Carlos Umberto Pozzobon
“Somos criaturas de nosso tempo, todos cheios de falhas. Será justo nos julgar pelos padrões desconhecidos do futuro? Alguns dos hábitos de nossa época serão, sem dúvida, considerados bárbaros pelas gerações posteriores – talvez o fato de insistir para que as crianças e até os bebês durmam sozinhos, e não junto com os pais; ou o de alimentar paixões nacionalistas como meio de ganhar aprovação popular e alcançar um alto cargo político; ou o de permitir o suborno e a corrupção como meio de vida; ou o de ter animais de estimação; ou o de comer animais e enjaular chimpanzés; ou o de criminalizar o uso de euforizantes por adultos; ou o de permitir que nossos filhos cresçam ignorantes.”
Carl Sagan – O Mundo Assombrado pelos Demônios
“O pessimismo cultural é tão velho quanto a cultura humana e tem uma longa história na Europa.
Hesíodo julgava viver na Era do Ferro; Catão, o Antigo, acusava a filosofia grega de corromper os jovens; Santo Agostinho denunciou a decadência pagã como responsável pela queda de Roma; os reformadores protestantes se consideravam vivendo no Grande Tormento; os realistas franceses culpavam Rousseau e Voltaire pela Revolução; e praticamente todo mundo culpava Nietzsche pelas duas guerras mundiais.
Mark Lilla – A Mente Naufragada
Tornou-se um lugar comum nas redes sociais e na academia – para não falar de biógrafos famosos –, a recorrência a imputações de terceiros para desqualificar pensadores de cujas opiniões comuns são contrários, como forma de polemizar sobre os erros e as consequências do pensamento desses autores na explicação da História e dos destinos humanos.
O núcleo da crítica desses escritores conecta os fatos da vida privada dos pensadores a fenômenos históricos, procurando ligações que os façam responsáveis pelo desatino de tantos quantos ditadores apareceram no mundo.
Um dos mais apreciados intelectuais que perambularam pelo método psicanalítico para julgar as obras de autores é Samuel Johnson, de quem resenhei seu principal estudo biográfico chamado Intelectuais:
Johnson procura determinar os fatos conhecidos da vida privada de escritores para explicar a personalidade e contradições de sua vida social e os fatores políticos concomitantes.
Usei a expressão “perambular” por não acreditar que a vida de um intelectual ou artista seja uma sequência uniforme de pensamentos e posições sobre os fatos cotidianos de sua época. A opinião dominante de que o mundo é regido pelas ideias de pensadores, cuja influência determina os acontecimentos históricos, é uma criação de filósofos diletantes e acadêmicos historicistas.
Com isso, fica fácil eliminar todas as características da psicologia social e simplificar uma questão em torno da obra de um pensador. O povo passa a agente estático das ideias propagadas que, sem essas, jamais ocorreriam os acontecimentos históricos.
Ninguém lê para aprender a ser tirano. A formação intelectual, usada para justificar uma predisposição já existente, que busca razões para o desencadeamento de justificativas políticas, torna-se falsa.
Existe uma falsa correlação entre obras de escritores precedentes (em alguns casos, em séculos) resultante de interpretações que depois integraram o totalitarismo contemporâneo, como o antissemitismo, o anticatolicismo e o nacionalismo. Hitler e Mussolini nada devem aos autores que mencionarei a seguir. O contexto social em que viveram diz mais sobre eles do que estes à interpretação dos intelectuais que os precederam.
A recorrência analógica da influência de um autor sobre as gerações posteriores provém da religião baseada em profecias e do marxismo. Os comunistas elevados ao grau de grandes pensadores e dirigentes sempre foram fontes de incitação para a ação revolucionária e, ao mesmo tempo, seus epígonos como Marx e Lênin, se tornaram uma fonte de disputa intelectual pela produção de citações como base para argumentação em debates.
Marx escrevia bordando citações literárias. Entre seus preferidos estava Shakespeare e, no entanto, não conheço um professor sequer que tenha escrito que este tenha sido o inspirador daquele.
Na ideologia marxista, as obras dos antecessores são necessariamente inspiração para as gerações os posteriores pelo aspecto intrínseco em ser uma religião secular, como abordado por Aron em O Ópio dos Intelectuais: uma teoria que nasce com os movimentos operários e se constrói com um panteão de pensadores agrupados em uma coletânea de obras de reflexão obrigatória para todos os dirigentes políticos associados a ele. O aspecto religioso está no historicismo definido no Manifesto Comunista transformado em instrumento de ação revolucionária. Meu foco, como o leitor terá notado, é discutir as contradições de atribuir INFLUÊNCIA a autores que não se pode afirmar com certeza de a terem exercido.
A agitação do século XIX foi pioneira de seus próprios intérpretes, e eles não podem ser responsabilizados pelo mau uso que fizeram de suas obras, especialmente quando pretendiam esclarecer o mundo.
Para o leitor que deseja uma análise do engajamento intelectual, isto é, da militância em favor do totalitarismo – tão citado e repetido no pensamento contemporâneo –, indico a minha resenha do livro de Mark Lilla:
A Mente Insensata.
A tradição acadêmica de atribuir um livro como inspirador da ação histórica é generalizada. Considere um autor como Martin Puchner, em seu livro O Mundo da Escrita. Para ele,
A epopeia de Homero já era um texto fundamental para os gregos havia muitas gerações. Para Alexandre, [a epopeia] adquirira a importância de um texto quase sagrado, e é por isso que sempre o levava consigo em sua campanha. É o que fazem os textos, sobretudo os fundamentais: eles alteram a maneira como vemos o mundo e também como atuamos nele. Esse era decerto o caso de Alexandre. Ele foi induzido não só a ler e estudar esse texto, mas também a reencená-lo. Alexandre, o leitor, se pôs dentro da narrativa, vendo sua própria vida e sua trajetória à luz do Aquiles de Homero. Alexandre, o Grande, é bem conhecido por ser um rei extraordinário. Acontece que era também um leitor extraordinário.
…………
Embora não tivesse nenhum significado estratégico direto, Troia trouxe à tona as fontes secretas da campanha de Alexandre: ele fora para a Ásia a fim de reviver os relatos da Guerra de Troia. Homero moldara a forma como Alexandre via o mundo e agora, durante a campanha, ele estava munido dessa visão. Quando chegou a Troia, ele decidiu dar continuidade à epopeia, para além do que Homero poderia ter imaginado. Alexandre exaltou Homero ao reencenar a conquista da Ásia numa escala maior.
Considerando que Homero e Alexandre estavam separados no tempo em 9 séculos, não tem sentido para um comandante, disposto a vingar a derrota ateniense frente ao império Persa usar como guia de comando a batalha de Troia, com dezenas de problemas logísticos e militares para resolver. No entanto, é a opinião dominante no mundo acadêmico. Como o interesse pela Grécia nasceu em Puchner na adolescência e terminou marcando sua carreira de historiador, ele compartilha o sentimento que forja a história pela ação inspiradora que a leitura da Ilíada no leito influenciava as ações de Alexandre no dia seguinte.
As teorias conspiratórias
O erro crasso dos intelectuais consiste em recusar o fato de que são os tiranos que influenciam os intelectuais e não estes aos déspotas. Assim, Hitler não seria quem foi se não fosse Carl Smith. Mas o que seria de Carl Smith sem Hitler? O que seriam Giovanni Gentile e D’Annunzio sem Mussolini?
A incompreensão sobre a natureza do Poder faz com que se pense sempre que as ideias criam o mundo em que vivemos e não, no caso dos governantes, que são estes que buscam justificação e apoio em tantos quantos escritores estejam dispostos a servir de vitrine política para seus atos. Conheço um Apedeuta que nunca escreveu nada além de alguns bilhetes e que serve de inspiração intelectual para uma plêiade de acadêmicos brasileiros sem jamais suspeitar quem são, quanto mais ler suas obras. Evidentemente que blogs e podcasts, disputam renhidamente a precedência de suas inspirações na condução do governo.
O Caso Olavo de Carvalho
Já escrevi 3 ou 4 ensaios sobre o olavismo e vou me deter em apenas um ponto. Com uma compreensão muito limitada da política e seus necessários arranjos e compromissos de parte a parte, Olavo de Carvalho introduziu no pensamento brasileiro da direita naftalina o gramscismo, uma criação intelectual de Antonio Gramsci que, em sua obras sobre a cultura italiana, instigava o PCI a participar (o verbo correto para a análise dele seria se infiltrar) em todas as correntes da sociedade (burguesa) como forma de introduzir o marxismo cultural e assim preparar intelectualmente o ambiente político para a tomada do poder.
Foi Gramsci, portanto, o autor da ideia de que os comunistas deveriam dominar a imprensa, as escolas e universidades paulatinamente ocupando todos os espaços onde a educação e a opinião pública se manifestasse. Esta teoria novamente despreza o fato de que qualquer movimento que pretenda uma transformação social o faça espontaneamente como uma conclusão banal de estratégia de seus dirigentes políticos. E mostra como as teorias conspiratórias são predominantes na psicologia social dos povos iludidos.
Qual a diferença, no mundo do clientelismo político, de um dirigente liberal, social-democrata ou conservador que empregue um cabo eleitoral em um jornal para escrever a seu favor, de um marxista que faça o mesmo inspirado nas causas utópicas de sua doutrina?
Isso foge à compreensão de Olavo de Carvalho porque sua militância tem a mesma insuficiência do marxismo: achar que o mundo é regido pela conspiração das elites. Com isso, educou uma geração na concepção dogmática do gramscismo e não se deteve em falsificar a verdade quando espalhou o Decálogo de Lênin, ignorando o discurso redentor e utópico do socialismo com um receituário para a execução de crimes em nome da fidelidade ao partido bolchevique. Se a História fosse assim tão simples, ela nunca se repetiria.
O Caso Rousseau
Para Johnson, por exemplo, a Vontade Geral de Rousseau era uma premonição do leninismo. Este é um bom achado retórico, mas não passa disso. Achar que existam premonições na história é tão duvidoso quanto acreditar em superstições. A história é recorrente, e se Rosseau está vivo no pensamento do século XXI, não se deve ao que escreveu, mas à permanência de certos sentimentos que fundamentaram suas ideias. Para entender o renascimento do socialismo, é preciso mergulhar na esfera do pensamento religioso condensado na visão do apocalipse, no aparecimento do Messias, no milenarismo que transforma valores religiosos em ideológicos e cria uma visão histórica profetizadora, a que os críticos chamam de historicismo e, atualmente, pelo contrabando das teses escatológicas primitivas do fim do mundo no ambientalismo alarmista. Valores que renascem no vai e vem do processo histórico onde seus autores são meros intérpretes do espírito da época. Não acredito que sem Rosseau o mundo pudesse ser diferente. Portanto, ele tornou-se um predecessor porque sua sensibilidade foi apreendida e literatizada, comprovando que sua influência é menos pessoal do que temporal.
O Caso Le Bon
Foi por ter esquecido essa condição essencial que o livro [O Príncipe de Maquiavel], tão admirado a princípio, foi mais tarde criticado, quando, tendo evoluído as ideias e a moral, deixou de refletir as necessidades dos novos tempos. Só então Maquiavel se tornou maquiavélico.
Julgar a política desta época com as nossas próprias ideias seria tão ilógico quanto tentar interpretar as Cruzadas, as Guerras Religiosas e a Festa de São Bartolomeu à luz das ideias atuais. [Psicologia da Política].
Um dos exemplos mais pronunciados da difamação sutil, com o propósito de afastar os psicólogos e demais leitores em geral de um autor fundamental para o entendimento da psicologia das massas, é praticado pelo portal de psicologia denominado ironicamente de: A Mente é Maravilhosa.
As motivações para ocultar Le Bon da bibliografia acadêmica estão relacionadas a questões ideológicas que envolvem seu pensamento. Vou direto ao motivo: Le Bon abominava os sindicatos e a agitação social que produziu o homem-massa, o indivíduo transformado em rebanho de demagogos, que depois gerariam os 3 grandes males do século XX: o comunismo soviético, o fascismo e o nazismo. Não por acaso, foi considerado o fundador da psicologia social.
Ele é acusado de racista, e por isso, inspirador de Hitler por ser citado em Minha Luta. Porém, o conceito de raça em Le Bon não difere de outros notáveis escritores do seu tempo e se confunde com etnia e nacionalidade. Para ele, “os resíduos ancestrais formam a camada mais profunda e mais estável do caráter dos indivíduos e dos povos. É pelo seu ‘eu’ ancestral que um inglês, um francês, um chinês, diferem tão profundamente”.
Esta observação parece saída da pena de Edmund Burke. Deve-se observar que o conceito recorrente de raça em Le Bon provém de sua experiência internacional que o levou ao Egito, Arábia e Índia.
Vejamos como ele explica seu conceito de raça: “No despertar da civilização, um enxame de homens de diversas origens, agrupados pelo acaso das migrações, invasões e conquistas, de sangues diferentes, de línguas igualmente diferentes, possuíam o único elo comum de união: a difusamente reconhecida lei de um chefe… No transcurso dos séculos o tempo realiza seu objetivo. A identidade das vizinhanças, a repetida miscigenação das raças, as necessidades da vida em comum, exercem suas influências. A aglomeração de unidades díspares começa a misturar-se em um todo, a formar uma raça; isto é, um agregado possuindo características e sentimentos comuns aos quais a hereditariedade fornece uma solidez cada vez maior. A massa se torna um povo, e este povo é capaz de emergir de seu estado bárbaro. Entretanto, somente emerge inteiramente quando, depois de grandes esforços, lutas repetidas necessariamente, e inumeráveis recomeços, ele tenha adquirido um ideal. A natureza deste ideal é de pequena importância; seja o culto de Roma, o poder de Atenas, ou o triunfo de Alá, basta para dotar todos os indivíduos da raça que ele forma com uma perfeita unidade de sentimentos e pensamentos.”
Não há o que obstar neste conceito. Em outro livro, ele volta ao tema:
“O conceito de raça, tão incompreendido até poucos anos atrás, tende cada vez mais a se espalhar e dominar todas as nossas concepções históricas, políticas e sociais.
“Mostramos em outro livro como os povos, reunidos e misturados pelas oportunidades de emigração ou conquista, vieram a formar raças históricas, as únicas que existem hoje; porque raças puras, do ponto de vista antropológico, dificilmente são encontradas, exceto entre os selvagens. Estabelecida essa noção, indicamos os limites das variações de caracteres nessas raças, ou seja, como caracteres variáveis se sobrepõem a um substrato fixo. De imediato, mostramos que todos os elementos de uma civilização: línguas, artes, costumes, instituições, crenças, sendo consequência de uma determinada estrutura mental, não podem passar a diferentes povos nem sofrer transformações muito profundas”.
Não se trata pois do racismo como o conhecemos a partir da década de 30 do século XX. No entanto, o uso difuso da palavra raça não torna um escritor racista. O substrato sucessivo da raça para Le Bon é o grupo social em que o indivíduo está inserido e localizado, seja por razões políticas ou culturais.
O conceito dele serve para nós, brasileiros, que somos uma amálgama de europeus, africanos, asiáticos e ameríndios. Basta substituir a palavra raça pela palavra povo, e o texto perde o caráter preconceituoso com que o termo raça é abordado.
Impossível apresentar o riquíssimo pensamento de Le Bon em poucos parágrafos. É preciso ler As Opiniões e as Crenças para encontrar análises fascinantes – porque originais – sobre questões que nos dizem respeito quase cem anos depois de sua morte. Como sua percepção de que a fé política é um sucedâneo da fé religiosa, e de que “a providência estatista foi herdeira da antiga providência divina”, um tema que ocupou Octavio Paz em diversos artigos. Ou ler o livro As Multidões em que novamente paraleliza o pensamento religioso com o político na imaginação coletiva. Ou, A Psicologia do Socialismo, obra capital para o entendimento do que depois se tornou a gênese do movimento social mais importante do século XX com seu fracasso anunciado por ele ainda no século XIX. Um livro capital para entender nossa identidade é Psicologia da Política, onde discorre sobre temas em que a cultura latina se dissocia das demais, especialmente no culto à solução dos problemas políticos e sociais através da lei. A identidade de partidos políticos diferentes se torna uma quimera em relação ao mindset da herança cultural estatista, onde tudo se resolve com as boas intenções, seja da regulação até a vigilância do Estado sobre a sociedade. Le Bon enfatiza a natureza burocrática do mundo latino como consequência do apego regenerativo da regulamentação legal.
Criticar Le Bon é um imperativo da leitura ideologicamente desinteressada, mas essa crítica não deve se limitar àquilo que está superado em seus argumentos, porque a superação é própria do desenvolvimento posterior da marcha da humanidade.
Vamos tomar um exemplo de seu pensamento e inserir na realidade brasileira do presente: o sufrágio universal, uma reivindicação generalizada no século XIX que viria a ser implantado no seguinte, visto por Le Bon com muitas objeções. Argumentava que a grandeza de uma civilização não poderia ser garantida pelo voto dos “elementos inferiores ostentando exclusivamente a superioridade numérica”. É uma forma radical de dizer o que Tocqueville falou suavemente sobre os perigos que circundam a democracia: o democratismo, a peste capaz de degenerar as democracias tal como a conhecemos desde a Grécia antiga, materializada no Brasil pelo voto de cabresto, é uma prova da análise percuciente de Le Bon sobre o tema, hoje consolidado nos resultados eleitorais dos programas sociais. Porém, se “elementos inferiores” é um termo agressivo para nossos dias, não o foi para sua época.
O portal de psicologia A Mente é Maravilhosa argumenta que Le Bon foi o inspirador de Adolf Hitler. O primeiro parágrafo diz tudo: “O nome de Gustave Le Bon está associado a vários fatos muito importantes do século XX. Suas considerações e estudos encorajaram a ideologia nazista. Por este motivo, especula-se que o livro Minha Luta, de Adolf Hitler, teve a sua inspiração na obra de Le Bon.” Seria paradoxal, se não fosse de propósito, o portal não entender que um aspirante a ditador buscaria até na Bíblia uma justificativa para tomar o poder dentro da agitação política cotidiana de seus dias. Basta olhar para o Brasil evangélico. Repito: este desvio intelectual de achar que uma filosofia política precisa de “encorajadores”, provém da academia e de sua tradição livresca de atribuir o mal ancorado no pensamento de intelectuais e não na mente do déspota. E circula intensamente nas teorias da conspiração. No entanto, apresenta duas questões contraditórias: 1) que os intelectuais pelo seu pensamento é que fazem os acontecimentos do mundo; 2) que eles são os responsáveis pelos males causados pelos grandes déspotas.
Gustave Le Bon repetidamente enfatizou a superioridade do desenvolvimento cultural anglo-saxônico sobre o latino em aspectos como a educação para a prática e não para a formação de teóricos defasados da vida profissional, como era a essência da educação latina, com cursos superiores voltados para a formação de inadaptados que se tornam agitadores permanentes, e a organização social burocrática, tema depois desenvolvido por Alan Pereyfitte em O Mal Latino.
Le Bon mostra como a razão pragmática é superior à razão teorizante na vida social, e critica impiedosamente o instinto de rebanho, sobretudo o que nos interessa: o atavismo latino-americano de rebeldia impotente, incapacitante, retórico e grandiloquente, mas vazio de atitudes nos movimentos revolucionários do século XIX e XX. Achava uma decadência moral injustificável dos latino-americanos que, sentados num tesouro inesgotável de recursos naturais, sublevar-se periodicamente para ocupar o poder sem nada mudar, enquanto as nações europeias se transfiguravam com a agitação do progresso tecnológico.
Mas existem tantas razões para ocultar Le Bon da nova geração de estudantes de psicologia social, sociologia e história, que ficam claras quando vemos que o alvo é silenciar sobre nossos vícios institucionais, retratados por ele como uma herança latina. Vejamos um exemplo:
“M. P. Bourde reportou um exemplo muito típico deste estado mental [recorrer ao Estado para obter subsídios, proteção, solução de problemas, etc.]. É uma história absolutamente incompreensível e irreal para um inglês ou americano, sobre o que ocorreu com os habitantes da pequena cidade X. Uma das canalizações de água quebrou, e subitamente recebeu contaminação da tubulação de esgoto vizinha. Mandar um encanador e assim reparar o acidente era uma ideia muito estreita.
Em vez disso, foi encaminhada à Câmara de Vereadores que se reuniu para discutir o acidente. Evidentemente eles precisavam se dirigir ao governo. Quatro colunas de jornal foram suficientemente escassas para relatar os procedimentos adotados. Graças à intervenção de um considerável número de ministros, senadores, deputados, prefeitos, engenheiros, etc, a requisição fez nada menos que vinte paradas nos diversos departamentos administrativos, e a decisão final levou somente dois anos para retornar à comuna. A população, neste meio tempo, continuou, com resignação, a beber esgoto, sem sequer sonhar em remediar o acidente por si própria. Os exemplos dados por Tocqueville mostram que tais assuntos eram tratados exatamente da mesma forma no ‘ancien régime’.”
E, então, Le Bon, conclui: “Temos um estado especial da mente, que é evidentemente uma característica racial. O Estado é obrigado a intervir incessantemente em matérias de regulação e proteção; mas se fôssemos creditar todas as reclamações ele interviria ainda mais frequentemente.”
Hoje diríamos que o “estado especial da mente é uma característica cultural”. A análise é tão verdadeira quanto surpreendente que sua crítica seja tão perspicaz para nosso tempo. Não seria o caso de traduzir raça por cultura e deixar o texto palatável para uma geração que criou uma histeria tal em nome do racismo que uma simples piada pode provocar um processo por injúria racial? É mais preocupante o estigma racializante do que o preconceito em si. A histeria criada em torno do racismo acabou com os programas de humor e quando isto acontece sabemos que a liberdade corre perigo. Todas as épocas totalitárias começam com o patrulhamento da sátira. E terminam em acrobacias linguísticas barrocas para contornar a repressão imposta por uma ortodoxia voltada contra a manifestação espontânea do convívio jocoso. Enfim, o racismo de Le Bon é o mesmo de Lobato. Uma insignificância dentro de um pensamento fecundo para o seu tempo. E, querer ler o passado com os olhos censores do presente, significa negar o valor da evolução social humana que é também um evolução intelectual com seus baixos, como a presente.
O caso Nietzsche
A mesma difamação sutil encontrei em Steve Pinker ao tratar de Nietzsche. Para Pinker, o filósofo alemão foi um dos inspiradores de Hitler pela sua obsessão com o grande homem. Erro crasso: a figura do grande homem nele era apenas a constatação do supercapitalista, até então desconhecida na história humana que não tinha nada a ver com governantes, porém com a emergência da revolução industrial. É a mesma tradição acadêmica da “inspiração” do tirano. Atribui-se a Nietzsche a visão do niilismo quando ele expôs o sentimento niilista formado no século XIX nas jornadas revolucionárias: o primeiro a compreender que a fusão do cristianismo com o romantismo permitiu o nascimento do socialismo, despertando pela primeira vez o negativismo dos despossuídos que iria frutificar no século seguinte com todo o seu cortejo de horrores. Considero o niilismo um dos componentes mais importantes da má consciência do brasileiro, exatamente como decorrência da segregação social em que vivemos.
Pinker enfatiza, em tom indignado, a afirmação de Nietzsche de que o cristianismo é uma religião para escravos. Mas para quem, como Pinker, que escreveu um livro inteiro para mostrar a evolução humana dos tempos da revolução industrial aos nossos dias (O Novo Iluminismo), não poderia hostilizar a afirmação de Nietzsche. O que se pode entender, com um pouco de flexibilidade, é que o cristianismo fenece lentamente à medida que o Ocidente se enriquece e prospera. A doutrina cristã, no entanto, se mantém inabalável em países da América Latina, especialmente no Brasil, cujo deficit de progresso social faz o povo apegar-se ao exemplo sandapilário de um profeta que exalta a virtude da fé no autoflagelo de procissões, e tudo o que revela o obscurantismo mental deste povo deixado à mercê das carências, condimento indispensável para o aparecimento de charlatões de todas as espécies, especialmente nas confissões evangélicas de subúrbio.
Quem conhece a atuação das comunidades católicas junto a índios e quilombolas, ao tipo de reforma agrária em que os assentados jamais recebem o título de propriedade, transformando-se em fantoches do PT para fins de mobilização permanente em suas causas, sabe perfeitamente que essas comunidades são uma religião ensinada para prometer a libertação escravizando seus adeptos.
Não posso deixar de assinalar a importância da religião católica na assistência social, no trabalho social incomparável desde Anchieta e Manuel da Nóbrega, na preservação de igrejas e relíquias artísticas, escolas, conventos e santuários, mas é fundamental entender que a glorificação do sacrifício como dogma originário não tem lugar em uma sociedade cujo progresso torna os povos desenvolvidos muito mais inclinados ao epicurismo que ao estoicismo. No entanto, há quem sustente que o agnosticismo derivado do progresso seja um dos principais problemas de nosso tempo.
Não se compreende Nietzsche sem entender que seu louvor ao dionisíaco como força vital decorria de suas duas doenças fisiológicas acabrunhantes que lhe haveriam de enlouquecer: a sífilis e os surtos seguidos de dores no estômago. Pela sífilis, ficou privado do sexo e confinado ao amor platônico; pelo estômago, à ingestão de álcool. Sem sexo e sem álcool foi obrigado a viver como um asceta a contragosto, de onde surge sua particularidade intelectual de ser um maximista com lampejos de loucura.
Para Pinker, “Friedrich Nietzsche, que cunhou o termo vontade de poder, recomenda a violência aristocrática das “bestas louras teutônicas” e dos heróis samurais, vikings e homéricos: “dura, fria, terrível, sem sentimentos e sem consciência, esmagando tudo e respingando tudo com sangue.” Mas era apenas seu ódio ao cristianismo que lhe fazia mergulhar no mundo antigo, ao perceber os valores que o cristianismo destruíra em sua ortodoxia.
Mais adiante, tratando de um tema importante do qual nada tenho a discordar, a progressofobia, coloca o nome de Nietzsche entre aqueles que não têm similaridades com ele: “Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Martin Heidegger, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jean-Paul Sartre, Frantz Fanon, Michel Foucault, Edward Said, Cornel West, e o coro dos ecopessimistas.”
Ao atribuir o “Will of Power” à ameaça de uma sociedade autocrática comandada por robôs de Inteligência Artificial, tudo indica que o psicólogo Pinker desconhece a obra de um importante psicanalista de todos os tempos, Rollo May.
Alguém que tenha lido Nietzsche poderia afirmar que ele “[é um] pessimista cultural taciturno que declara que a modernidade é odiosa, as afirmações são paradoxais, as obras de arte são ferramentas de opressão, a democracia liberal é o mesmo que o fascismo e a civilização ocidental está indo pelo ralo?” Por que Pinker coloca Nietzsche no meio dos luminares da esquerda?
A difamação deixa de ser sutil e passa a ser obsessiva. No último capítulo, nos oferece uma conclusão estupefaciente: “Nietzsche argumentou que é bom ser um sociopata insensível, egoísta e megalomaníaco.”
Não sei de onde Pinker tirou esta conclusão. Repete o erro do historicismo quando diz que o mundo é guiado pela influência dos intelectuais: “Obviamente, Nietzsche ajudou a inspirar o militarismo romântico que levou à Primeira Guerra Mundial e o fascismo que levou à Segunda. Embora o próprio Nietzsche não fosse um nacionalista alemão nem um antissemita, não é coincidência que essas citações saltem da página como a quintessência do nazismo: Nietzsche tornou-se postumamente o filósofo da corte nazista.”
Primeira difamação: o militarismo precisa de um inspirador. Segunda difamação: a corte nazista era carente de um filósofo que lhe esclarecesse as ideias. A tendência dos intelectuais de se atribuírem importância em assuntos nos quais eles apenas comparecem como figurinistas do coquetel com que os líderes autocráticos se confraternizam em justificações, prova que eles não conseguem diferenciar o real pensamento das tolices com que os tiranos costumam se autoelogiar. Falta um pouco de senso literário a estes acadêmicos.
São estas correlações que formam a maior parte das falsidades do pensamento intelectual contemporâneo.
E Pinker não está sozinho. Entre nós, o grande diplomata e escritor Meira Pena escreveu um pequeno livro analisando a obra de Nietzsche pelo lado negativo, com a mesma tônica com que se criticava Maquiavel até meados do século XIX, cujo eufemismo guardava o significado para todas as maquinações astuciosas dos pretendentes ao poder.
Octavio Paz, talvez o crítico mais importante de todos os tempos na América Latina, tem opinião contrária à clerezia acadêmica: para ele Nietzsche, sobretudo no livro A Genealogia da Moral, “me ensinou a ver o que estava por trás de palavras como virtude, bondade, mal. Foi um guia na exploração da linguagem mexicana: se as palavras são máscaras, o que há por trás delas?”
Existe uma diferença entre os intelectuais orgânicos que se engajaram na defesa dos ditadores, largamente citados por Pinker, como Sartre, e os pretensamente “inspiradores”. Aqueles que escreviam artigos e ensaios de louvação dificilmente podem ser comparados com outros cujas ideias sequer foram entendidas post-mortem pelos oportunistas, mas cujos nomes eram usados como vitrine de respeitabilidade.
Pinker provavelmente desconhece que em Minha Luta, Hitler traça elogios a Shakespeare e Goethe. Devemos portanto concluir que estes dois atores serviram de inspiração para o nazismo, como fez com Nietzsche? Vejamos o que Hitler diz:
“Ainda na época de Frederico, o Grande, ninguém se lembraria de ver nos judeus outra coisa senão ‘o povo estranho’, e até Goethe se mostrava horrorizado com o fato dos casamentos entre cristãos e judeus não serem proibidos legalmente”. Goethe, portanto, santo Deus, não era nenhum retrógrado nem "ilota, o que o fazia falar era nada menos do que a voz do sangue e da razão.”
E, mais adiante, continua o autor de Minha Luta:
“Mas, na realidade, o que são Goethe, Schiller ou Shakespeare em comparação com os heróis da nova poesia alemã? Gastas e obsoletas coisas de um passado que não podia mais sobreviver! A característica desses literatos é que eles não só produzem somente sujeira mas, pior do que isso, lançam lama sobre tudo o que é realmente grande – no passado”.
“Esse sintoma se verifica sempre nesses tempos de decadência. Quanto mais baixas e desprezíveis forem as produções intelectuais de um determinado tempo e os seus autores, tanto mais odeiam esses os representantes de uma grandeza passada.” Aí está uma boa pista para seguir o pensamento de Hitler. Deixo ao leitor interpretar a contradição flagrante e confusa entre Goethe, Schiller e Shakespeare comparados com os “heróis da poesia alemã”; que não foram “inspiradores” de Hitler.
Não existe um comportamento humano de parte dos intelectuais que não possa ser questionado, por melhor que ele seja. Apenas como anedota da recorrência intelectual do “inspirador”, narro uma pequena experiência que tive nos EUA.
No dia em que cheguei em Michigan para residir três anos e seis meses, em abril de 1982, ocorreu um assassinato em um estacionamento no centro de Detroit. A vítima era um chinês, tomado por japonês por dois ex-operários do setor automotivo recentemente demitidos. O motivo do homicídio era punir os japoneses pela enorme importação de veículos Toyota que vinha causando desemprego e consequente mal-estar nos meios empresariais e políticos da sociedade. Vigorava, naquela época em Detroit, a opinião de que não competia à indústria automobilística construir robôs para a montagem de veículos, por não ser uma atividade fim. Tal procedimento já vinha sendo adotado no Japão, o que levou a indústria de Detroit a mudar de ideia por perda de competitividade. No entanto, apesar dos apelos da mídia para não se consumir automóveis importados, poucos meses depois fiz amizade com um professor de música de uma universidade das redondezas que me mostrou seu carro no estacionamento. Era um Volvo. Quando lhe perguntei por que adquirira um carro importado, me respondeu que era mais seguro que os “locais”. Achei muito curiosa aquela resposta.
No entanto, incapaz de desconfiar do cansaço do leitor nas mais de 800 páginas do livro Iluminismo Já, ficamos sabendo que Pinker comprou um carro novo, quatro décadas e meia depois, da marca Volvo, por ser mais seguro. Evidentemente que o velho professor de música de Michigan não foi o “inspirador” de Pinker quatro décadas atrás, porque não existe inspiração. Apenas prova que certas coisas presentes no ambiente acadêmico não se dissipam com os novos tempos. São o mindset institucionalizado que persiste e que leva muitos a considerar como precursores uns dos outros.
Se a experiência humana pode contribuir com o pensamento que nos forma como seres, a DIFAMAÇÃO SUTIL trabalha do lado oposto da coleta dos fatores positivos na obra dos autores que contribuíram para ela. Procura dilacerar seus erros e aspectos controversos, suas “influências” involuntárias, como se os tarados de qualquer época não fossem justificar seus atos nas interpretações psicóticas de pessoas honradas para justificar seus fins.
Em primeiro lugar, as difamações sutis não partem apenas de membros da academia, mas de amplos setores da ideologia do cancelamento. O procedimento adotado julga os fatos históricos em função dos parâmetros atuais e não da época em que se revelaram.
O segundo caso, atribuir a pensadores com um século ou mais de antecedência a origem do pensamento de uma doutrina autocrática, é não só um erro, como uma difamação utilizada para desviar as novas gerações do conhecimento desses autores.
Um caso brasileiro típico
Entre nós, a comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna de 22 teve a presença do jornalista Ruy Castro no programa Roda Viva para falar sobre o acontecimento. Esse carioca da gema procurou minimizar o episódio histórico argumentando que Paulo Prado, um dos mecenas das artes em São Paulo, provinha de uma família de bandeirantes escravocratas. O que isso tem a ver com a agitação artística de 22? O qualificativo pejorativo de escravocrata associado aos bandeirantes é uma novidade das distorções do século XXI (antes era visto como um fato intrínseco da história da conquista territorial do Brasil), e tem sido amplamente utilizado pelos militantes do cancelamento. Afirmou Ruy Castro que ninguém mais lê aqueles autores, pois de toda a turma, Oswald de Andrade já foi pro saco, e Mario de Andrade ainda permanece, talvez o último.
A ligeireza de Ruy Castro é não entender que os cariocas estavam bem representados no Teatro Municipal em 22. Senão vejamos: o homem que comandava a mesa do espetáculo era Ronald de Carvalho, um carioca. Lá estavam também os cariocas Vila Lobos e Di Cavalcanti, para citar os mais famosos. O principal escritor paulistano – Monteiro Lobato – não foi convidado. Não foi portanto um acontecimento meramente paulistano, senão pelo patrocínio das artes ser financiado em SP. E associar a Semana de Arte Moderna ao escravismo é apenas um infantilismo intelectual e uma recorrência à um estigma social para difamar um evento histórico. A forçada atribuição de culpa dos antepassados é um dos artifícios do novo totalitarismo que se engendra no horizonte.
Borges costumava rir-se da fama de escritor preferido quando ironizava que ninguém seria capaz de adivinhar as preferências dos leitores do século XXI. Grandes nomes da literatura desaparecem e novos ocupam a simpatia das novas gerações pela simples ação da reprodução humana diferenciada nas forças enigmáticas da transvaloração social. Relativamente à Semana de Arte Moderna, acho pouco inteligente que Ruy Castro veja no eclipse de Oswald de Andrade algo sintomático da pouca importância do movimento de 22 e não o da literatura em si para este contexto histórico de Internet, onde a literatura agoniza e a Inteligência Artificial se anuncia como uma grande coautora do gênero. Na verdade, no Brasil nada se lê do legado literário escrutinado por Wilson Martins.
Contra o mote de que “a ocasião faz o ladrão”, Carlos Drummond de Andrade afirmou que “a ocasião faz o furto, o ladrão já nasce pronto”. O mesmo vale para os ditadores supostamente inspirados por intelectuais anacrônicos.
Se os autores influenciam ditadores como influenciam leitores, a conclusão óbvia seria uma apologia liberticida: excluam-se esses autores e a humanidade estará salva de novos déspotas. Não se engane com este paradoxo: ele está em gestação insuspeitavelmente com grandes espertalhões a serviço de causas extraídas dos repertórios da corrupção no curso maléfico de criar barreiras intelectuais para as novas gerações com base em preconceitos da razão politicamente correta.
Um excelente ensaio, repleto de reflexões estimulantes e muito bem escritas.
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