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14 de abril de 2020

De Bolsopatas a Covidiotas

Carlos U Pozzobon

A pandemia de coronavírus abriu as portas da discórdia política até então restrita às disputas entre os 3 poderes. A movimentação do Ministério da Saúde, liderado por Henrique Mandetta, estava dando o tom da mobilização nacional necessária para o enfrentamento do vírus. Parecia que, sob ameaça de morte, o país iria se unir em torno de um consenso no qual o sacrifício seria dividido igualmente e seus prejuízos não se tornassem objeto de disputa política.

Isto foi só aparência. Coisa de Alemanha. Na iminência de um colapso econômico, não se viu a redução de um centavo sequer nos salários da privilegiatura, e tampouco das compras suntuosas dos três poderes.

Tudo começou com uma notícia divulgada pelo gabinete de Trump a respeito do coronavírus ser curado com o uso da cloroquina.

Imediatamente a opinião dele foi tomada como verdade e os coletores de evidências saíram mundo afora atrás da opinião de autoridades da área de saúde que confirmasse a receita. Os que duvidavam foram descartados, como costumam fazer aqueles que não precisam de evidências para assumir sua posição em qualquer debate.

Ao mesmo tempo, um enorme contingente radicado no mundo hospitalar negava a cloroquina como solução, enaltecendo a prudência no uso da medicação, e desautorizando a certeza científica em testes experimentais, em contraposição aos evangelistas de primeira hora, aquela parte da sociedade que acreditando em João de Deus, mantinha a opinião da cura como se fosse um xarope milagroso.

A crise não teria um ápice se Bolsonaro não entrasse em cena para subestimar o contágio como base no “animus americanus” e servir de defensor do isolamento vertical, aquele que dispensa os que estão fora dos grupos de risco, com vistas a produzir o menor efeito nocivo na economia.

Como os maiores recursos de saúde estão em São Paulo, evidentemente que a hostilidade do próprio presidente contra as determinações do MSaúde, sobrou para João Doria que defendendo a posição do isolamento horizontal de Mandetta, entrou em rota de colisão com Bolsonaro. Foi a centelha que faltava para os bolsopatas dispararem uma campanha contra um líder político que aparecia em cena desafiando a autoridade de um presidente que, desde a posse, terceirizou a responsabilidade dos assuntos ministeriais aos titulares, resguardando o papel de animador popular do palco que o mantém popular.

Ocorre que Doria também é um homem de palco, um exímio mestre de cerimônias que fez carreira como se fosse um apresentador de programas de debates na TV. A fluência com que fala, a capacidade de articulação que Bolsonaro não tem no DNA, excitou ainda mais os ânimos. A resposta foi a sociedade ficar dividida entre a receita da cloroquina, o momento exato de aplicá-la, e as formas de combater o vírus.

Na santa inocência de agir em função dos parâmetros aplicados pelos demais governos ao redor do mundo, na sexta-feira (10/4) Doria chegou a ameaçar de prisão os que furassem o bloqueio sem motivo, baseado nos relatórios de tráfego das empresas de telefonia.

Estava instalado o pandemônio no meio da pandemia. Os bolsopatas descobriram que havia no país um software que controlava seus movimentos, e que estavam às portas de um estado orwelliano. E deram o alarme do perigo totalitário.

Ignoram que as empresas de telefonia celular usam os dados de localização do celular como a única forma de endereçar chamadas ou dados para um telefone, sem o qual o sistema teria de ser fixo em vez de móvel. Um mapeamento do número de aparelhos em uma região é um recurso de tráfego usado para conhecer a concentração de assinantes e dividir as células sempre que apresentem congestionamento recorrente.

Ocorre que qualquer erro de avaliação cria seus próprios argumentos favoráveis. Empresas de telefonia como a ZTE da China, estão implantando o estado orwelliano através da conjugação em um único cartão de crédito dos dados bancários, informações de saúde e, por extensão, a presença eleitoral quando de eleições. Com a temporização do voto por urnas eletrônicas, é possível saber em quem o vigiado votou se for possível saber o momento exato em que o eleitor aperta o botão da urna com sua localização. Este sistema está em vigor na Venezuela, não se sabendo se total ou parcial.

Mas isso não seria grave se os covidiotas não acusassem Doria de tentar implantar uma ditadura, ou como disse Coppolla, “fizesse ressurgir um ditadorzinho enrustido” no meio político. Que eu saiba nunca existiu na história do Brasil e, provavelmente do mundo, uma ditadura de um governo estadual à revelia do governo federal. No entanto, a bolsopatia precisa de exasperações para acionar suas bases esbravejadoras, e foi o que aconteceu no sábado (11/4) com a carreata levada a cabo e o bloqueio na Av. Paulista de automóveis e 3 ambulâncias.

O mesmo Coppolla vaticinou do alto de sua sabedoria: “É óbvio que uma medida de monitoramento agressiva que consegue determinar se você está a 300 metros da sua própria casa – informações essas nas mãos de empresas privadas – pode degringolar em uma grande perseguição às liberdades individuais“, reclamou. Ou seja, aquilo que sempre se fez por razões técnicas, passou a ser uma ameaça por razões histéricas. Este rapaz mostra que tem todos os requisitos para, tal qual o seu homônimo americano, comandar um roteiro sobre o Poderoso Chefão Doria.

O próximo bolsopata a entrar em cena foi o conhecido blogueiro que nunca foi santo chamado Allan dos Santos. Usando o recurso metafórico dos campos de concentração na vertical e na horizontal, sempre que não se tem grande coisa para dizer, conseguiu uma reação à altura da Confederação Israelita do Brasil (Conib) quando afirmou que “omitir o uso da cloroquina é o mesmo que deixar judeus na dúvida entre chuveiro e câmara de gás”. Para a Conib, “antissemitas e oportunistas estão sempre à espreita para, em momentos como este, fazer ataques contra judeus e outras minorias”. E informou que denunciou a postagem ao Twitter e está examinando as alternativas legais.

O festival de besteiras continua a revelar covidiotas por todo o tecido social do país. Um apresentador do SBT que se autointitula Marcão do Povo, sugeriu ao vivo que “o presidente Jair Bolsonaro montasse campos de concentração para infectados de coronavírus.” A emissora de Sílvio Santos não gostou da sugestão do Marcão, até porque seu alinhamento com o governo, isto é, as verbas do governo, não chegam a tanto. Foi suspenso e a emissora pediu desculpas aos ofendidos pelo comentário.

Existem ganhadores na guerra política do coronavírus? A curto prazo não. Mas a área de conflito com o governo federal, em oposição ao seu ministro da saúde e equipe, continua, quando em 13/4 “os presidentes dos dois principais hospitais do País, Sidney Klajner, do Einstein, e Paulo Chapchap, do Sírio Libanês, defendem a necessidade do isolamento social para conter a epidemia do novo coronavírus. Sobre a cloroquina, medicamento que vem sendo apontado pelo governo como uma possível cura para a covid-19, ambos afirmam que “ainda” não há provas conclusivas sobre a sua eficácia.”

Tal informação não pode ser categórica, pois já existe prática de uso bem sucedido em um coquetel de medicamentos. Em todo caso, os dois hospitais são aqueles endereços onde qualquer grande figura política costuma se tratar, incluindo Bolsonaro. O que fazer se ele pensa contra o hospital que lhe serve de último refúgio para a salvação pela excelência técnica com que é conhecido? Evidentemente, ignorar a verdade quando em confronto com a ideologia.

O outro dado curioso é sobre a OMS, dirigida por Tedros Adhanon, nome mais de múmia egípcia que de biólogo. A OMS, como qualquer organização governamental (intergovernamental) é ruim. Sempre foi. É ruim exatamente porque sua atuação consiste em fazer perguntas aos governos e pautar suas recomendações com as informações desses mesmos governos. E quando o governo é uma autocracia, a OMS vai trocar os pés pelas mãos invariavelmente.

Quando um governo esconde uma pandemia em seu início, a única forma da OMS ter uma avaliação própria passa por denúncias produzidas por agentes (businessman, viajantes de eventos, turistas, etc) que façam chegar casos de pandemia às embaixadas e estas alertarem seus governos para, ao fim, colocar o caso no plenário da ONU e na cúpula da OMS simultaneamente. Tudo pelos meios burocráticos comuns. Fora disso, os erros do governo chinês são também erros da OMS, apesar de sabermos que antes do governo chinês admitir a pandemia, a OMS já ter conhecimento dela e, como os chineses, subestimado a gravidade.

O mais político dos convidiotas se chama Guilherme Fiúza. Este comentarista fez uma live para falar da conspiração do coronavírus comandada, naturalmente, por João Doria. Reverberando a opinião delinquente de que Doria queria criar o caos para se eleger presidente (a obsessão com que desde de janeiro de 2019 se fala em reeleição é algo que desnuda um esquema de poder e não de gestão, ao estilo psicológico do PT), disfarçando providências de saúde como se fosse um ardil para uma paralisação total da economia. Não se sabe como as ações de Doria, imitando os governos da Itália, Espanha, França, Inglaterra e Nova Iorque possam ser uma conspiração tão insidiosa, a menos que se entenda o fenômeno cultural brasileiro da dupla moral: o que é bom para os outros é diferente para nós.

Num país com uma estrutura partidária fragilizada ao extremo, Fiúza comenta a declaração de Arthur Virgílio sobre a iminência de colapso na rede pública de Manaus com as 44 mortes até então (13/4). Mas Virgílio estava falando sobre o número de corona-positivos, o que significa uma projeção para o agravamento da situação face ao número de leitos hospitalares. Esquecendo que são os infectados que contam, e não os mortos, logo ficamos sabendo a causa da sonegação da verdade. Fiúza queria fazer uma ponte com Doria, do mesmo partido que “vem se comportando como um tiranete ao ameaçar com prisão aqueles que descumprirem a ordem de ficar em casa”. E como na Barra da Tijuca circulou um clipe de policiais retirando aos puxões uma banhista de biquíni que recusava cumprir a ordem carioca, o nosso Fiúza que usa e abusa da lógica obtusa, conclui que estão havendo prisões em massa. Onde? Em São Paulo, evidentemente.

O outro covidiota é Hélio Beltrão, engenheiro como eu que, no entanto, articula a demissão de Mandetta (13/4) porque este teria recomendado o uso de cloroquina somente para paciente em estado grave, isto é, em adiantado estado de infecção. Mas por que Mandetta recomendou a seleção é algo que não se tem notícia, a menos da trivial, de que o país não dispõe nem de testes de infectados nem de cloroquina para todos os contaminados. Ele não acha que na escassez alguém precisa ser priorizado. Ele acha que Mandetta mantém-se no erro por alguma birra contra as evidências farmacológicas. E mais, que os médicos devem seguir as ordens estritas do MS, como pegar o telefone e perguntar ao Mandetta se ao paciente em suas mãos já pode ser ministrado a cloroquina, já que não se sabe o estágio da doença para o começo da aplicação.

Nesta atmosfera de entortar doidos, a pandemia da covid-19 atingiu 2 milhões de casos confirmados no mundo. Desde o primeiro caso em Wuhan, em 31/12/19, “foram 93 dias até os 1 milhão de casos, em 2 de abril. Agora, o segundo milhão deve ser atingido só 12 dias depois. O número de mortes, que bateu 100.000 neste fim de semana, segue padrão parecido. O tempo entre 1.000 e 10.000 mortes nos cinco países que atingiram essa marca (EUA, Itália, Espanha, França e Reino Unido) foi de duas semanas em média — dado que serve de alerta para o Brasil, que atingiu 1.000 mortes na sexta-feira, 10/4.”

E para aumentar as incertezas, ainda vivemos o inferno das subnotificações. Qualquer pessoa medianamente ilustrada, com a desconfiança permanente nas veias de tudo o que procede dos governos, sabe que a precariedade de recursos na maioria dos pequenos municípios pode elevar nossos índices para valores muito mais graves que os conhecidos. Basta que os mortos sejam uma ameaça ao continuísmo político para que a trapaça se imponha à realidade.