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26 de dezembro de 2024

A Perigosa Ligação Entre Cultura e Prepotência

Osman Lins

Ο fenômeno é bastante conhecido: certos países, com uma forte produção literária e artística, tendem a exportar as suas obras; outros, de produção mais escassa, tendem a consumir obras de fora. Diz Robert Escarpit que "mais vale uma literatura medíocre capaz de dialogar com o seu povo que uma 'boa' literatura surda à voz daqueles a quem fala e dos quais ela deve ser a expressão". (1) O mesmo autor, entretanto, adverte: "Se não se tomam precauções para manter sistematicamente ligações com o estrangeiro, devem-se temer as conseqüências da consangüineidade cultural". (2) E dá como exemplo desta última tendência a Inglaterra, com uma grande produção autônoma, mas pouco aberta às contribuições vindas de outros centros, o que induz à mencionada "consangüineidade cultural", expressão aliás muito feliz.

Robert Escarpit (autor estrangeiro, aqui invocado para discutirmos um problema cultural brasileiro) não fala por falar. Trata-se de um dos maiores estudiosos, no mundo, dos problemas do livro. Das citações acima, depreendemos que um país deve estimular e valorizar a sua literatura (e, naturalmente, todas as suas expressões artísticas, como a música, por exemplo); mas que deve estar aberto às obras vindas de fora. Tanto o ilhamento na própria cultura como o servilismo a culturas alienígenas redundam em empobrecimento.

Qual o desejável, então? Certo equilíbrio entre a contribuição local e a recebida de fora; certo discernimento na escolha (na escolha, digamos, dos livros a editar ou das músicas a gravar). Tal não acontece aqui, e em certos campos, como no dos enlatados de TV, a invasão é verdadeiramente arrasadora. O brasileiro, hoje, nasce e cresce recebendo pela televisão mensagens de segunda ordem, vindas principalmente dos Estados Unidos, todas — o que é pior — infiltradas de uma publicidade disfarçada (ou ostensiva) sobre aquele país.

Conclui-se, sem esforço e sem exagero, que, no Brasil, registram-se as duas falhas apontadas: a) há um excesso na importação de produtos culturais; b) falta discernimento na escolha, havendo uma preferência clara, da parte dos empresários e, em conseqüência, da parte do consumidor na TV, nos livros, na música por coisas de nível inferior, pelo lixo cultural da época.

Tudo isso é verdade, e é nocivo, precisando ser discutido e combatido, tendo em vista alterar para melhor um quadro tão mau. Discutido e combatido, eu disse. Não disse: proibido. Não disse: "É preciso que o governo corrija isto". Não disse: "Que venha uma lei para sanear nossa cultura". Não disse: "Deve-se taxar mais alto o produto estrangeiro". Não penso em qualquer medida repressiva, vinda do alto, para resolver com uma penada problemas culturais, sempre altamente complexos.

Estas notas vêm a propósito de um fenômeno que, ultimamente, toma corpo no Brasil. Sob a alegação de que a nossa cultura está ameaçada, há uma tendência oficial, já concretizada em atos e órgãos, no sentido de purificá-la, de nacionalizá-la. Ora, se acho que realmente há uma proliferação de produtos culturais ordinários importados, altamente perniciosa, não acho que ela possa ser debelada ou enfrentada com simples proibições ou obrigatoriedades. Isto seria considerar de um ponto de vista administrativo um problema cultural. Escolho, entretanto e a posição me parece não apenas correta, mas lógica, considerar os problemas culturais de um ponto de vista cultural.

Quer dizer: a integridade cultural de um povo faz-se através das ideias. As mudanças culturais duráveis se fazem através do debate, do confronto de opiniões. É perfeitamente possível, por exemplo, de um dia para o outro, só se permitir a publicação, no país, de livros brasileiros; é perfeitamente possível interditar totalmente a emissão, pelas estações de rádio, de música estrangeira; perfeitamente possível taxar de tal modo o disco e o livro estrangeiro que eles se tornem inacessíveis; perfeitamente viável impedir que as emissoras de TV introduzam os enlatados nas suas programações. Sim, não é impraticável, em nome da nossa integridade como povo, das nossas tradições e mesmo sob a alegação de combater o uso de drogas psicotrópicas como o fez, pela imprensa, o compositor e maestro Marlos Nobre, para quem a música estrangeira (conclusão estranha!) induziria a juventude brasileira ao consumo de entorpecentes —, transformar o país numa ilha cultural. Mas, em primeiro lugar, tal insulamento não seria de modo algum fecundo e desejável. Em segundo lugar, qual o valor de tais medidas, se não repousam verdadeiramente num processo de amadurecimento? Cessado o freio, voltaríamos, na melhor das hipóteses, à mesma situação de antes, sem qualquer evolução verdadeira. Um ser humano não muda e evolui sem que colabore com isto. Ninguém muda de fora para dentro. É necessário que alguém tome consciência do seu estado, convença-se da necessidade de mudança e pode ser que com a ajuda de outros empreenda-a. Nessas condições, uma mudança tem sentido. Se um homem, porém, é forçado a agir diferentemente, se uma força exterior o dobra, que houve na verdade? Desaparecendo a pressão, o indivíduo traz consigo os mesmos vícios.

Com os povos não é diferente. Necessário que os povos adquiram uma consciência nova, que tomem consciência do que lhes é nocivo, e, de dentro para fora, empreendam suas mudanças.

Isto, é evidente, não se faz da noite para o dia. Não será, sequer, o trabalho de uma só geração. Todos esses fenômenos são árduos e lentos, com idas e vindas, com avanços e recuos. Assim pensamos nós, que reverenciamos a cultura.

Difere, nosso pensamento, do que julgam os indivíduos penetrados da noção de autoridade. Estes, adeptos da força, estão convencidos de que, obrigando ou proibindo, mudam tudo: tanto os indivíduos como os países. Ora, espanta e faz medo que as pessoas ligadas à cultura e das quais, por isso mesmo, esperamos, diante de assuntos culturais, uma atitude cultural, venham engrossando as águas de correntes não culturais com os seus pronunciamentos e atitudes. Como se fossem portadoras de autoridade, e não portadoras de cultura.

O fato, mais ou menos repetido, merece a atenção de todas as pessoas em condições de refletir sobre ele. Apresenta uma característica hoje muito em uso; liga pedaços de verdade a coisas inaceitáveis. Enxerta-se alguma verdade no absurdo, de modo que este se apresenta como demonstrado e provado. E não é raro contrariando um axioma da velha Aritmética, o de que não podemos semear quantidades heterogêneas — misturar fatores disparatados. O mesmo compositor Marlos Nobre, nas declarações a que me referi, ao dizer que os nossos "hábitos de vida, maneira de falar, de dançar e de postura antitradicionais" estavam sendo destruídos pelo excesso de música estrangeira, alude a "uma forte retração do mercado de trabalho para os músicos brasileiros". Quando se sabe que não tem sentido misturar autonomia cultural com taxa de desemprego esta, sim, ligada a problemas administrativos.

Nossa cultura ressente-se de várias enfermidades e devemos lutar contra elas. Mas lutar através do debate, da discussão, de uma tomada de consciência, de uma mudança interior, lenta, mas viva e sã. Culturalmente afinal e, tanto quanto possível, livremente. Nunca mediante o dirigismo, o autoritarismo, a repressão.


1) Escarpit, Robert, La Révolution du Livre, Presses Universitaires de Fran- ces, Paris, pág. 95.
2) Idem, pág. 104.

(1976)


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