By Carlos U Pozzobon
Há algum tempo escritores e jornalistas têm se dedicado ao tema da ausência de leitores para obras de ficção, quando comparado com a situação da novela antes da revolução digital. Os argumentos são curiosos e ao mesmo tempo inaceitáveis: Joseph Button, por exemplo, afirma que a crise da novela se deve à crise do Protestantismo, pois o romance seria uma forma de ligação do indivíduo com sua transcendência.
Concordo plenamente que o gênero de ficção tenha se deslocado da escrita para o audiovisual. Desde os velhos tempos em que Hollywood fazia sucesso espetacular com temas literários e policiais aos nossos dias das séries tipo Netflix, a migração de leitores para a condição de telespectadores tem sua razão de ser:
1) Em primeiro lugar, a pulverização do conhecimento, criando um mercado forte para livros de referência.
2) A recorrente expansão da literatura anglo-saxônica em detrimento das literaturas nacionais, com o mesmo modelo de expressão e estilo. Este modelo fez escola, cansou os leitores e as outras literaturas não foram capazes de ocupar seu lugar, em parte porque a seguiam, em parte porque não houve mais mudanças significativas nas formas de expressão.
3) A extinção do estilo de vida atomizado e tediosamente rotineiro que caracterizava o homem urbano na sociedade analógica. Era um tempo de menos contatos e mais apelo ao entretenimento intelectual.
4) A emergência das redes sociais e do modo de vida online.
5) A popularização de temas antes literários e agora de análise particular de um conhecimento, como a psicologia, que concorre para a exploração dos sentimentos, emoções e todas as manifestações da mente na forma de conhecimento descritivo e não literário.
A perda de interesse social pela literatura tem implicações curiosas com a subjetividade humana no mundo em que vivemos. Poderíamos dizer que a literatura se reserva a um tipo de discurso que não se encontra em outros conhecimentos?
A resposta é positiva, mas se sabe muito pouco a respeito disso. Considere um texto do tipo:
“O Estado é o mais forte desmoralizador do caráter. Mais que os vícios, o álcool, o jogo, a morfina, a cocaína, o tabaco, ele nos tira toda a nossa dignidade, todo o nosso amor-próprio, todo o sentimento da realidade de nós mesmos.
Muitas daquelas eram pessoas de educação, entretanto, para obter isso ou aquilo, se tinham que agachar, que adular um tal Bonifácio que, no fim de contas, não passava de um criado do Sr. Presidente. Depois disso tudo, que sensação delas mesmas poderiam ter? Fossem servidas ou não, sairiam degradadas.”
“Na terra em que estava, não havia nada disso, não havia nada de superior naqueles homens todos que tão de perto conheci. Eles queriam os subsídios, os ordenados e as gratificações e a satisfação pueril de mandar.
Falavam em princípios republicanos e democráticos; enchiam a boda de tiradas empoladas sobre a soberania do povo; mas não havia nenhum deles que não lançasse mão da fraude, da corrupção, da violência, para impedir que essa soberania se manifestasse.”
Um professor, um jornalista ou mesmo um analista social jamais escreveria com estas palavras, porque elas só existem na imaginação do escritor de ficção. E ele é Lima Barreto, nas aventuras do Dr. Bogoloff.
Qual o conhecimento que a literatura nos apresenta que as demais áreas de estudos humanos não fornece? Eu arrisco a dizer que ela só pode ser valorizada se renunciar aos truques narrativos para se focar na crítica social através de seus personagens e também, e aqui está a novidade, de análise social em conformidade com o “espírito do livro”. Quando a literatura não muda seu enfoque, ela termina declinando como os gêneros musicais que se esgotam na repetição.
Em meu livro A Insondável Matéria do Esquecimento, trato do tema do descontentamento. Não sei se é corriqueiro e tenha sido escrito por gente mais qualificada, mas abordo o descontentamento com o país, a realidade cotidiana até a questão filosófica fundamental que consiste na necessidade humana de enaltecer o passado e profetizar o futuro contra o presente como uma qualidade essencialmente intelectual. E daí, o perigo que a educação pode causar na formação de rebanhos de descontentes com a decantação de valores crescentes de insatisfação social. Inicio falando de uma mulher encurralada pela consciência de estar em um labirinto sem possibilidade de realizar as aspirações pessoais e chego à dinastia Tchéu da China no ano 370 d. C.
Sei que os analistas sociais e psicólogos vêm tratando desse assunto há décadas, provavelmente sem a erudição de um Rollo May, mas acredito ter involuntariamente (toda descoberta literária é involuntária) construído algumas pontes que até então não foram abertas à discussão: quais os malefícios da educação, isto é, de um certo tipo de saber, ou ainda, da preparação de ruminantes filosóficos sem nenhuma relação com a vida prática?
A vulgarização do conhecimento não está associada ao declínio literário? É uma pergunta difícil de responder neste instante, mas o fato é que a literatura não é mais indispensável ao entendimento de nosso universo subjetivo. Poucas pessoas se encantam com a linguagem e suas formas de expressão. A ironia e o riso não são mais cultivados como catarse. A maioria detesta se engasgar com termos e expressões que desconhece porque vive em um estado de frenética ansiedade pela informação que lhe chega por todos os poros e as torna zumbi das mídias, da avalanche de meios e recursos midiáticos. Creio que este estado de ansiedade é característico deste século e certamente a humanidade descobriu a melhor forma de esquecer de si mesma: passar o dia inteiro bombardeada de informações que nada lhe dizem de seu mundo interior.
A chamada morte da novela pode ser entendida como um processo de seleção natural de tudo o que produzimos. Nosso repertório literário do passado fica assim resguardado do esquecimento, enquanto a explosiva produção atual sucumbe ao desinteresse. O homem digital já está cativo do audiovisual. O homem analógico ainda tem na narrativa literária sua mais importante expressão.
Na literatura tradicional, o leitor tinha na novela um conjunto de informações inacessíveis em seu universo privado. Era imprescindível ler para conhecer as referências eruditas. Com a Internet tudo mudou. O saber está disponível em conta-gotas como Wikipédia e blogs acessíveis por motores de busca. Neste sentido, a curiosidade é satisfeita sem a longa narrativa que caracteriza o romance ou novela, embora os temas tratados sejam interiores ao homem e ninguém se interesse por personagens fictícios além do cinema.
Com tecnologias cada vez melhores e mais intrusivas, pode se dizer que, parodiando a lei de Murphy, a literatura vai perdendo leitores em proporção direta com o aumento da banda larga.
Isto não quer dizer que vá morrer. A literatura é imortal. Se parássemos de escrever ficção, o repertório existente já seria suficiente para mantê-la como o principal patrimônio cultural da humanidade. O que se passa no presente é um aumento vertiginoso do darwinismo literário, onde os mais aptos são os que melhor se enquadram aos gostos dos leitores forjados pelas badalações da imprensa, como notou Emil Farhat vinte anos atrás.
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