, cujo humor é tão ralo, tão misterioso, que passa despercebido. Considere um autor celebrado como José Lins do Rego, e seu livro Fogo Morto. Trata-se de uma novela de cangaceiros, escravos e coronéis em que todos os personagens estão permanentemente zangados. Só há lugar para descontentamento, destempero, desejo de vingança, inveja e desentendimentos. Por todo o livro pervade o tom desesperador de uma sociedade desagregada em torno do caráter de seus personagens cruéis ou bobalhões. Não há uma linha de ironia, um parágrafo de humor, uma página burlesca. E o Brasil está cheio de clássicos carrancudos, de escritores sem traço de sátira, sem derivação ainda que fugaz para o jocoso, com uma seriedade de velório como se a literatura fosse a guardiã do espírito institucional do homem e não de seu mundo público, político e privado. Nada mais escandalizador na literatura do que a ausência de humor em uma época de liberticídio e de devassidão institucional. Eu não recomendaria Lins do Rego, a menos que fosse pelo conhecimento sociológico que sua obra oferece.
  6. O embasamento histórico, literário, filosófico, psicológico. O que distingue um autor de peso de um reles escrevinhador é a densidade psicológica dos diálogos, os cortes epistemológicos, a transversalidade do saber em que se move nas suas fontes. Um leitor erudito sente-se recompensado com a familiaridade do autor com seu mundo, e estes vínculos criam as simpatias. Para um leitor iniciante, ainda pouco familiarizado com a vida literária, isso pode ser a fonte de referências para prosseguir na satisfação de sua curiosidade intelectual. A melhor forma de se tornar culto é seguir as indicações daqueles escritores de que se gosta.

Quinto problema:

Uma grande obra literária precisa ser excelente em algumas das combinações acima, para não cair no lugar comum da escritura frívola e maçante da cultura de casquinha. A profusão de “romancezinhos” tem impedido o desenvolvimento do prazer estético em uma porção não desprezível de leitores. Associado ao vício das novelas de televisão, produz uma massa de consumidores infensos à cultura literária erudita, que ao fim termina repercutindo na imarcescível vulgaridade das instituições sociais onde inexiste o rigor, e onde o aplauso obsequioso se torna a moeda de troca corriqueira entre os pavões literários.

A má educação intelectual é reconhecida no leitor que “ouviu falar” e precisa fazer um esforço sobrenatural para conseguir chegar ao fim. De fato, algumas grandes obras são labirínticas e cansativas (Stern), mas existe uma diferença entre elas e o tédio provocado pela falta de interesse suscitado pela má educação, pois esta pode ser uma trajetória sem retorno para o indivíduo, que, despreparado, não poderá dizer com segurança por que um autor é melhor do que outro a não ser pela manifestação binária do gostei, não gostei.


Sexto problema:

Estes são os elementos que o leitor deve observar em um livro. Mas a moeda tem duas faces. Pode-se classificar a obra literária do ponto de vista do escritor. Ezra Pound classificava da seguinte forma:

  1. Inventores. Homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo.
  2. Mestres. Homens que combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores.
  3. Diluidores. Homens que vieram depois das duas primeiras espécies de escritor e não foram capazes de realizar tão bem o trabalho.
  4. Bons escritores sem qualidades salientes. Homens que tiveram a sorte de nascer numa época em que a literatura de seu país está em boa ordem, ou em que algum ramo particular, em que a arte de escrever é “saudável”.
  5. Beletristas. Homens que realmente não inventaram nada, mas que se especializaram em uma parte particular da arte de escrever, e que não podem ser considerados 'grandes homens' ou autores que tentaram dar uma representação completa da vida ou da sua época.
  6. Lançadores de modas. Enquanto o leitor não conhecer as duas primeiras categorias, será incapaz de 'distinguir as árvores da floresta'. Ele pode saber que 'gosta', ser um verdadeiro 'amante dos livros', com uma grande biblioteca de volumes magnificamente impressos, nas mais caras e vistosas encadernações, mas nunca será capaz de ordenar o seu conhecimento ou de apreciar o valor de um livro em relação a outros, e se sentirá ainda mais confuso e menos capaz de formular um juízo sobre um livro cujo autor está 'rompendo com as convenções' do que sobre um livro de oitenta ou cem anos atrás.
    Ele jamais compreenderá a razão pela qual um especialista se mostra irritado ao vê-lo exibir pomposamente uma opinião de segunda ou terceira mão a propósito dos méritos de seu mau ator favorito.
    Até que vocês tenham feito a sua própria vistoria e o seu próprio exame detalhado, convém acautelar-se e evitar aceitar opiniões:
    a) de homens que não tenham, eles mesmos, produzido obra importante;
    b) de homens que não assumiram o risco de publicar os resultados de sua inspeção pessoal, ainda que o tenham feito seriamente.”

Os inventores são completamente desconhecidos da mídia. Eles podem ser falados depois de alguns anos ou décadas, mas em nossa cultura são considerados malditos. Os mestres só aparecem a partir de algumas casualidades ou pelas vinculações do autor com o mundo literário. O mestre pode ser qualificado: mestre da sátira (O Brasil pelo Método Confuso, de Mendes Fradique); mestre da crítica (toda a crítica de Sylvio Romero), etc. Os diluidores são os mais aplaudidos porque movimentam a indústria editorial e são apresentados como geniais. Os bons escritores sem qualidades salientes são os norte-americanos em sua maioria, todos técnicos experimentados na mídia, e em geral publicando a maior parte dos livros disputados pelo público.

A principal qualidade, segundo Ezra Pound, para que um escritor viva para sempre é poder dispensar as escolas e faculdades. Ele não viveu para conhecer as possibilidades de associação de leitores como nos nossos dias, que são capazes de manter vivos autores de todos os tempos e línguas.


Sétimo problema:

Nossa disjunção institucional reflete-se diretamente no problema da qualidade das traduções. Se não fosse um punhado de abnegados, não teríamos avançado muito nesta arte. Em todas as épocas existiram grandes tradutores em pequena quantidade, e muitos livros mal traduzidos.

Os “traditores” são uma praga tão grande quanto a falsificação planejada, proposta e aprovada pelo Ministério da Cultura, de uma obra de Machado (O Alienista de 1882), e outra de José de Alencar (A Pata da Gazela), que recebeu a inacreditável importância de mais de um milhão de reais para vulgarizar as expressões e produzir 600 mil exemplares para ser distribuídos gratuitamente pelo Instituto Brasil Leitor.

Essas decrepitudes literárias afrontam a sociedade em seus foros mais impensáveis. E não se vê a Academia de Letras, nem a Biblioteca Nacional protestarem contra o insulto que se acaba de cometer. Em poucos anos, a corrente, a doxa, os ventos e trabuzanas da idiopopulice foram capazes de trazer e vingar sementes que não pertencem ao mundo ocidental: em todas as épocas históricas, os menos dotados sempre se elevaram ao pedestal dos mais dotados.

Em toda a grande civilização, o mérito sempre foi premiado e como tal reconhecido através de seus grandes feitos. Falhava a civilização que desprezava seus gênios. Com o PT no poder, e seu populismo rasteiro e demagógico, lenta e progressivamente os menos dotados passaram a dar o tom na vida social.

A música, o cinema, as artes em geral ficaram sob o abrigo de uma nova classe de funcionários repulsivos, ideologizados para transgredir intencionalmente todas as normas e preceitos da tradição e da cultura, produzindo uma inundação de tolices que, paradoxalmente, no dia em que nos livrarmos deste pesadelo, serão os exemplos mais dantescos de nossa decomposição social, o relicário vergonhoso de desatinos que se avolumaram como resultado de uma sociedade dividida e paralisada em sua capacidade de se regenerar.

Espero que a exaustão nos leve a um renascimento, tal como o mundo viveu em 1945. Somente então os que puderem olhar para trás poderão perceber tudo o que ficou registrado de filosofalhas e literatolices.