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30 de agosto de 2025

Quando “tratativas” são “tentativas” na semântica jurídica

Nos Processos de Moscou dos anos 30, conduzidos pelo famoso procurador Andrei Vyshinsk, responsável pela instrução, julgamento e execução dos acusados, os membros da velha guarda foram eliminados em grupo até que sobrasse apenas um herdeiro da Revolução Bolchevique: o próprio mandante por trás dos muros do Kremlin.

Entre 19 a 23 de agosto de 1936, os 16 acusados, entre eles os bolcheviques G. Zinoviev e L. Kamenev, são condenados à morte e executados 24 horas depois. No segundo processo de 23 a 30 de março de 1938, 15 dos 17 acusados, entre os quais os revolucionários G. Piatakov e K. Radek, são igualmente condenados e executados logo a seguir. No terceiro processo, de 2 a13 de março de 1938, o último velho bolchevique, Bukharin, foi liquidado juntamente com Iagoda, o ex-diretor da polícia política que havia organizado os processos precedentes e que Stalin resolveu incluí-lo para apagar suas ordens de mando.

As referências parecem injustificadas, mas são apenas adaptações com que as autocracias se esmeram no roteiro teatral das aparências. Se para The Economist Bolsonaro é um Trump tropical, para este escriba Moraes é apenas um Vyshinsk tropical, cuja folha corrida das ilegalidades constitucionais vão para a história brasileira das infâmias jurídicas.

O julgamento de Bolsonaro na próxima semana não pode ser interpretado exclusivamente com base nas acusações lançadas contra ele e equipe. O que aconteceu em janeiro de 2023 foi uma descoordenação entre as lideranças que prepararam a invasão dos prédios dos 3 poderes, e os envolvidos na sublevação que não houve.


Como é próprio do perfil psicológico de Bolsonaro, ele nunca assume o papel de comando de qualquer coisa, deixando sempre para auxiliares a execução das tarefas. Com isso, seria impossível um golpe de estado sem um comando organizado e planos claros de sublevação militar. O que as investigações revelaram foram TRATATIVAS de golpe e não o motivo pelo qual está sendo julgado e condenado, isto é, TENTATIVA de golpe.

O golpe de 64 não foi realizado pela passeata dos 100 mil, mas pela sublevação do comandante da 4a Região Militar, general Olympio Mourão Filho que colocou as tropas na estrada em direção ao Rio de Janeiro, para surpresa dos demais comandos do exército que aderiram em cascata.

Como pode ter ocorrido uma tentativa de golpe em 8 de janeiro sem o disparo de um só tiro, sem uma única guarnição pronunciar-se em estado de insurgência? Nem mesmo apareceram o cabo e soldado que Bolsonaro anunciou em 1999 que seriam suficientes para fechar o STF. Arruaças iguais ou semelhantes no Brasil nunca foram mencionadas como intenção de derrubar o poder.

Desde o início do julgamento do Mensalão, o PT vem falando em golpe de estado e inclusive havia criado uma sigla para atacar a imprensa golpista chamando-a de PIG, hoje em desuso exatamente porque a imprensa capitulou.

Bolsonaro nunca foi julgado pelas rachadinhas. Considerando ser um delito coletivo pluripartidário, ninguém achou suficientemente grave para se transformar em julgamento. Também não está sendo julgado por corrupção, outro delito que recebe a água benta do nosso sistema pela vilificação política modelada no petismo 3.0. Nullum crimen ubi omnes delinquant.

Por outros meios, Bolsonaro imitou Jânio Quadros. Jânio acreditava que renunciaria, deixaria um vácuo no poder com a repulsa coletiva a João Goulart e voltaria com poderes excepcionais para governar o país por decreto. Inventaram um parlamentarismo de improviso para amenizar a surpresa e o autogolpe falhou. Por mais inconcebível que pareça, Bolsonaro acreditava que a pressão popular levaria os comandantes do exército a assumir um poder transitório que ao fim lhe seria restituído por uma declaração de fraude nas urnas.

Como ele pode ter chegado a esse ponto? A insubordinação contra o processo eleitoral associada a acusação de fraude nas urnas, o motivo mobilizador do 8 de janeiro, incitando suas hordas a recusarem a derrota, foi uma réplica do que aconteceu nos Estados Unidos um ano antes no Capitólio, e serviu de modelagem para conseguir apoio de Trump, o incitador, e para a reportagem de The Economist.

Esta revista não percebeu o que está ocorrendo no Brasil. Isto acontece quando jornalistas estrangeiros vêm ao Patropi às pressas para fazer uma reportagem com base em contatos oficiais. Terminada as entrevistas, vão direto para o aeroporto e o resto é apenas redação da matéria.

Acredita a revista que o julgamento de Bolsonaro será um exemplo de resiliência democrática para os Estados Unidos, já enfatuados com o ioiô diário de Trump em sua agenda.

Bolsonaro já tinha aderido ao trumpismo antes de ser eleito. E é inútil negar que se tornou um dos líderes mais importantes da política brasileira no século XXI. Foi turbinado pelas táticas de guerra revolucionária dos militares da reserva na propaganda de suas virtudes, aos quais retribuiu com a defesa de Brilhante Ustra; pelas filhas “solteiras” de militares temerosas da capacidade desagregadora do petismo; e pelo olavismo que salvou da perdição os desorientados lavradores do conhecimento com uma obra que misturava verdades evidentes com mentiras deslavadas e insuficiências suspeitas, em sintonia com o cruzadismo moderno de combate aos demônios da alta tecnologia. Nunca faltou biografias para qualquer coisa que se pretenda como o suprassumo da análise social.

Nem a condenação e nem a própria morte será capaz suprimir o bolsonarismo das aspirações políticas de muita gente quando doutrinada na alternativa relativista do mazzaropismo como contraposição ao macunaísmo petista. Assim como o getulismo, o bolsonarismo sempre será uma referência histórica de nossa vida política porque nenhuma nação consegue fugir de seus próprios valores. Nossa crise não é só um produto de nós mesmos, como de um mundo que não tem mais como nos inspirar, e vive dilemas semelhantes aos que nos fizeram diminutos e inertes no contexto mundial. Ou os democratas se convencem que a democracia precisa ser remodelada, ou nunca sairemos do impasse político que nos aflige.


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