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31 de maio de 2025

A Crítica do Cancelamento e o Cancelamento da Crítica

Carlos Umberto Pozzobon

“Somos criaturas de nosso tempo, todos cheios de falhas. Será justo nos julgar pelos padrões desconhecidos do futuro? Alguns dos hábitos de nossa época serão, sem dúvida, considerados bárbaros pelas gerações posteriores – talvez o fato de insistir para que as crianças e até os bebês durmam sozinhos, e não junto com os pais; ou o de alimentar paixões nacionalistas como meio de ganhar aprovação popular e alcançar um alto cargo político; ou o de permitir o suborno e a corrupção como meio de vida; ou o de ter animais de estimação; ou o de comer animais e enjaular chimpanzés; ou o de criminalizar o uso de euforizantes por adultos; ou o de permitir que nossos filhos cresçam ignorantes.”
Carl Sagan – O Mundo Assombrado pelos Demônios

“O pessimismo cultural é tão velho quanto a cultura humana e tem uma longa história na Europa. Hesíodo julgava viver na Era do Ferro; Catão, o Antigo, acusava a filosofia grega de corromper os jovens; Santo Agostinho denunciou a decadência pagã como responsável pela queda de Roma; os reformadores protestantes se consideravam vivendo no Grande Tormento; os realistas franceses culpavam Rousseau e Voltaire pela Revolução; e praticamente todo mundo culpava Nietzsche pelas duas guerras mundiais.
Mark Lilla – A Mente Naufragada


Tornou-se um lugar comum nas redes sociais e na academia – para não falar de biógrafos famosos –, a recorrência a imputações de terceiros para desqualificar pensadores de cujas opiniões comuns são contrários, como forma de polemizar sobre os erros e as consequências do pensamento desses autores na explicação da História e dos destinos humanos.

O núcleo da crítica desses escritores conecta os fatos da vida privada dos pensadores a fenômenos históricos, procurando ligações que os façam responsáveis pelo desatino de tantos quantos ditadores apareceram no mundo.

Um dos mais apreciados intelectuais que perambularam pelo método psicanalítico para julgar as obras de autores é Samuel Johnson, de quem resenhei seu principal estudo biográfico chamado Intelectuais:

Johnson procura determinar os fatos conhecidos da vida privada de escritores para explicar a personalidade e contradições de sua vida social e os fatores políticos concomitantes.
Usei a expressão “perambular” por não acreditar que a vida de um intelectual ou artista seja uma sequência uniforme de pensamentos e posições sobre os fatos cotidianos de sua época. A opinião dominante de que o mundo é regido pelas ideias de pensadores, cuja influência determina os acontecimentos históricos, é uma criação de filósofos diletantes e acadêmicos historicistas.

Com isso, fica fácil eliminar todas as características da psicologia social e simplificar uma questão em torno da obra de um pensador. O povo passa a agente estático das ideias propagadas que, sem essas, jamais ocorreriam os acontecimentos históricos.

Ninguém lê para aprender a ser tirano. A formação intelectual, usada para justificar uma predisposição já existente, que busca razões para o desencadeamento de justificativas políticas, torna-se falsa.

Existe uma falsa correlação entre obras de escritores precedentes (em alguns casos, em séculos) resultante de interpretações que depois integraram o totalitarismo contemporâneo, como o antissemitismo, o anticatolicismo e o nacionalismo. Hitler e Mussolini nada devem aos autores que mencionarei a seguir. O contexto social em que viveram diz mais sobre eles do que estes à interpretação dos intelectuais que os precederam.

A recorrência analógica da influência de um autor sobre as gerações posteriores provém da religião baseada em profecias e do marxismo. Os comunistas elevados ao grau de grandes pensadores e dirigentes sempre foram fontes de incitação para a ação revolucionária e, ao mesmo tempo, seus epígonos como Marx e Lênin, se tornaram uma fonte de disputa intelectual pela produção de citações como base para argumentação em debates.

Marx escrevia bordando citações literárias. Entre seus preferidos estava Shakespeare e, no entanto, não conheço um professor sequer que tenha escrito que este tenha sido o inspirador daquele.

Na ideologia marxista, as obras dos antecessores são necessariamente inspiração para as gerações os posteriores pelo aspecto intrínseco em ser uma religião secular, como abordado por Aron em O Ópio dos Intelectuais: uma teoria que nasce com os movimentos operários e se constrói com um panteão de pensadores agrupados em uma coletânea de obras de reflexão obrigatória para todos os dirigentes políticos associados a ele. O aspecto religioso está no historicismo definido no Manifesto Comunista transformado em instrumento de ação revolucionária. Meu foco, como o leitor terá notado, é discutir as contradições de atribuir INFLUÊNCIA a autores que não se pode afirmar com certeza de a terem exercido.

A agitação do século XIX foi pioneira de seus próprios intérpretes, e eles não podem ser responsabilizados pelo mau uso que fizeram de suas obras, especialmente quando pretendiam esclarecer o mundo.

Para o leitor que deseja uma análise do engajamento intelectual, isto é, da militância em favor do totalitarismo – tão citado e repetido no pensamento contemporâneo –, indico a minha resenha do livro de Mark Lilla:
A Mente Insensata.

A tradição acadêmica de atribuir um livro como inspirador da ação histórica é generalizada. Considere um autor como Martin Puchner, em seu livro O Mundo da Escrita. Para ele,

A epopeia de Homero já era um texto fundamental para os gregos havia muitas gerações. Para Alexandre, [a epopeia] adquirira a importância de um texto quase sagrado, e é por isso que sempre o levava consigo em sua campanha. É o que fazem os textos, sobretudo os fundamentais: eles alteram a maneira como vemos o mundo e também como atuamos nele. Esse era decerto o caso de Alexandre. Ele foi induzido não só a ler e estudar esse texto, mas também a reencená-lo. Alexandre, o leitor, se pôs dentro da narrativa, vendo sua própria vida e sua trajetória à luz do Aquiles de Homero. Alexandre, o Grande, é bem conhecido por ser um rei extraordinário. Acontece que era também um leitor extraordinário.

………… Embora não tivesse nenhum significado estratégico direto, Troia trouxe à tona as fontes secretas da campanha de Alexandre: ele fora para a Ásia a fim de reviver os relatos da Guerra de Troia. Homero moldara a forma como Alexandre via o mundo e agora, durante a campanha, ele estava munido dessa visão. Quando chegou a Troia, ele decidiu dar continuidade à epopeia, para além do que Homero poderia ter imaginado. Alexandre exaltou Homero ao reencenar a conquista da Ásia numa escala maior.

Considerando que Homero e Alexandre estavam separados no tempo em 9 séculos, não tem sentido para um comandante, disposto a vingar a derrota ateniense frente ao império Persa usar como guia de comando a batalha de Troia, com dezenas de problemas logísticos e militares para resolver. No entanto, é a opinião dominante no mundo acadêmico. Como o interesse pela Grécia nasceu em Puchner na adolescência e terminou marcando sua carreira de historiador, ele compartilha o sentimento que forja a história pela ação inspiradora que a leitura da Ilíada no leito influenciava as ações de Alexandre no dia seguinte.


As teorias conspiratórias

O erro crasso dos intelectuais consiste em recusar o fato de que são os tiranos que influenciam os intelectuais e não estes aos déspotas. Assim, Hitler não seria quem foi se não fosse Carl Smith. Mas o que seria de Carl Smith sem Hitler? O que seriam Giovanni Gentile e D’Annunzio sem Mussolini?

A incompreensão sobre a natureza do Poder faz com que se pense sempre que as ideias criam o mundo em que vivemos e não, no caso dos governantes, que são estes que buscam justificação e apoio em tantos quantos escritores estejam dispostos a servir de vitrine política para seus atos. Conheço um Apedeuta que nunca escreveu nada além de alguns bilhetes e que serve de inspiração intelectual para uma plêiade de acadêmicos brasileiros sem jamais suspeitar quem são, quanto mais ler suas obras. Evidentemente que blogs e podcasts, disputam renhidamente a precedência de suas inspirações na condução do governo.


O Caso Olavo de Carvalho

Já escrevi 3 ou 4 ensaios sobre o olavismo e vou me deter em apenas um ponto. Com uma compreensão muito limitada da política e seus necessários arranjos e compromissos de parte a parte, Olavo de Carvalho introduziu no pensamento brasileiro da direita naftalina o gramscismo, uma criação intelectual de Antonio Gramsci que, em sua obras sobre a cultura italiana, instigava o PCI a participar (o verbo correto para a análise dele seria se infiltrar) em todas as correntes da sociedade (burguesa) como forma de introduzir o marxismo cultural e assim preparar intelectualmente o ambiente político para a tomada do poder.

Foi Gramsci, portanto, o autor da ideia de que os comunistas deveriam dominar a imprensa, as escolas e universidades paulatinamente ocupando todos os espaços onde a educação e a opinião pública se manifestasse. Esta teoria novamente despreza o fato de que qualquer movimento que pretenda uma transformação social o faça espontaneamente como uma conclusão banal de estratégia de seus dirigentes políticos. E mostra como as teorias conspiratórias são predominantes na psicologia social dos povos iludidos.

Qual a diferença, no mundo do clientelismo político, de um dirigente liberal, social-democrata ou conservador que empregue um cabo eleitoral em um jornal para escrever a seu favor, de um marxista que faça o mesmo inspirado nas causas utópicas de sua doutrina?

Isso foge à compreensão de Olavo de Carvalho porque sua militância tem a mesma insuficiência do marxismo: achar que o mundo é regido pela conspiração das elites. Com isso, educou uma geração na concepção dogmática do gramscismo e não se deteve em falsificar a verdade quando espalhou o Decálogo de Lênin, ignorando o discurso redentor e utópico do socialismo com um receituário para a execução de crimes em nome da fidelidade ao partido bolchevique. Se a História fosse assim tão simples, ela nunca se repetiria.


O Caso Rousseau

Para Johnson, por exemplo, a Vontade Geral de Rousseau era uma premonição do leninismo. Este é um bom achado retórico, mas não passa disso. Achar que existam premonições na história é tão duvidoso quanto acreditar em superstições. A história é recorrente, e se Rosseau está vivo no pensamento do século XXI, não se deve ao que escreveu, mas à permanência de certos sentimentos que fundamentaram suas ideias. Para entender o renascimento do socialismo, é preciso mergulhar na esfera do pensamento religioso condensado na visão do apocalipse, no aparecimento do Messias, no milenarismo que transforma valores religiosos em ideológicos e cria uma visão histórica profetizadora, a que os críticos chamam de historicismo e, atualmente, pelo contrabando das teses escatológicas primitivas do fim do mundo no ambientalismo alarmista. Valores que renascem no vai e vem do processo histórico onde seus autores são meros intérpretes do espírito da época. Não acredito que sem Rosseau o mundo pudesse ser diferente. Portanto, ele tornou-se um predecessor porque sua sensibilidade foi apreendida e literatizada, comprovando que sua influência é menos pessoal do que temporal.


O Caso Le Bon

Foi por ter esquecido essa condição essencial que o livro [O Príncipe de Maquiavel], tão admirado a princípio, foi mais tarde criticado, quando, tendo evoluído as ideias e a moral, deixou de refletir as necessidades dos novos tempos. Só então Maquiavel se tornou maquiavélico.
Julgar a política desta época com as nossas próprias ideias seria tão ilógico quanto tentar interpretar as Cruzadas, as Guerras Religiosas e a Festa de São Bartolomeu à luz das ideias atuais. [Psicologia da Política].

Um dos exemplos mais pronunciados da difamação sutil, com o propósito de afastar os psicólogos e demais leitores em geral de um autor fundamental para o entendimento da psicologia das massas, é praticado pelo portal de psicologia denominado ironicamente de: A Mente é Maravilhosa.

As motivações para ocultar Le Bon da bibliografia acadêmica estão relacionadas a questões ideológicas que envolvem seu pensamento. Vou direto ao motivo: Le Bon abominava os sindicatos e a agitação social que produziu o homem-massa, o indivíduo transformado em rebanho de demagogos, que depois gerariam os 3 grandes males do século XX: o comunismo soviético, o fascismo e o nazismo. Não por acaso, foi considerado o fundador da psicologia social.

Ele é acusado de racista, e por isso, inspirador de Hitler por ser citado em Minha Luta. Porém, o conceito de raça em Le Bon não difere de outros notáveis escritores do seu tempo e se confunde com etnia e nacionalidade. Para ele, “os resíduos ancestrais formam a camada mais profunda e mais estável do caráter dos indivíduos e dos povos. É pelo seu ‘eu’ ancestral que um inglês, um francês, um chinês, diferem tão profundamente”.

Esta observação parece saída da pena de Edmund Burke. Deve-se observar que o conceito recorrente de raça em Le Bon provém de sua experiência internacional que o levou ao Egito, Arábia e Índia.

Vejamos como ele explica seu conceito de raça: “No despertar da civilização, um enxame de homens de diversas origens, agrupados pelo acaso das migrações, invasões e conquistas, de sangues diferentes, de línguas igualmente diferentes, possuíam o único elo comum de união: a difusamente reconhecida lei de um chefe… No transcurso dos séculos o tempo realiza seu objetivo. A identidade das vizinhanças, a repetida miscigenação das raças, as necessidades da vida em comum, exercem suas influências. A aglomeração de unidades díspares começa a misturar-se em um todo, a formar uma raça; isto é, um agregado possuindo características e sentimentos comuns aos quais a hereditariedade fornece uma solidez cada vez maior. A massa se torna um povo, e este povo é capaz de emergir de seu estado bárbaro. Entretanto, somente emerge inteiramente quando, depois de grandes esforços, lutas repetidas necessariamente, e inumeráveis recomeços, ele tenha adquirido um ideal. A natureza deste ideal é de pequena importância; seja o culto de Roma, o poder de Atenas, ou o triunfo de Alá, basta para dotar todos os indivíduos da raça que ele forma com uma perfeita unidade de sentimentos e pensamentos.”

Não há o que obstar neste conceito. Em outro livro, ele volta ao tema:

“O conceito de raça, tão incompreendido até poucos anos atrás, tende cada vez mais a se espalhar e dominar todas as nossas concepções históricas, políticas e sociais.
“Mostramos em outro livro como os povos, reunidos e misturados pelas oportunidades de emigração ou conquista, vieram a formar raças históricas, as únicas que existem hoje; porque raças puras, do ponto de vista antropológico, dificilmente são encontradas, exceto entre os selvagens. Estabelecida essa noção, indicamos os limites das variações de caracteres nessas raças, ou seja, como caracteres variáveis se sobrepõem a um substrato fixo. De imediato, mostramos que todos os elementos de uma civilização: línguas, artes, costumes, instituições, crenças, sendo consequência de uma determinada estrutura mental, não podem passar a diferentes povos nem sofrer transformações muito profundas”.

Não se trata pois do racismo como o conhecemos a partir da década de 30 do século XX. No entanto, o uso difuso da palavra raça não torna um escritor racista. O substrato sucessivo da raça para Le Bon é o grupo social em que o indivíduo está inserido e localizado, seja por razões políticas ou culturais.

O conceito dele serve para nós, brasileiros, que somos uma amálgama de europeus, africanos, asiáticos e ameríndios. Basta substituir a palavra raça pela palavra povo, e o texto perde o caráter preconceituoso com que o termo raça é abordado.

Impossível apresentar o riquíssimo pensamento de Le Bon em poucos parágrafos. É preciso ler As Opiniões e as Crenças para encontrar análises fascinantes – porque originais – sobre questões que nos dizem respeito quase cem anos depois de sua morte. Como sua percepção de que a fé política é um sucedâneo da fé religiosa, e de que “a providência estatista foi herdeira da antiga providência divina”, um tema que ocupou Octavio Paz em diversos artigos. Ou ler o livro As Multidões em que novamente paraleliza o pensamento religioso com o político na imaginação coletiva. Ou, A Psicologia do Socialismo, obra capital para o entendimento do que depois se tornou a gênese do movimento social mais importante do século XX com seu fracasso anunciado por ele ainda no século XIX. Um livro capital para entender nossa identidade é Psicologia da Política, onde discorre sobre temas em que a cultura latina se dissocia das demais, especialmente no culto à solução dos problemas políticos e sociais através da lei. A identidade de partidos políticos diferentes se torna uma quimera em relação ao mindset da herança cultural estatista, onde tudo se resolve com as boas intenções, seja da regulação até a vigilância do Estado sobre a sociedade. Le Bon enfatiza a natureza burocrática do mundo latino como consequência do apego regenerativo da regulamentação legal.

Criticar Le Bon é um imperativo da leitura ideologicamente desinteressada, mas essa crítica não deve se limitar àquilo que está superado em seus argumentos, porque a superação é própria do desenvolvimento posterior da marcha da humanidade.

Vamos tomar um exemplo de seu pensamento e inserir na realidade brasileira do presente: o sufrágio universal, uma reivindicação generalizada no século XIX que viria a ser implantado no seguinte, visto por Le Bon com muitas objeções. Argumentava que a grandeza de uma civilização não poderia ser garantida pelo voto dos “elementos inferiores ostentando exclusivamente a superioridade numérica”. É uma forma radical de dizer o que Tocqueville falou suavemente sobre os perigos que circundam a democracia: o democratismo, a peste capaz de degenerar as democracias tal como a conhecemos desde a Grécia antiga, materializada no Brasil pelo voto de cabresto, é uma prova da análise percuciente de Le Bon sobre o tema, hoje consolidado nos resultados eleitorais dos programas sociais. Porém, se “elementos inferiores” é um termo agressivo para nossos dias, não o foi para sua época.

O portal de psicologia A Mente é Maravilhosa argumenta que Le Bon foi o inspirador de Adolf Hitler. O primeiro parágrafo diz tudo: “O nome de Gustave Le Bon está associado a vários fatos muito importantes do século XX. Suas considerações e estudos encorajaram a ideologia nazista. Por este motivo, especula-se que o livro Minha Luta, de Adolf Hitler, teve a sua inspiração na obra de Le Bon.” Seria paradoxal, se não fosse de propósito, o portal não entender que um aspirante a ditador buscaria até na Bíblia uma justificativa para tomar o poder dentro da agitação política cotidiana de seus dias. Basta olhar para o Brasil evangélico. Repito: este desvio intelectual de achar que uma filosofia política precisa de “encorajadores”, provém da academia e de sua tradição livresca de atribuir o mal ancorado no pensamento de intelectuais e não na mente do déspota. E circula intensamente nas teorias da conspiração. No entanto, apresenta duas questões contraditórias: 1) que os intelectuais pelo seu pensamento é que fazem os acontecimentos do mundo; 2) que eles são os responsáveis pelos males causados pelos grandes déspotas.

Gustave Le Bon repetidamente enfatizou a superioridade do desenvolvimento cultural anglo-saxônico sobre o latino em aspectos como a educação para a prática e não para a formação de teóricos defasados da vida profissional, como era a essência da educação latina, com cursos superiores voltados para a formação de inadaptados que se tornam agitadores permanentes, e a organização social burocrática, tema depois desenvolvido por Alan Pereyfitte em O Mal Latino.

Le Bon mostra como a razão pragmática é superior à razão teorizante na vida social, e critica impiedosamente o instinto de rebanho, sobretudo o que nos interessa: o atavismo latino-americano de rebeldia impotente, incapacitante, retórico e grandiloquente, mas vazio de atitudes nos movimentos revolucionários do século XIX e XX. Achava uma decadência moral injustificável dos latino-americanos que, sentados num tesouro inesgotável de recursos naturais, sublevar-se periodicamente para ocupar o poder sem nada mudar, enquanto as nações europeias se transfiguravam com a agitação do progresso tecnológico.

Mas existem tantas razões para ocultar Le Bon da nova geração de estudantes de psicologia social, sociologia e história, que ficam claras quando vemos que o alvo é silenciar sobre nossos vícios institucionais, retratados por ele como uma herança latina. Vejamos um exemplo:

“M. P. Bourde reportou um exemplo muito típico deste estado mental [recorrer ao Estado para obter subsídios, proteção, solução de problemas, etc.]. É uma história absolutamente incompreensível e irreal para um inglês ou americano, sobre o que ocorreu com os habitantes da pequena cidade X. Uma das canalizações de água quebrou, e subitamente recebeu contaminação da tubulação de esgoto vizinha. Mandar um encanador e assim reparar o acidente era uma ideia muito estreita.
Em vez disso, foi encaminhada à Câmara de Vereadores que se reuniu para discutir o acidente. Evidentemente eles precisavam se dirigir ao governo. Quatro colunas de jornal foram suficientemente escassas para relatar os procedimentos adotados. Graças à intervenção de um considerável número de ministros, senadores, deputados, prefeitos, engenheiros, etc, a requisição fez nada menos que vinte paradas nos diversos departamentos administrativos, e a decisão final levou somente dois anos para retornar à comuna. A população, neste meio tempo, continuou, com resignação, a beber esgoto, sem sequer sonhar em remediar o acidente por si própria. Os exemplos dados por Tocqueville mostram que tais assuntos eram tratados exatamente da mesma forma no ‘ancien régime’.”
E, então, Le Bon, conclui: “Temos um estado especial da mente, que é evidentemente uma característica racial. O Estado é obrigado a intervir incessantemente em matérias de regulação e proteção; mas se fôssemos creditar todas as reclamações ele interviria ainda mais frequentemente.”

Hoje diríamos que o “estado especial da mente é uma característica cultural”. A análise é tão verdadeira quanto surpreendente que sua crítica seja tão perspicaz para nosso tempo. Não seria o caso de traduzir raça por cultura e deixar o texto palatável para uma geração que criou uma histeria tal em nome do racismo que uma simples piada pode provocar um processo por injúria racial? É mais preocupante o estigma racializante do que o preconceito em si. A histeria criada em torno do racismo acabou com os programas de humor e quando isto acontece sabemos que a liberdade corre perigo. Todas as épocas totalitárias começam com o patrulhamento da sátira. E terminam em acrobacias linguísticas barrocas para contornar a repressão imposta por uma ortodoxia voltada contra a manifestação espontânea do convívio jocoso. Enfim, o racismo de Le Bon é o mesmo de Lobato. Uma insignificância dentro de um pensamento fecundo para o seu tempo. E, querer ler o passado com os olhos censores do presente, significa negar o valor da evolução social humana que é também um evolução intelectual com seus baixos, como a presente.


O caso Nietzsche

A mesma difamação sutil encontrei em Steve Pinker ao tratar de Nietzsche. Para Pinker, o filósofo alemão foi um dos inspiradores de Hitler pela sua obsessão com o grande homem. Erro crasso: a figura do grande homem nele era apenas a constatação do supercapitalista, até então desconhecida na história humana que não tinha nada a ver com governantes, porém com a emergência da revolução industrial. É a mesma tradição acadêmica da “inspiração” do tirano. Atribui-se a Nietzsche a visão do niilismo quando ele expôs o sentimento niilista formado no século XIX nas jornadas revolucionárias: o primeiro a compreender que a fusão do cristianismo com o romantismo permitiu o nascimento do socialismo, despertando pela primeira vez o negativismo dos despossuídos que iria frutificar no século seguinte com todo o seu cortejo de horrores. Considero o niilismo um dos componentes mais importantes da má consciência do brasileiro, exatamente como decorrência da segregação social em que vivemos.

Pinker enfatiza, em tom indignado, a afirmação de Nietzsche de que o cristianismo é uma religião para escravos. Mas para quem, como Pinker, que escreveu um livro inteiro para mostrar a evolução humana dos tempos da revolução industrial aos nossos dias (O Novo Iluminismo), não poderia hostilizar a afirmação de Nietzsche. O que se pode entender, com um pouco de flexibilidade, é que o cristianismo fenece lentamente à medida que o Ocidente se enriquece e prospera. A doutrina cristã, no entanto, se mantém inabalável em países da América Latina, especialmente no Brasil, cujo deficit de progresso social faz o povo apegar-se ao exemplo sandapilário de um profeta que exalta a virtude da fé no autoflagelo de procissões, e tudo o que revela o obscurantismo mental deste povo deixado à mercê das carências, condimento indispensável para o aparecimento de charlatões de todas as espécies, especialmente nas confissões evangélicas de subúrbio.

Quem conhece a atuação das comunidades católicas junto a índios e quilombolas, ao tipo de reforma agrária em que os assentados jamais recebem o título de propriedade, transformando-se em fantoches do PT para fins de mobilização permanente em suas causas, sabe perfeitamente que essas comunidades são uma religião ensinada para prometer a libertação escravizando seus adeptos.

Não posso deixar de assinalar a importância da religião católica na assistência social, no trabalho social incomparável desde Anchieta e Manuel da Nóbrega, na preservação de igrejas e relíquias artísticas, escolas, conventos e santuários, mas é fundamental entender que a glorificação do sacrifício como dogma originário não tem lugar em uma sociedade cujo progresso torna os povos desenvolvidos muito mais inclinados ao epicurismo que ao estoicismo. No entanto, há quem sustente que o agnosticismo derivado do progresso seja um dos principais problemas de nosso tempo.

Não se compreende Nietzsche sem entender que seu louvor ao dionisíaco como força vital decorria de suas duas doenças fisiológicas acabrunhantes que lhe haveriam de enlouquecer: a sífilis e os surtos seguidos de dores no estômago. Pela sífilis, ficou privado do sexo e confinado ao amor platônico; pelo estômago, à ingestão de álcool. Sem sexo e sem álcool foi obrigado a viver como um asceta a contragosto, de onde surge sua particularidade intelectual de ser um maximista com lampejos de loucura.

Para Pinker, “Friedrich Nietzsche, que cunhou o termo vontade de poder, recomenda a violência aristocrática das “bestas louras teutônicas” e dos heróis samurais, vikings e homéricos: “dura, fria, terrível, sem sentimentos e sem consciência, esmagando tudo e respingando tudo com sangue.” Mas era apenas seu ódio ao cristianismo que lhe fazia mergulhar no mundo antigo, ao perceber os valores que o cristianismo destruíra em sua ortodoxia.

Mais adiante, tratando de um tema importante do qual nada tenho a discordar, a progressofobia, coloca o nome de Nietzsche entre aqueles que não têm similaridades com ele: “Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Martin Heidegger, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jean-Paul Sartre, Frantz Fanon, Michel Foucault, Edward Said, Cornel West, e o coro dos ecopessimistas.”

Ao atribuir o “Will of Power” à ameaça de uma sociedade autocrática comandada por robôs de Inteligência Artificial, tudo indica que o psicólogo Pinker desconhece a obra de um importante psicanalista de todos os tempos, Rollo May.

Alguém que tenha lido Nietzsche poderia afirmar que ele “[é um] pessimista cultural taciturno que declara que a modernidade é odiosa, as afirmações são paradoxais, as obras de arte são ferramentas de opressão, a democracia liberal é o mesmo que o fascismo e a civilização ocidental está indo pelo ralo?” Por que Pinker coloca Nietzsche no meio dos luminares da esquerda?

A difamação deixa de ser sutil e passa a ser obsessiva. No último capítulo, nos oferece uma conclusão estupefaciente: “Nietzsche argumentou que é bom ser um sociopata insensível, egoísta e megalomaníaco.”

Não sei de onde Pinker tirou esta conclusão. Repete o erro do historicismo quando diz que o mundo é guiado pela influência dos intelectuais: “Obviamente, Nietzsche ajudou a inspirar o militarismo romântico que levou à Primeira Guerra Mundial e o fascismo que levou à Segunda. Embora o próprio Nietzsche não fosse um nacionalista alemão nem um antissemita, não é coincidência que essas citações saltem da página como a quintessência do nazismo: Nietzsche tornou-se postumamente o filósofo da corte nazista.”

Primeira difamação: o militarismo precisa de um inspirador. Segunda difamação: a corte nazista era carente de um filósofo que lhe esclarecesse as ideias. A tendência dos intelectuais de se atribuírem importância em assuntos nos quais eles apenas comparecem como figurinistas do coquetel com que os líderes autocráticos se confraternizam em justificações, prova que eles não conseguem diferenciar o real pensamento das tolices com que os tiranos costumam se autoelogiar. Falta um pouco de senso literário a estes acadêmicos.

São estas correlações que formam a maior parte das falsidades do pensamento intelectual contemporâneo.
E Pinker não está sozinho. Entre nós, o grande diplomata e escritor Meira Pena escreveu um pequeno livro analisando a obra de Nietzsche pelo lado negativo, com a mesma tônica com que se criticava Maquiavel até meados do século XIX, cujo eufemismo guardava o significado para todas as maquinações astuciosas dos pretendentes ao poder.

Octavio Paz, talvez o crítico mais importante de todos os tempos na América Latina, tem opinião contrária à clerezia acadêmica: para ele Nietzsche, sobretudo no livro A Genealogia da Moral, “me ensinou a ver o que estava por trás de palavras como virtude, bondade, mal. Foi um guia na exploração da linguagem mexicana: se as palavras são máscaras, o que há por trás delas?

Existe uma diferença entre os intelectuais orgânicos que se engajaram na defesa dos ditadores, largamente citados por Pinker, como Sartre, e os pretensamente “inspiradores”. Aqueles que escreviam artigos e ensaios de louvação dificilmente podem ser comparados com outros cujas ideias sequer foram entendidas post-mortem pelos oportunistas, mas cujos nomes eram usados como vitrine de respeitabilidade.

Pinker provavelmente desconhece que em Minha Luta, Hitler traça elogios a Shakespeare e Goethe. Devemos portanto concluir que estes dois atores serviram de inspiração para o nazismo, como fez com Nietzsche? Vejamos o que Hitler diz:

“Ainda na época de Frederico, o Grande, ninguém se lembraria de ver nos judeus outra coisa senão ‘o povo estranho’, e até Goethe se mostrava horrorizado com o fato dos casamentos entre cristãos e judeus não serem proibidos legalmente”. Goethe, portanto, santo Deus, não era nenhum retrógrado nem "ilota, o que o fazia falar era nada menos do que a voz do sangue e da razão.”

E, mais adiante, continua o autor de Minha Luta:

Mas, na realidade, o que são Goethe, Schiller ou Shakespeare em comparação com os heróis da nova poesia alemã? Gastas e obsoletas coisas de um passado que não podia mais sobreviver! A característica desses literatos é que eles não só produzem somente sujeira mas, pior do que isso, lançam lama sobre tudo o que é realmente grande – no passado”.
Esse sintoma se verifica sempre nesses tempos de decadência. Quanto mais baixas e desprezíveis forem as produções intelectuais de um determinado tempo e os seus autores, tanto mais odeiam esses os representantes de uma grandeza passada.” Aí está uma boa pista para seguir o pensamento de Hitler. Deixo ao leitor interpretar a contradição flagrante e confusa entre Goethe, Schiller e Shakespeare comparados com os “heróis da poesia alemã”; que não foram “inspiradores” de Hitler.

Não existe um comportamento humano de parte dos intelectuais que não possa ser questionado, por melhor que ele seja. Apenas como anedota da recorrência intelectual do “inspirador”, narro uma pequena experiência que tive nos EUA.

No dia em que cheguei em Michigan para residir três anos e seis meses, em abril de 1982, ocorreu um assassinato em um estacionamento no centro de Detroit. A vítima era um chinês, tomado por japonês por dois ex-operários do setor automotivo recentemente demitidos. O motivo do homicídio era punir os japoneses pela enorme importação de veículos Toyota que vinha causando desemprego e consequente mal-estar nos meios empresariais e políticos da sociedade. Vigorava, naquela época em Detroit, a opinião de que não competia à indústria automobilística construir robôs para a montagem de veículos, por não ser uma atividade fim. Tal procedimento já vinha sendo adotado no Japão, o que levou a indústria de Detroit a mudar de ideia por perda de competitividade. No entanto, apesar dos apelos da mídia para não se consumir automóveis importados, poucos meses depois fiz amizade com um professor de música de uma universidade das redondezas que me mostrou seu carro no estacionamento. Era um Volvo. Quando lhe perguntei por que adquirira um carro importado, me respondeu que era mais seguro que os “locais”. Achei muito curiosa aquela resposta.

No entanto, incapaz de desconfiar do cansaço do leitor nas mais de 800 páginas do livro Iluminismo Já, ficamos sabendo que Pinker comprou um carro novo, quatro décadas e meia depois, da marca Volvo, por ser mais seguro. Evidentemente que o velho professor de música de Michigan não foi o “inspirador” de Pinker quatro décadas atrás, porque não existe inspiração. Apenas prova que certas coisas presentes no ambiente acadêmico não se dissipam com os novos tempos. São o mindset institucionalizado que persiste e que leva muitos a considerar como precursores uns dos outros.

Se a experiência humana pode contribuir com o pensamento que nos forma como seres, a DIFAMAÇÃO SUTIL trabalha do lado oposto da coleta dos fatores positivos na obra dos autores que contribuíram para ela. Procura dilacerar seus erros e aspectos controversos, suas “influências” involuntárias, como se os tarados de qualquer época não fossem justificar seus atos nas interpretações psicóticas de pessoas honradas para justificar seus fins.

Em primeiro lugar, as difamações sutis não partem apenas de membros da academia, mas de amplos setores da ideologia do cancelamento. O procedimento adotado julga os fatos históricos em função dos parâmetros atuais e não da época em que se revelaram.

O segundo caso, atribuir a pensadores com um século ou mais de antecedência a origem do pensamento de uma doutrina autocrática, é não só um erro, como uma difamação utilizada para desviar as novas gerações do conhecimento desses autores.


Um caso brasileiro típico

Entre nós, a comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna de 22 teve a presença do jornalista Ruy Castro no programa Roda Viva para falar sobre o acontecimento. Esse carioca da gema procurou minimizar o episódio histórico argumentando que Paulo Prado, um dos mecenas das artes em São Paulo, provinha de uma família de bandeirantes escravocratas. O que isso tem a ver com a agitação artística de 22? O qualificativo pejorativo de escravocrata associado aos bandeirantes é uma novidade das distorções do século XXI (antes era visto como um fato intrínseco da história da conquista territorial do Brasil), e tem sido amplamente utilizado pelos militantes do cancelamento. Afirmou Ruy Castro que ninguém mais lê aqueles autores, pois de toda a turma, Oswald de Andrade já foi pro saco, e Mario de Andrade ainda permanece, talvez o último.

A ligeireza de Ruy Castro é não entender que os cariocas estavam bem representados no Teatro Municipal em 22. Senão vejamos: o homem que comandava a mesa do espetáculo era Ronald de Carvalho, um carioca. Lá estavam também os cariocas Vila Lobos e Di Cavalcanti, para citar os mais famosos. O principal escritor paulistano – Monteiro Lobato – não foi convidado. Não foi portanto um acontecimento meramente paulistano, senão pelo patrocínio das artes ser financiado em SP. E associar a Semana de Arte Moderna ao escravismo é apenas um infantilismo intelectual e uma recorrência à um estigma social para difamar um evento histórico. A forçada atribuição de culpa dos antepassados é um dos artifícios do novo totalitarismo que se engendra no horizonte.

Borges costumava rir-se da fama de escritor preferido quando ironizava que ninguém seria capaz de adivinhar as preferências dos leitores do século XXI. Grandes nomes da literatura desaparecem e novos ocupam a simpatia das novas gerações pela simples ação da reprodução humana diferenciada nas forças enigmáticas da transvaloração social. Relativamente à Semana de Arte Moderna, acho pouco inteligente que Ruy Castro veja no eclipse de Oswald de Andrade algo sintomático da pouca importância do movimento de 22 e não o da literatura em si para este contexto histórico de Internet, onde a literatura agoniza e a Inteligência Artificial se anuncia como uma grande coautora do gênero. Na verdade, no Brasil nada se lê do legado literário escrutinado por Wilson Martins.

Contra o mote de que “a ocasião faz o ladrão”, Carlos Drummond de Andrade afirmou que “a ocasião faz o furto, o ladrão já nasce pronto”. O mesmo vale para os ditadores supostamente inspirados por intelectuais anacrônicos.

Se os autores influenciam ditadores como influenciam leitores, a conclusão óbvia seria uma apologia liberticida: excluam-se esses autores e a humanidade estará salva de novos déspotas. Não se engane com este paradoxo: ele está em gestação insuspeitavelmente com grandes espertalhões a serviço de causas extraídas dos repertórios da corrupção no curso maléfico de criar barreiras intelectuais para as novas gerações com base em preconceitos da razão politicamente correta.


26 de dezembro de 2024

A Perigosa Ligação Entre Cultura e Prepotência

Osman Lins

Ο fenômeno é bastante conhecido: certos países, com uma forte produção literária e artística, tendem a exportar as suas obras; outros, de produção mais escassa, tendem a consumir obras de fora. Diz Robert Escarpit que "mais vale uma literatura medíocre capaz de dialogar com o seu povo que uma 'boa' literatura surda à voz daqueles a quem fala e dos quais ela deve ser a expressão". (1) O mesmo autor, entretanto, adverte: "Se não se tomam precauções para manter sistematicamente ligações com o estrangeiro, devem-se temer as conseqüências da consangüineidade cultural". (2) E dá como exemplo desta última tendência a Inglaterra, com uma grande produção autônoma, mas pouco aberta às contribuições vindas de outros centros, o que induz à mencionada "consangüineidade cultural", expressão aliás muito feliz.

Robert Escarpit (autor estrangeiro, aqui invocado para discutirmos um problema cultural brasileiro) não fala por falar. Trata-se de um dos maiores estudiosos, no mundo, dos problemas do livro. Das citações acima, depreendemos que um país deve estimular e valorizar a sua literatura (e, naturalmente, todas as suas expressões artísticas, como a música, por exemplo); mas que deve estar aberto às obras vindas de fora. Tanto o ilhamento na própria cultura como o servilismo a culturas alienígenas redundam em empobrecimento.

Qual o desejável, então? Certo equilíbrio entre a contribuição local e a recebida de fora; certo discernimento na escolha (na escolha, digamos, dos livros a editar ou das músicas a gravar). Tal não acontece aqui, e em certos campos, como no dos enlatados de TV, a invasão é verdadeiramente arrasadora. O brasileiro, hoje, nasce e cresce recebendo pela televisão mensagens de segunda ordem, vindas principalmente dos Estados Unidos, todas — o que é pior — infiltradas de uma publicidade disfarçada (ou ostensiva) sobre aquele país.

Conclui-se, sem esforço e sem exagero, que, no Brasil, registram-se as duas falhas apontadas: a) há um excesso na importação de produtos culturais; b) falta discernimento na escolha, havendo uma preferência clara, da parte dos empresários e, em conseqüência, da parte do consumidor na TV, nos livros, na música por coisas de nível inferior, pelo lixo cultural da época.

Tudo isso é verdade, e é nocivo, precisando ser discutido e combatido, tendo em vista alterar para melhor um quadro tão mau. Discutido e combatido, eu disse. Não disse: proibido. Não disse: "É preciso que o governo corrija isto". Não disse: "Que venha uma lei para sanear nossa cultura". Não disse: "Deve-se taxar mais alto o produto estrangeiro". Não penso em qualquer medida repressiva, vinda do alto, para resolver com uma penada problemas culturais, sempre altamente complexos.

Estas notas vêm a propósito de um fenômeno que, ultimamente, toma corpo no Brasil. Sob a alegação de que a nossa cultura está ameaçada, há uma tendência oficial, já concretizada em atos e órgãos, no sentido de purificá-la, de nacionalizá-la. Ora, se acho que realmente há uma proliferação de produtos culturais ordinários importados, altamente perniciosa, não acho que ela possa ser debelada ou enfrentada com simples proibições ou obrigatoriedades. Isto seria considerar de um ponto de vista administrativo um problema cultural. Escolho, entretanto e a posição me parece não apenas correta, mas lógica, considerar os problemas culturais de um ponto de vista cultural.

Quer dizer: a integridade cultural de um povo faz-se através das ideias. As mudanças culturais duráveis se fazem através do debate, do confronto de opiniões. É perfeitamente possível, por exemplo, de um dia para o outro, só se permitir a publicação, no país, de livros brasileiros; é perfeitamente possível interditar totalmente a emissão, pelas estações de rádio, de música estrangeira; perfeitamente possível taxar de tal modo o disco e o livro estrangeiro que eles se tornem inacessíveis; perfeitamente viável impedir que as emissoras de TV introduzam os enlatados nas suas programações. Sim, não é impraticável, em nome da nossa integridade como povo, das nossas tradições e mesmo sob a alegação de combater o uso de drogas psicotrópicas como o fez, pela imprensa, o compositor e maestro Marlos Nobre, para quem a música estrangeira (conclusão estranha!) induziria a juventude brasileira ao consumo de entorpecentes —, transformar o país numa ilha cultural. Mas, em primeiro lugar, tal insulamento não seria de modo algum fecundo e desejável. Em segundo lugar, qual o valor de tais medidas, se não repousam verdadeiramente num processo de amadurecimento? Cessado o freio, voltaríamos, na melhor das hipóteses, à mesma situação de antes, sem qualquer evolução verdadeira. Um ser humano não muda e evolui sem que colabore com isto. Ninguém muda de fora para dentro. É necessário que alguém tome consciência do seu estado, convença-se da necessidade de mudança e pode ser que com a ajuda de outros empreenda-a. Nessas condições, uma mudança tem sentido. Se um homem, porém, é forçado a agir diferentemente, se uma força exterior o dobra, que houve na verdade? Desaparecendo a pressão, o indivíduo traz consigo os mesmos vícios.

Com os povos não é diferente. Necessário que os povos adquiram uma consciência nova, que tomem consciência do que lhes é nocivo, e, de dentro para fora, empreendam suas mudanças.

Isto, é evidente, não se faz da noite para o dia. Não será, sequer, o trabalho de uma só geração. Todos esses fenômenos são árduos e lentos, com idas e vindas, com avanços e recuos. Assim pensamos nós, que reverenciamos a cultura.

Difere, nosso pensamento, do que julgam os indivíduos penetrados da noção de autoridade. Estes, adeptos da força, estão convencidos de que, obrigando ou proibindo, mudam tudo: tanto os indivíduos como os países. Ora, espanta e faz medo que as pessoas ligadas à cultura e das quais, por isso mesmo, esperamos, diante de assuntos culturais, uma atitude cultural, venham engrossando as águas de correntes não culturais com os seus pronunciamentos e atitudes. Como se fossem portadoras de autoridade, e não portadoras de cultura.

O fato, mais ou menos repetido, merece a atenção de todas as pessoas em condições de refletir sobre ele. Apresenta uma característica hoje muito em uso; liga pedaços de verdade a coisas inaceitáveis. Enxerta-se alguma verdade no absurdo, de modo que este se apresenta como demonstrado e provado. E não é raro contrariando um axioma da velha Aritmética, o de que não podemos semear quantidades heterogêneas — misturar fatores disparatados. O mesmo compositor Marlos Nobre, nas declarações a que me referi, ao dizer que os nossos "hábitos de vida, maneira de falar, de dançar e de postura antitradicionais" estavam sendo destruídos pelo excesso de música estrangeira, alude a "uma forte retração do mercado de trabalho para os músicos brasileiros". Quando se sabe que não tem sentido misturar autonomia cultural com taxa de desemprego esta, sim, ligada a problemas administrativos.

Nossa cultura ressente-se de várias enfermidades e devemos lutar contra elas. Mas lutar através do debate, da discussão, de uma tomada de consciência, de uma mudança interior, lenta, mas viva e sã. Culturalmente afinal e, tanto quanto possível, livremente. Nunca mediante o dirigismo, o autoritarismo, a repressão.


1) Escarpit, Robert, La Révolution du Livre, Presses Universitaires de Fran- ces, Paris, pág. 95.
2) Idem, pág. 104.

(1976)


1 de julho de 2024

O Declínio da Novela

By Carlos U Pozzobon

Há algum tempo escritores e jornalistas têm se dedicado ao tema da ausência de leitores para obras de ficção, quando comparado com a situação da novela antes da revolução digital. Os argumentos são curiosos e ao mesmo tempo inaceitáveis: Joseph Button, por exemplo, afirma que a crise da novela se deve à crise do Protestantismo, pois o romance seria uma forma de ligação do indivíduo com sua transcendência.

Concordo plenamente que o gênero de ficção tenha se deslocado da escrita para o audiovisual. Desde os velhos tempos em que Hollywood fazia sucesso espetacular com temas literários e policiais aos nossos dias das séries tipo Netflix, a migração de leitores para a condição de telespectadores tem sua razão de ser:
1) Em primeiro lugar, a pulverização do conhecimento, criando um mercado forte para livros de referência.
2) A recorrente expansão da literatura anglo-saxônica em detrimento das literaturas nacionais, com o mesmo modelo de expressão e estilo. Este modelo fez escola, cansou os leitores e as outras literaturas não foram capazes de ocupar seu lugar, em parte porque a seguiam, em parte porque não houve mais mudanças significativas nas formas de expressão.
3) A extinção do estilo de vida atomizado e tediosamente rotineiro que caracterizava o homem urbano na sociedade analógica. Era um tempo de menos contatos e mais apelo ao entretenimento intelectual.
4) A emergência das redes sociais e do modo de vida online.
5) A popularização de temas antes literários e agora de análise particular de um conhecimento, como a psicologia, que concorre para a exploração dos sentimentos, emoções e todas as manifestações da mente na forma de conhecimento descritivo e não literário.

A perda de interesse social pela literatura tem implicações curiosas com a subjetividade humana no mundo em que vivemos. Poderíamos dizer que a literatura se reserva a um tipo de discurso que não se encontra em outros conhecimentos?

A resposta é positiva, mas se sabe muito pouco a respeito disso. Considere um texto do tipo:
“O Estado é o mais forte desmoralizador do caráter. Mais que os vícios, o álcool, o jogo, a morfina, a cocaína, o tabaco, ele nos tira toda a nossa dignidade, todo o nosso amor-próprio, todo o sentimento da realidade de nós mesmos.
Muitas daquelas eram pessoas de educação, entretanto, para obter isso ou aquilo, se tinham que agachar, que adular um tal Bonifácio que, no fim de contas, não passava de um criado do Sr. Presidente. Depois disso tudo, que sensação delas mesmas poderiam ter? Fossem servidas ou não, sairiam degradadas.”
“Na terra em que estava, não havia nada disso, não havia nada de superior naqueles homens todos que tão de perto conheci. Eles queriam os subsídios, os ordenados e as gratificações e a satisfação pueril de mandar.
Falavam em princípios republicanos e democráticos; enchiam a boda de tiradas empoladas sobre a soberania do povo; mas não havia nenhum deles que não lançasse mão da fraude, da corrupção, da violência, para impedir que essa soberania se manifestasse.”

Um professor, um jornalista ou mesmo um analista social jamais escreveria com estas palavras, porque elas só existem na imaginação do escritor de ficção. E ele é Lima Barreto, nas aventuras do Dr. Bogoloff.

Qual o conhecimento que a literatura nos apresenta que as demais áreas de estudos humanos não fornece? Eu arrisco a dizer que ela só pode ser valorizada se renunciar aos truques narrativos para se focar na crítica social através de seus personagens e também, e aqui está a novidade, de análise social em conformidade com o “espírito do livro”. Quando a literatura não muda seu enfoque, ela termina declinando como os gêneros musicais que se esgotam na repetição.

Em meu livro A Insondável Matéria do Esquecimento, trato do tema do descontentamento. Não sei se é corriqueiro e tenha sido escrito por gente mais qualificada, mas abordo o descontentamento com o país, a realidade cotidiana até a questão filosófica fundamental que consiste na necessidade humana de enaltecer o passado e profetizar o futuro contra o presente como uma qualidade essencialmente intelectual. E daí, o perigo que a educação pode causar na formação de rebanhos de descontentes com a decantação de valores crescentes de insatisfação social. Inicio falando de uma mulher encurralada pela consciência de estar em um labirinto sem possibilidade de realizar as aspirações pessoais e chego à dinastia Tchéu da China no ano 370 d. C.

Sei que os analistas sociais e psicólogos vêm tratando desse assunto há décadas, provavelmente sem a erudição de um Rollo May, mas acredito ter involuntariamente (toda descoberta literária é involuntária) construído algumas pontes que até então não foram abertas à discussão: quais os malefícios da educação, isto é, de um certo tipo de saber, ou ainda, da preparação de ruminantes filosóficos sem nenhuma relação com a vida prática?

A vulgarização do conhecimento não está associada ao declínio literário? É uma pergunta difícil de responder neste instante, mas o fato é que a literatura não é mais indispensável ao entendimento de nosso universo subjetivo. Poucas pessoas se encantam com a linguagem e suas formas de expressão. A ironia e o riso não são mais cultivados como catarse. A maioria detesta se engasgar com termos e expressões que desconhece porque vive em um estado de frenética ansiedade pela informação que lhe chega por todos os poros e as torna zumbi das mídias, da avalanche de meios e recursos midiáticos. Creio que este estado de ansiedade é característico deste século e certamente a humanidade descobriu a melhor forma de esquecer de si mesma: passar o dia inteiro bombardeada de informações que nada lhe dizem de seu mundo interior.

A chamada morte da novela pode ser entendida como um processo de seleção natural de tudo o que produzimos. Nosso repertório literário do passado fica assim resguardado do esquecimento, enquanto a explosiva produção atual sucumbe ao desinteresse. O homem digital já está cativo do audiovisual. O homem analógico ainda tem na narrativa literária sua mais importante expressão.

Na literatura tradicional, o leitor tinha na novela um conjunto de informações inacessíveis em seu universo privado. Era imprescindível ler para conhecer as referências eruditas. Com a Internet tudo mudou. O saber está disponível em conta-gotas como Wikipédia e blogs acessíveis por motores de busca. Neste sentido, a curiosidade é satisfeita sem a longa narrativa que caracteriza o romance ou novela, embora os temas tratados sejam interiores ao homem e ninguém se interesse por personagens fictícios além do cinema.

Com tecnologias cada vez melhores e mais intrusivas, pode se dizer que, parodiando a lei de Murphy, a literatura vai perdendo leitores em proporção direta com o aumento da banda larga.

Isto não quer dizer que vá morrer. A literatura é imortal. Se parássemos de escrever ficção, o repertório existente já seria suficiente para mantê-la como o principal patrimônio cultural da humanidade. O que se passa no presente é um aumento vertiginoso do darwinismo literário, onde os mais aptos são os que melhor se enquadram aos gostos dos leitores forjados pelas badalações da imprensa, como notou Emil Farhat vinte anos atrás.


17 de agosto de 2023

O ritmo acelerado da tecnologia está nos deixando malucos

by Guy de la Bédoyère — 16 Agosto de 2023

Bem mais de meio século atrás, um dos meus heróis da TV era James Burke. Prestei atenção a cada palavra sua, especialmente durante as missões Apollo que ele apresentou para a BBC. Eu também o adorei no Tomorrow's World da BBC com suas visões de um futuro onde os computadores de cartão perfurado com todo o poder de processamento de um ralador de queijo controlariam nossas vidas diárias enquanto andávamos por aí com telefones celulares do tamanho de bastões de críquete e morávamos em casas mantidas por robôs estilo Planeta Proibido. Eu amei o otimismo revigorante de Burke.

Burke desenvolveu a ideia de conexões (em uma série de programas chamada Connections, nada menos), a noção de que encontrar links entre todos os tipos de conceitos, processos e materiais inesperados estava no cerne do desenvolvimento humano. Crucialmente, ele identificou que a taxa crescente de fazer essas conexões nos tempos modernos também estava impulsionando uma taxa acelerada de mudança em todas as nossas vidas. A partir disso, ele previu que o ritmo da mudança levaria impiedosamente a um ponto em que excederia nossa capacidade de lidar com ele.

Burk estava certo. Essa hora chegou. E a IA, com sua capacidade de computar conexões em um nível sem precedentes e muito além da capacidade da mente humana, já está promovendo mudanças em um ritmo inimaginável apenas alguns anos atrás. O problema é que ainda é inimaginável, porque literalmente não conseguimos entender o que está acontecendo diante de nossos olhos.

Como historiador, procuro sempre focar no que torna o nosso tempo diferente dos outros. Os seres humanos não mudam. Mas as máquinas e o mundo ao nosso redor sim. Tenho em casa um relógio feito por John Tolson, que foi aprendiz em 1709 em Londres durante o reinado de Anne (1702–14). O relógio, com um pouco de manutenção, ainda funciona – uma coleção vibrante de rodas e pesos. As habilidades que Tolson adquiriu o serviram por toda a vida e foram boas para gerações de relojoeiros depois que ele morreu.

Hoje, esse nível de mecanização ainda é facilmente compreendido pelos seres humanos. Os entusiastas ainda podem consertar e até construir esses relógios mecânicos, assim como outros podem reconstruir motocicletas dos anos 1970, esculpir madeira, pintar quadros, fazer potes e uma série de outras habilidades manuais. É perfeitamente possível, com treinamento e experiência, entender tais artefatos. Daí a conclusão em 2008 da novíssima locomotiva a vapor Peppercorn Class A1 Tornado, da década de 1940, em que o Príncipe de Gales em 2025 se tornará sócio. Um grupo de entusiastas armados com as habilidades, as ferramentas e o financiamento podem construir novos motores a vapor, assim como outros podem construir Spitfires.

Mas a mudança tecnológica significa que hoje nossas casas estão cheias e nossas vidas são governadas por máquinas que são impossíveis para a maioria de nós até mesmo tentar entender, quanto mais manter ou construir. Você não pode consertar um smartphone com um conjunto de chaves de fenda em miniatura (embora uma vez eu tenha consertado um processador de computador com as pontas cortadas de um grampo). A manutenção do carro é um hobby para quem tem carros antigos, não para proprietários de modelos atuais. Não há habilidades duráveis comparáveis às de John Tolson a serem adquiridas em nosso mundo digitalizado. Conhecimento e habilidade tornam-se rapidamente obsoletos em uma fúria implacável de atualizações.

É também o caso, como Carl Sagan apontou, de quem nos lembrou outro dia nestas páginas por Hugh Willbourn, que nós "arranjamos as coisas de modo que quase ninguém entende ciência e tecnologia", apesar de dependermos totalmente de um mundo governado pela ciência. O brilhante Sagan estava certo, mas era um apelo para deixar a ignorância para trás. Infelizmente, chegamos ao ponto em que nenhum volume curricular de educação levará a um nível de compreensão que corresponda ao ritmo da mudança que está nos atingindo agora.

Pior ainda, os governos estão encorajando deliberadamente mudanças imprudentes. A Covid foi utilizada descaradamente como um pretexto para digitalizar ainda mais todas as nossas existências e nos envolver na dependência de computadores, telefones e software. As preocupações ambientais estão sendo usadas para impor mudanças e obsolescência em todas as partes de nossas vidas, desde carros até a maneira como aquecemos nossas casas. Independentemente do que eu, você ou qualquer outra pessoa pense sobre bombas de calor e carros elétricos, estamos sendo impulsionados por uma esteira transportadora na qual máquinas perfeitamente boas que já foram fabricadas estão sendo descartadas muito antes de precisarmos novas máquinas, cuja pegada de carbono é convenientemente ignorada, bem como os custos operacionais.

E se imaginou que a mudança para o seu novo carro elétrico ou bomba de calor o ia deixar algum tempo em paz, esqueça. Antes que você perceba, você será informado de que ambos estão obsoletos e você precisa mudar para substitutos mais novos, melhores, mais eficientes e mais ecológicos. Tudo isso está sendo feito coercitivamente por meio de legislação, incentivos financeiros ou punições e manipulação. Se você pode ser multado por usar certos veículos nos feudos do rodízio Ulez, quanto tempo levará antes de ser multado por ainda ter uma caldeira a óleo para aquecer sua casa?

O princípio científico de formular hipóteses e testar todas as hipóteses até a destruição antes que possam ser aceitas é bastante fácil de entender. Mas não é intuitivo para o cérebro humano normal; temos que nos esforçar para manter esse modo de pensar. Mesmo os cientistas recorrem instintivamente a preferir aquilo em que acreditam ou gostariam de acreditar, a menos que possam controlar a si mesmos. Afinal, eles são apenas humanos e também são vítimas de emoções humanas normais, como o desejo de se destacar em seus campos, atrair financiamento, ser bem-sucedido e sentir-se valioso, além de ciúmes e uma série de outras vulnerabilidades.

A crença sempre intervém no ponto em que a compreensão desiste. Por um tempo, a partir do século XVI, foi possível para a maioria das pessoas acumular um nível de conhecimento científico e aceitar gradualmente as mudanças que as cercavam, ao mesmo tempo em que dominava as habilidades necessárias para participar desse admirável mundo novo. As recompensas foram mudanças que renderam enormes avanços médicos, o tratamento de esgoto, casas mais quentes, eletricidade e todas as suas glórias, mecanização, aviação e uma série de outras inovações que tornaram impensável que pudéssemos reverter.

Mas não somos mais capazes da mesma maneira de entender o que está impulsionando a mudança causada pelo homem e a constante perda de controle sobre nossas próprias vidas. Não é de admirar que o pânico e o medievalismo instintivo da mentalidade humana estejam se estabelecendo. Acho que não estou sozinho no sentimento de frustração pelos intermináveis updates dos equipamentos eletrônicos em nossa volta, as mudanças incessantes em como supostamente devemos fazer transações bancárias, estacionar nossos carros (desde que possamos ter um), interagir com o governo ou qualquer outra organização. Supõe-se que tudo isso seja para melhor, mas o efeito avassalador é tornar as coisas piores, mais difíceis, mais frustrantes e desanimadoras.

Tudo isso é agravado por uma narrativa diária acelerada de mudanças catastróficas no meio ambiente, fazendo com que percamos de vista o fato de que nosso planeta muda o tempo todo. As últimas semanas foram extraordinárias com uma nova visão apocalíptica quase todos os dias. Elas incluíram o aquecimento dos mares e agora que terá que haver Ulezs para edifícios, partindo de alegações de "fervura global" (feitas por pessoas aparentemente desconhecedoras do ponto de ebulição da água). Tolices hiperbólicas da moda que servem apenas para provocar medo tornam impossível para qualquer pessoa normal chegar a um entendimento equilibrado e informado.

Infelizmente, o pânico também afeta os cientistas. A crença também se estabelece tanto entre os cientistas quanto entre qualquer outra pessoa. Existem agora tantos cientistas, tantas hipóteses científicas, tantas instituições de pesquisa, tantos artigos, conceitos, reivindicações, contra-alegações, críticas e análises – bem como a taxa extraordinária de mudança e para não falar da epidemia de pseudociência – que é impossível para qualquer pessoa dentro da ciência profissional entender ou ler até mesmo uma pequena parte do que está lidando, muito menos o resto de nós.

O resultado é que nós, simples mortais, somos apresentados a opiniões científicas divergentes que não podemos avaliar, cada uma das quais somos exortados por seus proponentes a aceitar como uma certeza.
Mas como a ciência é frequentemente apresentada como "A Ciência", com que diabos a pessoa comum estará em posição de distinguir a pseudociência da ciência real?

Aqui está uma manchete da BBC de 22 de julho de 2023: 'Os registros climáticos caem, deixando a Terra em território desconhecido - cientistas.' Leia um pouco mais abaixo a história e você chegará a 'alguns cientistas ... dizem'. Dois dias antes, a BBC disse: “Um importante cientista climático britânico disse à BBC que acredita [minha ênfase] que a meta de limitar o aquecimento global a 1,5°C será perdida”.
Acredita? Acreditar não é ciência, seja bem informado ou não.

Neste novo mundo de uma cavalgada de mudanças, as opiniões científicas entraram em uma era de apocalipticismo recreativo competitivo. Muitos gastam seu tempo nos dizendo do que devemos ter medo, em vez de fazer o que os verdadeiros cientistas fazem, que é resolver problemas.

O que devemos fazer com a modelagem? Essa contemplação matemática da bola de cristal é uma versão moderna de olhar para as entranhas de uma vítima de sacrifício, uma fantasia de conhecer o futuro fundada no culto dos números. É outro agente impulsionador de mudanças porque prevê futuros que é muito difícil de satisfazer.

A maioria das pessoas não consegue acompanhar a matemática envolvida, mas não é preciso muito para descobrir que mesmo os proponentes da modelagem também não entendem completamente a matemática. Pior ainda, os modeladores apresentam modelos diferentes e depois discutem entre si, descartando a metodologia um do outro. Como diabos o resto de nós pode decidir no que acreditar e entender? Todos eles fingem ser capazes de prever o futuro. Qualquer desvio da média é considerado uma aberração e um sinal do iminente fim do mundo. Mas o futuro tem o hábito infeliz de seguir seu próprio caminho, não o caminho que uma gangue de especialistas decidiu que seguiria com base apenas nos parâmetros que eles incluíram em seus modelos.

Então, é claro, quanto mais apocalíptica for a previsão de modelagem, mais provável será que ela seja captada pelos idiotas crédulos da imprensa, ganhando atenção dos cientistas envolvidos e vendas para os jornalistas. Essa parceria tóxica, que Carl Sagan também identificou severamente como “a cooperação desinformada (e muitas vezes a conivência cínica)” da mídia, acelera a taxa de mudança em um festival de pânico de desinformação e confusão.

O que estamos vendo, portanto, é uma reação com uma crescente reversão à crença, culto e faccionalismo. Está acontecendo em todos os lugares. A religião organizada foi tão degradada pela guerra, opressão, abuso sexual e uma série de outros males, que novos cultos surgiram em seu lugar, venerando causas, não deuses.

Ao nosso redor, podemos ver esses cultos disfarçados de grupos de interesse informados e racionais. Eu não preciso nomeá-los. Você sabe quem eles são. Como os proponentes dos cultos medievais, suas crenças são movidas por um zelo justo e intolerante que os leva instintivamente a tentar esmagar seus críticos e oponentes, alguns dos quais são igualmente religiosos em seu fanatismo e oposição. Um novo mundo orwelliano foi desencadeado. Liberdade de expressão significa silêncio. Inclusão significa exclusividade. Supostamente pacíficos, é visível a latente (e por vezes aberta) agressão e intolerância no comportamento de muitos destes movimentos.

Suas ações são fruto, em parte, de um desejo desesperado de se apegar a algum nível de controle em uma época em que o controle é a última coisa que possuímos. Aterrorizados com a mudança que veem ao seu redor, alguns deles querem mudar tudo de volta e nos lançar em uma Idade Média revivida.

O pânico e a ansiedade estão entre os comportamentos humanos mais inúteis e destrutivos, sendo a base do totalitarismo. A mudança irrestrita é uma maneira inigualável de nos tornar mais controláveis, mas é um ponto discutível se está sendo deliberadamente imposta a nós ou se é algo sobre o qual perdemos o controle. Não é de admirar que o pânico e a ansiedade sejam características integrais da demência entre alguns idosos. Quaisquer que sejam os problemas que enfrentamos como sociedade, levar-nos ao pânico e à ansiedade não fará nada para resolvê-los adequadamente. O pânico provavelmente nos levará a um mundo de consequências não intencionais.

Precisamos de um meio-termo – a mudança pode ser estimulante, emocionante e o agente por trás de melhorias emocionantes para todas as nossas vidas, e os seres humanos são excelentes em lidar com a mudança. Talvez eu esteja preocupado demais. A eventualidade mais provável é que algum novo evento dramático ou mudança totalmente inesperada nas circunstâncias, ou talvez apenas uma mudança no vento, faça com que a loucura passe.

Só preciso terminar com a sabedoria de Charles Mackay:

Cada época tem sua insensatez peculiar; algum esquema, projeto ou fantasia em que mergulha, estimulada pelo amor ao ganho, pela necessidade de excitação ou pela mera força de imitação. Falhando nisso, ela tem alguma loucura, à qual é incitada por causas políticas ou religiosas, ou ambas combinadas.


Publicado no Dailysceptic

4 de agosto de 2022

O Abolicionismo Prisional e o Declínio da Academia

John O. McGinnis

Defund the police [Cortar o financiamento da polícia] tornou-se um slogan político da esquerda nas cidades de todo o país. Mas esse mantra é um pouco tímido se comparado a um novo slogan que está se firmando entre os professores de direito: Abolir Prisões. Este programa é agora regular e seriamente publicado nas revistas jurídicas mais importantes da academia. É o assunto de discussão séria em conferências e workshops de professores em todo o país. Existe agora uma indústria caseira de professores titulares que escrevem sobre suas nuances e mais, sem dúvida, em breve garantirão estabilidade por fazê-lo.

Sua proeminência e os argumentos a seu favor mostram a disposição da academia de direito e da classe intelectual em geral em tolerar argumentos tolos, desde que estejam de acordo com as modas atuais da esquerda. Em vez de construir uma estrutura para uma reforma incremental baseada em evidências empíricas, esses bacharéis agora são pagos para se engajar em retóricas utópicas – até mesmo niilistas. Pode-se pensar que esses tipos de ideias – da abolição das prisões ao desfinanciamento da polícia e à eliminação dos testes padronizados – marcam um retorno ao radicalismo da década de 1960.

Mas naquela época o radicalismo veio de estudantes contra o establishment. Agora, o radicalismo vem do próprio estabelecimento educacional. A melhor analogia histórica é com a Rússia do século XIX. Lá, a intelligentsia continha elementos radicais substanciais, oferecendo não reformar, mas destruir as instituições de sua sociedade. Fiódor Dostoiévski capturou de forma memorável seus meandros fervorosos em seu grande romance, Os Possuídos.

É importante entender que o abolicionismo prisional não está prestes a apreciar o significado disso se tornar um tema sério no mundo das faculdades de direito. A abolição das prisões não propõe tornar as prisões mais humanas. Não sugere que eles devam se tornar mais efetivamente reabilitadores, devolvendo as pessoas a um lugar produtivo na sociedade. Não defende a diminuição da população carcerária reduzindo ainda mais o número de pessoas presas por crimes não violentos ou pela libertação de prisioneiros à medida que envelhecem fora da probabilidade de cometer novos crimes. Esses tipos de reformas incrementais podem ser esquemas plausíveis para melhoria social, mas são um anátema para muitos abolicionistas das prisões. Tais reformas representam o tipo de análise custo-benefício dentro da estrutura do status quo que se opõe totalmente ao espírito de destruição das instituições.

Abolicionismo: O Argumento Básico

O argumento básico para a abolição das prisões depende da visão de que a sociedade é totalmente injusta. Os criminosos são vítimas tanto quanto as vítimas de seus crimes. Dorothy Roberts, professora da Universidade da Pensilvânia, resumiu os argumentos em um simpático prefácio de análise do mandato anterior do Supremo Tribunal produzido pela Harvard Law Review (o ensaio anual mais proeminente entre acadêmicos de direito) que encapsula essa perspectiva: “O encarceramento é o que o estado emprega para resolver problemas causados pela desigualdade social, sufocar a resistência política das comunidades oprimidas e servir aos interesses das corporações que lucram com as prisões e as forças policiais”.

Essas alegações seriam embaraçosas, mesmo se não fossem publicadas na Harvard Law Review. A ideia de que ladrões de carros e assaltantes fazem depoimentos e confissões baseados em opressão política é estúpida. Tampouco é plausível que os maus ambientes sejam a única causa da criminalidade, fornecendo uma desculpa para todos os criminosos escaparem da prisão. As prisões são usadas para encarcerar pessoas em nações com níveis amplamente variados de desigualdade econômica e social. A maioria das pessoas pobres nunca comete crimes. Seria maravilhoso se soubéssemos que conjunto de reformas sociais acabaria com crimes graves – um fenômeno que tem sido um problema durante toda a história humana. Mas nós não sabemos, e abolir as prisões sem esse conhecimento mágico é uma receita para o caos.

Culpar as corporações é bobagem. As prisões existiam antes do surgimento das corporações e mesmo com o surgimento das privatizações ainda são geralmente administradas pelos governos, não pelas corporações. E, claro, as principais vítimas das pessoas na prisão estão na mesma classe de pessoas que os abolicionistas afirmam ser oprimidas.

Outro argumento da moda para a abolição é que as prisões são uma extensão de Jim Crow [As leis de Jim Crow eram leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos], porque os presos são desproporcionalmente negros. Mais uma vez, este argumento não tem mérito em si para a abolição. As prisões são uma característica das nações sem nossa [dos EUA] história racial. Isso mostra que sua existência não pode ser explicada apenas por essa variável. A desproporção de diferentes raças (e sexos) reflete o fato de que diferentes grupos populacionais cometem crimes em taxas diferentes. Se as leis sobre drogas ou outras leis engambelam injustamente grupos minoritários, esse problema oferece um argumento para a reforma ou abolição das leis sobre drogas e outras leis, não um argumento para a abolição das prisões.

O problema da minoria perigosa

Claro, não é preciso ser um intelectual para identificar um problema gritante com a abolição das prisões. Tal como acontece com o rei que está nu, até uma criança poderia fazê-lo. Algumas pessoas na prisão são muito perigosas. Eles estão lá para matar, mutilar, estuprar ou roubar pessoas. Se soltos, muitos provavelmente nos ameaçarão com mais do mesmo. Na literatura sobre a abolição das prisões, isso é chamado de “o problema da minoria perigosa”. Observe que esse enquadramento da literatura do problema assume, sem qualquer evidência, que existem apenas algumas dessas pessoas e que, se as prisões fossem abolidas, o número de perigosos não aumentaria muito, porque nosso principal método de dissuasão desapareceria.

Alguns abolicionistas das prisões simplesmente rejeitam o problema dos poucos perigosos. Eles reclamam que essa noção não reconhece que a abolição das prisões faz parte de um programa social mais amplo, onde mudanças no sistema de educação e saúde tornariam as prisões desnecessárias. A abolição das prisões é apenas uma parte de um programa de mudança social.

Essa resposta ressalta a natureza utópica do movimento de abolição das prisões. Nenhum trabalho sério em psiquiatria sugere que os sociopatas possam ser reformados por melhores sistemas de saúde. Mesmo pessoas que não são sociopatas podem desenvolver hábitos de vida que os tornam um perigo permanente para os outros. O grau de intervenção do Estado para impedir as escolhas que levam a tais condições faria com que as sociedades totalitárias parecessem apenas levemente intrusivas na liberdade em comparação. Fazer da sociedade uma prisão à maneira de Laranja Mecânica dificilmente parece uma boa troca para abolir as prisões reais.

A mais recente contribuição para a literatura sobre a abolição das prisões, também publicada na Harvard Law Review por Thomas Frampton, professor da Universidade da Virgínia, dedica-se a responder mais diretamente aos problemas da “minoria perigosa”. Mas os argumentos são tão fracos que não convenceriam ninguém que já não fosse abolicionista. Em primeiro lugar, o artigo observa que tem havido muitas pessoas perigosas, como Jack Kevorkian, que não estão encarceradas, porque as leis não chegam até elas. É indubitável que algumas de nossas leis permitem que as pessoas escapem impunes de condutas perigosas, embora às vezes seja difícil ver como elas poderiam ser reformadas sem pôr em perigo as liberdades benéficas, incluindo a produtividade econômica. Mas abordar esse problema legal é ortogonal à questão de saber se devemos punir as pessoas por assassinato, agressão, estupro e roubo, leis que são suficientemente claras e sobre as quais há um amplo consenso social.

Outro argumento é que o sistema de justiça existente é falho, porque às vezes condenamos inocentes. Esse é um argumento para melhorar nosso sistema de julgamento, mas dificilmente para abolir as prisões, a menos que possa ser demonstrado – e não é – que uma parcela significativa das pessoas na prisão é inocente – tão significativo que abolir as prisões não resultaria em mais danos.

Terceiro – e este pode ser o argumento mais fraco de todos – Frampton observa que os poucos perigosos prejudicam os outros mesmo quando estão na prisão. Este é, sem dúvida, o caso, mas o problema da violência nas prisões apenas mostra como essas pessoas são perigosas – que mesmo quando contidas, elas encontram maneiras de prejudicar os outros. Pense no que eles provavelmente farão quando estiverem fora da prisão e tiverem menos restrições e mais possibilidades de violência.

Eu também observaria que deixar de criar um sistema que forneça o que as pessoas comuns consideram justiça, em vez do que os professores de direito conceituam em seus artigos, levará a mais violência. Se as pessoas que cometeram crimes graves forem deixadas vagando por aí com pouca ou nenhuma sanção, outros, principalmente membros da família, farão justiça com as próprias mãos. De fato, um objetivo central da punição autorizada pelo Estado é aliviar esse sentimento de injustiça e, assim, evitar as rixas de sangue que nas sociedades mais primitivas levaram a ondas de matança ao longo de gerações.

Refletir sobre esse passo central na evolução da civilização mostra por que o quarto argumento do autor – de que não pegamos todos os infratores da lei criminal – também não apoia a abolição das prisões. Se o governo tivesse uma política de não punir substancialmente as muitas pessoas que pegamos, mais violência e até dissolução social seriam as consequências.

A Situação da Academia

O que define a academia, legal ou não, é o debate entre acadêmicos – quais ideias são levadas a sério e quais não são em publicações e apresentações. As ideias de esquerda sempre floresceram na academia, muitas vezes dominando o debate. A Harvard Law Review não publica artigos sobre utopias (ou distopias) conservadoras ou libertárias, como o integralismo católico ou o assentamento libertário.

A prevalência de ideias esquerdistas na academia é previsível, porque, como observou Thomas Sowell: “O fato mais fundamental sobre as ideias da esquerda política é que elas não funcionam. Portanto, não devemos nos surpreender ao encontrar a esquerda concentrada em instituições onde as ideias não precisam funcionar para sobreviver.” [Ver resenha e fragmentos que publiquei em outro blog] Mas só recentemente as ideias absurdas tanto na aparência quanto na reflexão tornaram-se uma parte importante do debate. E os acadêmicos que obtêm status e estabilidade com as ideias contratarão pessoas como eles que podem replicá-las ainda mais. O resultado será uma maior alienação do público, que considerará a academia de direito mais do que nunca um bastião de insensatez.

Se há algo de bom no declínio da academia de direito é que essas ideias são um veneno político. Desfinanciar a polícia já é o apelo de recrutamento para que os moderados votem certo. O mantra de abolir as prisões, se pegasse os ativistas políticos, garantiria uma vitória conservadora.


12 de fevereiro de 2021

Alain Peyrefitte e a Sociedade de Confiança

J. O. DE MEIRA PENNA

Foi diplomata e escreveu livros importantes sobre o Brasil, especialmente Em Berço Explêndido e Opção Preferencial Pela Riqueza, ambos comentados no blog Fragmentos do menu Livros e Mais Livros. Foi aluno e discípulo de Jung na Suíça, e seus livros sempre são introduzidos pelo método da psicologia analítica de seu mestre. Por isso, sua compreensão de nossa herança cultural baseada nos valores da Contra-Reforma são fundamentais para o conhecimento da Identidade Brasileira tanto cultural quanto de nosso psiquismo carregado de atavismos antimodernos. Nascido em 1917 e falecido aos 100 anos de idade, deixou muitos admiradores no meio intelectual brasileiro e seguramente é uma das referências nacionais nos assuntos do século XX.

A morte de amigos e pessoas ilustres é uma fatalidade com a qual jamais nos reconciliamos. Por mais que saibamos ser parte inevitável da condição humana, o sentimento de revolta que nos atinge é tanto mais pronunciado quanto mais a essa pessoa estamos presos por laços de afeto e admiração. Foi assim que reagi à notícia do falecimento de Alain Peyrefitte, com o qual havia marcado um encontro, no início do mês passado, para comunicar-lhe os esforços do Instituto Liberal do Rio de Janeiro no sentido de publicar um de seus livros. Homem extremamente discreto, até o último momento Peyreffite escondeu a moléstia que o consumia. Disseram-me que na antevéspera de seu falecimento, ainda foi entregar ao editor as provas finais de sua última obra, o terceiro volume de C'Était De Gaulle.

Escritor, político ativo e teórico, membro do Institut e da Academia Francesa, senador, oito vezes ministro, maire da cidade medieval de Provins, Peyrefitte era uma combinação excepcional daquele ideal platônico, tão frequentemente frustrado, de filósofo e governante ao mesmo tempo. Julgo que, como amiúde ocorre, acabou preferindo as letras ao exercício do poder. Em sua enormemente prolífica atividade como escritor, dedicou-se a três temas favoritos, com um quarto ocasional.

Foi em primeiro lugar o cronista de De Gaulle e alguns de seus contemporâneos o compararam a outros, como Commines, Saint Simon e Las Cases, os de Luís XI, Luís XIV e Napoleão. No terceiro volume, por falar nisso, esperemos que faça referência à viagem do general à América do Sul em 1966 em que, presumivelmente, encontraremos observações sobre nosso país. Como historiador de um dos períodos mais importantes da história moderna da França (e da Europa), Peyrefitte tem seu nome já consagrado como intérprete do renascimento de sua pátria após o colapso que a afetou na primeira metade do século. Inicialmente diplomata, formado na famosa ENA, a escola superior que prepara a elite da administração francesa, e havendo alcançado o grau de ministro plenipotenciário, serviu em Bonn, na Cracóvia e na Conferência de Bruxelas após o que, em 1958, entrou para a política, sendo sucessivamente reeleito deputado até tornar-se senador em 1995.

Como um dos mais fiéis gaullistas, foi ministro da Informação e ministro da Ciência e Tecnologia Atômica (1966/67), em cuja capacidade contribuiu para a entrada da França no clube fechado das potências nucleares. Como ministro da Educação, colocou-se no centro do chienlit estudantil de maio de 1968, que conseguiu conter sem violência.

Foi como ministro da Justiça (Garde des Sceaux) que Peyrefitte visitou o Brasil, em outubro de 1978, com o presidente Giscard d'Estaing, quando tive a honra de conhecê-lo, interessado como estava em um de seus primeiros e mais importantes livros, Le Mal Français, publicado dois anos antes. Traduzido para o inglês, e para o espanhol e italiano com o título O Mal Latino, tenho tentado em vão interessar editoras brasileiras na soberba análise crítica empreendida por Peyrefitte, já agora como sociólogo, dos fundamentos religiosos, culturais e morais dos males que têm prejudicado o desenvolvimento e a modernização de toda a área latina.

Tocqueville e Weber

Revela-se aí fiel discípulo de Tocqueville e Weber. Responsabiliza inclusive a contra-reforma, como fazemos nós, liberais brasileiros, e a tradição do autoritarismo absolutista pelas mazelas que embaraçam, senão impedem, nossa emergência como democracias liberais, abertas ao mercado e sobrepujando o ranço patrimonialista de nossa estrutura social. Creio que em nenhuma outra obra de sociologia as origens de nossos vícios coletivos foram tão objetiva e sabiamente perscrutados em suas profundas raízes culturais ou psicossociais. Talvez seja o vezo weberiano da crítica ao romanismo centralizador e interventor de nossa estrutura sociopolítica o motivo das suspeitas de que alimentasse convicções huguenotes.

Peyrefitte, infelizmente, não estendeu suas pesquisas sociológicas à América Latina e, particularmente ao Brasil como eu esperava, após a segunda visita que realizou a nosso país, em 1987, a convite do Estado e da Associação Comercial de S. Paulo. Nessa ocasião lhe servi de intérprete, em conferência pronunciada na Avenida Paulista, e de cicerone no Rio e Brasília. Estava, na ocasião, acompanhado do filho mais moço, Benoit. Ao invés, o ilustre acadêmico preferiu desviar sua atenção para um outro tema que desde então o fascinou.

Paixão de aprender

Sofrendo, como notou o jornalista e autor liberal Guy Sorman, da "paixão de aprender", Peyrefitte publicou uma série de obras sobre a China, que visitou mais de uma dúzia de vezes. Talvez tenha almejado realizar para os chineses o mesmo que Tocqueville com sua De la Démocratie en Amérique. Em 1973, parafraseando uma frase célebre de Napoleão publicou Quand la Chine s_Éveillera... le Monde Tremblera. Esse livro foi seguido de Chine Immuable, L_Empire Immobile (1989), La Tragédie Chinoise (após o episódio do massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial) e de um pequeno ensaio, com fotografias, terminando com La Chine s_Est Éveillée (1996), ocasião em que manteve uma longa entrevista com o atual presidente chinês Jian Zemin.

Em todos esses ensaios, julgo tenha o autor compensado seu deslumbramento com o Império do Meio (Djung Guó), graças a uma crítica objetiva da complexa problemática levantada pela necessidade da China se abrir ao mundo global, enquanto procura preservar sua identidade confuciana e a difícil unidade do povo de Han, de mais de 1 bilhão de pessoas.

Teimosia oriental

O Império Imóvel foi publicado em português em 1997 pela Casa Jorge Editorial do Rio. Acompanhado de mais três volumes complementares, relata a embaixada chefiada em 1792/94 por lorde Macartney, na primeira e frustrada tentativa dos ingleses de provocarem a abertura do imenso império, então governado por seu último grande imperador, Kien Long. A China obstinava-se na arrogância de ser a potência mundial hegemônica, postura estimulada pela desconfiança da classe dominante imperial manchu. Os volumes anexos cobrem uma enorme documentação relativa às reações dos jesuítas de Pequim, dos ingleses e dos próprios chineses àquela missão diplomática sui-generis — que demorou dois anos e comportou o envio de uma esquadra e 2.000 homens de comitiva. Macartney não pôde contornar, contudo, a teimosa insistência dos mandarins no sentido de lhe exigir o humilhante kowtow, as nove prosternações diante do Filho do Céu, obrigatórias para os representantes dos vassalos.

Surpresa

Peyrefitte manifestou sua surpresa quando descobriu que eu conhecia a extrema pertinência desse episódio, no relacionamento entre o Ocidente e Ásia. Expliquei-lhe que minha carreira se iniciou na China (1940/42 e 1947/49) e que, durante anos, estudei sua história e cultura. O que destaca a tese central da obra é o contraste entre a inflexível imobilidade e introversão autárquica dos chins, postergando durante dois séculos a abertura do Império Central, até o esforço de modernização encetado por Deng Xiaoping — e a flexibilidade com que, em meados do século 19, os japoneses se adaptaram à inevitável globalização. Se o Japão é hoje a segunda potência econômica do mundo enquanto só agora "a China acorda para fazer tremer o mundo", a origem do descompasso se coloca nas peripécias dessa missão diplomática.

Criminalidade

O quarto tema que interessou o eminente escritor francês foi o problema da Justiça e da criminalidade no mundo moderno, fruto de sua experiência como ministro da Justiça. Les Chevaux du Lac Ladogala Justice entre les Extrêmes apareceu em 1982 e lhe custou caro: quase foi morto por uma bomba terrorista que explodiu na frente de sua residência, em Provins, sacrificando seu motorista. Peyrefitte defende uma legislação mais rigorosa contra bandidos, assassinos e terroristas — antecipando a ideia central que estamos emergindo da Idade das Guerras para entrar na Idade do Crime.

Mas retornemos agora ao tema principal das preocupações de Peyrefitte, expresso em escritos que vão desde 1947, Le Sentiment de Confiance, ao Du Miracle en Économie e, finalmente, a La Société de Confiance, de 1995. Com tradução patrocinada pelo Instituto Liberal, essa obra será brevemente publicada pela Editora Topbooks, sob o comando esclarecido e corajoso de José Mário Pereira e com tradução primorosa de Cylene Bittencourt.

Comentemos a questão levantada por Peyrefitte. Num artigo de 2 de março de 1997, Roberto Campos se pergunta por que, apesar das celebrizações de economistas e sociólogos, o desenvolvimento econômico continua a ser essencialmente um mistério. Campos oferece como exemplos de problemas não esclarecidos o despertar da China de um sono de 500 anos, o "milagre brasileiro" da década dos 70 que desembocou na "década perdida" dos 80, e os "dominós" asiáticos que se tornaram "dínamos".

A pergunta levantada é daquelas a que inúmeros pesquisadores têm tentado responder desde que, em 1776, Adam Smith pesquisou As Causas da Riqueza das Nações, ora salientando o ambiente cultural; ora favorecendo o tipo de estrutura institucional no mercado aberto; ora apontando para a iniciativa de governantes excepcionais que, convencidos dos méritos superiores da receita do livre câmbio sobre o planejamento socialista centralizador e uma pertinaz tradição patrimonialista, tomaram a iniciativa de atos concretos de sábia política, graças aos quais um surto de desenvolvimento milagrosamente se registrou. Estou, neste caso, pensando especialmente em Pinochet, no Chile, e em Deng Xiaoping, na China. As duas nações registram índices inéditos de desenvolvimento acelerado, que a "crise" atual não parece haver senão temporariamente interrompido.

Um caso particular que desperta nossa curiosidade é o da França. Trata-se, afinal de contas, da quarta economia mundial (depois dos EUA, Japão e Alemanha). É também uma nação que, por não se decidir francamente nem por um lado, nem pelo outro, continua dividida, angustiada e sofrendo de uma espécie de incurável moléstia social. A pátria de Alain Peyrefitte não parece haver superado a fatídica cisão esquerda X direita que a dialética do jacobinismo revolucionário em 1793 engendrou, com seu contraponto no bonapartismo ditatorial; nem tampouco o absolutismo ("O Estado sou Eu") herdado do Rei Sol, Luís XIV.

Para a integração profícua na comunidade regional e num mundo globalizado, deve todo cidadão convencer-se que a liberdade de iniciativa, a confiança na honestidade dos outros, o espírito inventivo e o estado de direito, forte e limitado, são definidos como as causas da riqueza coletiva — não havendo outras.

Ora, foi justamente Peyrefitte quem melhor procurou analisar o que chama le mal français. Ao vislumbrar as condições da sociedade de confiança que favorece o progresso, o grande ensaísta enfrentou um de seus maiores desafios. No esforço hercúleo de penetrar no "mistério" ou "milagre" do desenvolvimento (uma de suas obras prévias chama-se, justamente, Du Miracle en Économie), nosso amigo é o maior participante francês num debate ardente que data da publicação, em 1835/40, da Démocratie en Amérique e, em 1905, de um das obras fundamentais da sociologia moderna, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

Falsidades perversas

A polêmica que esses livros provocaram muito longe ainda está de se esgotar — e confesso me haver dedicado, com furor, a promovê-la no Brasil. O propósito weberiano era escaparmos das perversas falsidades do determinismo materialista que fez a fortuna inidônea do marxismo. Peyrefitte elaborou extensamente o tema da preeminência dos fatores morais, desde a publicação daquele primeiro título há 20 anos, até seus mais recentes. E é esta obra fundamental precisamente, a Sociedade de Confiança, que foi precedida de um compte-rendu do colóquio internacional, realizado no Institut de France em setembro de 1995 — em que me surpreendendi com a identidade dos problemas levantados, na França e no Brasil, quanto às condições morais e culturais do desenvolvimento e às políticas adequadas a seu sucesso.

No livro, o pensador francês coroou seu trabalho monumental com um estudo histórico e sociológico exaustivo da ética de livre iniciativa e incentivos ao setor privado da economia, suscetíveis de assegurarem o progresso. Renovando com o inquérito que, pela primeira vez, Adam Smith empreendeu no sentido de descobrir, na liberdade e na simpatia, o segredo do progresso, ele acentua o paralelismo entre o que chama a "divergência" religiosa entre os latinos, autoritários, patrimonialistas e desconfiados — e os holandeses e anglo-saxões, mais liberais, mais tolerantes, mais racionais e livres, e nutrindo maior confiança nos méritos da troca e divisão do trabalho.

Questão de confiança

A divergência explicaria o ritmo diverso de crescimento e progresso das respectivas sociedades. Esse desenvolvimento tem sido sustentado, de um lado, pelos sentimentos de confiança dos cidadãos uns nos outros; e, do outro, pela capacidade do estado de direito de fazer cumprir o princípio pacta sunt servanda. Pois não devem os contratos e a propriedade ser respeitados, sendo a honestidade pressuposto de toda transação econômica?

O descompasso histórico no ritmo de desenvolvimento se foi acentuando. Peyrefitte compara, por exemplo, o take-off inglês a partir do século 18 com o declínio espanhol. Chegando a nossos dias, diagnostica a mentalidade desconfiada, com o pressuposto generalizado que, até prova em contrário, todo o mundo é desonesto e sem-vergonha, se não pertence a nosso círculo de amizades e família. Os governantes podem ser tacanhos, mas só a eles o povo acredita que cabe a tarefa altruísta de nos salvar do egoísmo entranhado de todo capitalista. E insiste no fato de que a resistência enfadonha a qualquer inovação e o conservadorismo inquisitorial da Igreja cooperam para erguer barreiras burocráticas e impasses legais a qualquer oportunidade de avanço nos países obedientes à ética tridentina sob a qual fomos educados e sofremos.

Introversão

Peyrefitte amplia e aprofunda estudos setoriais que, em The Moral Basis of a Backward Society, foram realizados pelo sociólogo americano Edward Banfield ao analisar o comportamento familista, desconfiado e introvertido numa aldeia do mezzogiorno italiano, dominada pela Máfia; e pelo nipo-americano Francis Fukuyama que, em seu livro Trust, tenta explicar o sucesso das sociedades da Ásia oriental por motivações oriundas da disciplina da moral confuciana.

Os dados elementares do desenvolvimento são a liberdade, a criatividade e a responsabilidade. Mas utilizar os recursos da liberdade com autonomia individual e explorar essas virtudes na fase educacional da vida fazem supor uma confiança muito forte no homem, trabalhando dentro das normas de uma sociedade livre. É esse o fator, por excelência, do desenvolvimento.

Querer o desenvolvimento, o progresso, o enriquecimento do país comporta, na conclusão do livro, a "confiança na confiança". Peyrefitte é otimista. O tom hortativo do trabalho representa o esforço de um homem que, tendo ao morrer alcançado o topo da elite intelectual francesa, incentiva seus compatriotas à superação dos traços culturais viciosos que configuram o "mal francês". Estamos em suma, em presença de um novo Tocqueville cujo valor e reputação tenderão, estou certo, a crescer e se estender fora do âmbito da língua e cultura francesas.


Publicado em O Estado de S. Paulo, Domingo, 19 de dezembro de 1999