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21 de outubro de 2016

RACISMO

Ayn Rand

(Setembro de 1963)

O racismo é a forma mais baixa e mais cruelmente primitiva de coletivismo. É a noção de atribuir significado moral, social ou político à linhagem genética de um homem — é a noção de que os traços caracterizadores e intelectuais de um homem são produzidos e transmitidos por sua química corporal interna. O que quer dizer, na prática, que um homem deve ser julgado, não por sua índole ou ações, mas pelas índoles e ações de um coletivo de antepassados.

O racismo afirma que o conteúdo da mente de um homem (não seu aparato cognitivo, mas seu conteúdo) é herdado; que as convicções, caráter e valores de um homem são determinados antes de seu nascimento, por fatores físicos além de seu controle. Esta é a versão do homem das cavernas da doutrina das ideias inatas — ou do conhecimento herdado —, a qual tem sido completamente contestada pela filosofia e pela ciência. O racismo é uma doutrina de, por e para brutamontes. É uma versão de quintal ou de fazenda de gado do coletivismo, apropriada à mentalidade que diferencia várias raças de animais, mas não animais e homens.

Como toda forma de determinismo, o racismo invalida o atributo específico que distingue o homem de todas as outras espécies vivas: sua faculdade racional. O racismo nega dois aspectos da vida do homem; razão e escolha, ou inteligência e moralidade, substituindo-os por predestinação química.

A família respeitável que sustenta parentes imprestáveis ou os crimes destes a fim de “proteger o nome da família” (como se a estatura moral de um homem pudesse ser prejudicada pelos atos de outro) — o vagabundo que se gaba de que seu bisavô foi um construtor de impérios, ou a solteirona do interior que se gaba de que seu tio materno era um senador estadual e de que seu primo em terceiro grau deu um concerto no Carnegie Hall (como se as realizações de um homem pudessem remover a mediocridade de outro) — os pais que procuram árvores genealógicas a fim de avaliar seus futuros netos — a celebridade que inicia sua autobiografia com um detalhado relatório de sua história familiar — todos estes são exemplos de racismo, as manifestações atávicas de uma doutrina cuja total expressão é a guerra tribal de selvagens pré-históricos, o massacre em massa da Alemanha Nazista, as atrocidades das chamadas “nações emergentes” atuais.

A teoria que sustenta “o sangue bom” ou “o sangue mau" como um critério moral-intelectual somente pode levar a derramamento de sangue, na prática. A força bruta é o único canal de ação aberto aos homens que consideram a si mesmos agregados descuidados de substâncias químicas.

Os racistas modernos tentam provar a superioridade ou a inferioridade de uma suposta raça através das realizações históricas de alguns de seus membros. O espetáculo histórico frequente de um grande inovador que, em sua existência, é zombado, denunciado, bloqueado, perseguido por seus compatriotas e que, então, poucos anos após morrer, é posto num santuário de um monumento nacional e saudado como uma prova da grandeza da raça alemã (ou francesa ou italiana ou cambojana) — é tão revoltante quanto um espetáculo de expropriação coletivista, perpetrado pelos racistas, quanto qualquer expropriação de riqueza material perpetrada pelos comunistas.

Assim como não há uma mente coletiva ou racial, também não existe realização coletiva ou racial. Há apenas mentes individuais e realizações individuais — e uma cultura não é um produto anônimo de massas indiferenciadas, mas o total de realizações intelectuais de homens individualmente considerados.

Mesmo se fosse provado —: o que não é o caso — que a incidência de homens de poder mental potencialmente superior é maior entre os membros de certas raças do que de outras, isto ainda não nos diria nada sobre nenhum suposto indivíduo, e seria irrelevante para o seu julgamento. Um gênio é um gênio, independentemente do número de retardados mentais que pertençam à mesma raça — e um retardado mental é um retardado mental, independentemente do número de gênios que têm a mesma origem racial. É difícil dizer qual é a injustiça mais ultrajante: a reivindicação dos racistas sulistas de que um gênio negro deve ser tratado como inferior, porque sua raça “produziu” alguns brutamontes — ou a reivindicação de um brutamontes alemão ao status de superior porque sua raça “produziu” Goethe, Schiller e Brahms.

Essas não são duas reivindicações diferentes, é claro, mas duas aplicações da mesma premissa básica. A questão de alguém alegar superioridade ou inferioridade de suposta raça é irrelevante: o racismo possui apenas uma raiz psicológica: o senso do racista de sua própria inferioridade.

Como toda forma de coletivismo, o racismo é uma procura pelo não-obtido. É uma procura pelo conhecimento automático — por uma avaliação automática das índoles dos homens que desviam a responsabilidade de exercitar o julgamento racional ou moral — e, acima de tudo, uma procura por uma autoestima automática (ou pseudo-autoestima).

Atribuir às virtudes de alguém a sua origem racial é confessar que não se possui conhecimento do processo pelo qual elas são adquiridas e, mais frequentemente, que se fracassou em adquiri-las. A esmagadora maioria dos racistas é constituída de homens que não obtiveram nenhum senso de identidade pessoal, que não podem reivindicar nenhuma realização ou distinção individual e que buscam a ilusão de uma “autoestima tribal”, alegando a inferioridade de alguma outra tribo. Observe a intensa histeria dos racistas sulistas; observe também que o racismo é muito mais predominante entre a escória branca pobre do que entre os seus experientes intelectuais.

Historicamente, o racismo sempre aumentou ou decaiu com o aumento ou queda do coletivismo. Este sustenta que o indivíduo não tem direitos, que sua vida e trabalho pertencem ao grupo (à “sociedade" à tribo, ao Estado, à nação), e que o grupo pode sacrificá-lo aos seus próprios caprichos e interesses. A única maneira de implementar uma doutrina deste tipo é através da força bruta — e o estatismo sempre foi o corolário político do coletivismo.

O Estado absoluto é simplesmente uma forma institucionalizada de um regime de gangues, independentemente de qual gangue em particular mantenha o poder. E — já que não há justificativa racional para esta regra, já que nada foi ou pode ser oferecido — a mística do racismo é um elemento crucial para toda variante do Estado absoluto. O relacionamento é recíproco; o estatismo vem das guerras tribais pré-históricas, da noção de que os homens de uma tribo são presa natural para os de outra — e estabelece suas próprias subcategorias internas de racismo, um sistema de castas determinadas pelo nascimento de um homem, assim como os títulos de nobreza ou a servidão, herdados.

O racismo da Alemanha Nazista — onde os homens têm de preencher questionários sobre seus ancestrais, a fim de provar sua descendência Ariana — tem seu complemento na Rússia Soviética, onde os homens têm de preencher questionários similares para mostrar que seus ancestrais não possuíam nenhuma propriedade e, assim, provar sua descendência proletária. A ideologia soviética repousa na noção de que os homens podem ser geneticamente condicionados ao comunismo — isto é, que algumas gerações condicionadas pela ditadura transmitirão a ideologia comunista aos seus descendentes, os quais serão comunistas ao nascer. A perseguição das minorias raciais na Rússia Soviética, de acordo com a descendência racial e capricho de qualquer comissário de plantão, é uma questão de registro; o antissemitismo é particularmente predominante — mas agora as perseguições oficiais são chamadas de “depurações políticas”.

Há apenas um antídoto para o racismo: a filosofia do individualismo e seu corolário político-econômico, capitalismo laissez-faire.

O individualismo considera o homem — todos os homens — como uma entidade soberana, independente, que possui um direito inalienável a sua própria vida, direito este derivado de sua natureza de ser racional. Ele sustenta que uma sociedade civilizada, ou qualquer forma de associação, cooperação ou coexistência pacífica entre os homens, pode ser atingida somente com base no reconhecimento dos direitos individuais — e que um grupo, como tal, não possui direitos, a não ser os direitos individuais de seus membros.

Não são os ancestrais ou os parentes ou os genes ou a química corporal de um homem que contam num mercado livre, mas apenas um atributo humano: habilidade produtiva. É por sua própria habilidade e ambição individual que o capitalismo julga um homem e o recompensa correspondentemente.

Nenhum sistema político pode estabelecer a racionalidade universal pela lei (ou força). Mas o capitalismo é o único sistema que funciona de maneira a recompensar a racionalidade e penalizar todas as formas de irracionalidade, incluindo o racismo.

Um sistema capitalista totalmente livre ainda não existiu em lugar nenhum. O que tem grande significado, porém, é a correlação de racismo e controle político, na economia semi-livre do século XIX. Às perseguições raciais e/ou religiosas das minorias mantiveram-se em proporção inversa ao grau de liberdade de um país. O racismo foi mais forte nas economias mais controladas, como na Rússia e Alemanha — e mais fraco na Inglaterra, o país mais livre da Europa, na época.

Foi o capitalismo que proporcionou à humanidade dar seus primeiros passos em direção à liberdade e a uma maneira racional de vida. Foi o capitalismo que atravessou as barreiras raciais e nacionais, por meio do comércio livre. Foi o capitalismo que aboliu a servidão e a escravidão em todos os países civilizados do mundo. Foi o Norte capitalista que destruiu a escravidão do Sul agrário-feudal dos Estados Unidos.

Essa foi a tendência da humanidade pelo breve período de alguns cento e cinquenta anos. Seus resultados e conquistas espetaculares não precisam de reafirmações, aqui.

O aumento do coletivismo reverteu essa tendência.

Quando os homens começaram a ser doutrinados, mais uma vez, com as noções de que um indivíduo não possui direitos, de que a supremacia, a autoridade moral e o poder ilimitado pertencem ao grupo, e de que o homem não possui significância fora de seu grupo — a consequência inevitável foi começar a gravitar na direção de um grupo ou outro, em autoproteção, perplexidade ou terror subconsciente. O coletivo mais simples para se engajar, aquele de mais fácil identificação — particularmente para pessoas de inteligência limitada —, a forma menos exigente de “pertencer” e de “camaradagem”, é: raça.

Foi deste modo que os teóricos do coletivismo, os defensores do “humanitarismo” de um Estado absoluto “benevolente”, levaram ao renascimento e novo e virulento crescimento do racismo no século XX.

Nessa grande era do capitalismo, os Estados Unidos foram o país mais livre sobre a Terra — e a melhor refutação das teorias racistas. Homens de todas as raças vieram para cá, alguns de países obscuros, culturalmente sem distinção, e executaram façanhas de habilidade produtiva que teriam ficado natimortas em suas pátrias dominadas pelo controle. Homens de grupos raciais que estiveram massacrando-se uns aos outros por séculos, aprenderam a viver juntos em harmonia e cooperação pacífica. A América foi chamada de “o cadinho”, por boas razões. Mas poucas pessoas perceberam que a América não fundiu os homens na conformidade cinzenta de um coletivo: ela os uniu por meio da proteção dos direitos à individualidade.

As maiores vítimas deste preconceito racial, que certamente existiu na América, foram os negros. Tratou-se de problema originado e perpetrado pelo Sul não-capitalista, ainda que não confinado às fronteiras. A perseguição dos negros no Sul foi e é verdadeiramente vergonhosa. Mas, no resto do país, visto que os homens eram livres, até mesmo este problema foi vagarosamente cedendo sob a pressão do esclarecimento e dos próprios interesses econômicos dos brancos.

Hoje, este problema está-se agravando — assim como todas as outras formas de racismo. A América tornou-se consciente, no que se refere a raças, de uma maneira remanescente dos piores dias dos países mais atrasados da Europa do século XIX. A causa foi a mesma; o crescimento do coletivismo e do estatismo.

Apesar do clamor por igualdade racial, propagada pelos “liberais” há poucas décadas atrás, o Bureau de Censo relatou recentemente que “o status econômico [do negro] em relação ao branco não melhorou por aproximadamente vinte anos”. Vem-se igualando nos anos mais livres de nossa “economia mista”; deteriorou com a expansão progressiva dos “liberais” do Serviço Social.

O crescimento do racismo numa “economia mista” marcha com o crescimento do controle governamental. Uma “economia mista” desintegra um país, a ponto de levá-lo a uma guerra civil institucionalizada, de grupos de pressão, todos lutando por favores legislativos e privilégios especiais às custas um do outro.

A existência destes grupos de pressão e de seus lobbies políticos é atualmente reconhecida de maneira aberta e cínica. O pretexto de qualquer filosofia política, princípios, ideais ou objetivos de longo prazo, está desaparecendo rapidamente de nosso cenário — e deve-se admitir que este país está agora navegando sem direção, à mercê de um jogo de poder cego, de curto prazo, disputado por várias gangues estatistas, todas com intenção de conseguir apoio de um figurão do Poder Legislativo para tirar qualquer vantagem especial imediata.

Na ausência de uma filosofia política coerente, todo o grupo econômico vem agindo como seu próprio destruidor, liquidando seu futuro por algum privilégio momentâneo. A política dos homens de negócios foi, por algum tempo, a mais suicida, a este respeito. Foi, porém, ultrapassada pela política corrente dos líderes negros.

Enquanto os líderes negros estavam lutando contra a discriminação imposta pelo governo — direito, justiça e moralidade estavam de seu lado. Mas não lutam mais por isso. As confusões e as contradições que circundam a questão do racismo, atingiram agora um clímax inominável.


É hora de esclarecer os princípios envolvidos.

A política dos estados sulistas em relação aos negros era e é uma contradição vergonhosa dos princípios básicos deste país. Discriminação racial, imposta e impingida pela lei, é uma infração tão ruidosamente indesculpável dos direitos individuais, que os estatutos racistas do Sul deveriam ter sido declarados inconstitucionais há muito tempo.

A alegação dos racistas sulistas dos “direitos dos estados” é, em termos, uma contradição; não pode haver algo como “direitos” de alguns homens de violar os de outros. O conceito constitucional de “direitos dos estados” pertence à divisão do poder entre as autoridades nacionais e locais e serve para proteger os estados do governo federal; não concede ao estadual um poder arbitrário e ilimitado sobre seus cidadãos, ou o privilégio de anular os direitos individuais destes.

Foi verdade que o governo federal usou a questão racial para estender seu próprio poder e estabelecer um precedente de abuso sobre os direitos legítimos dos estados, de uma maneira inconstitucional e desnecessária. Mas isto simplesmente significa que ambos os governos estão errados; não é desculpa para a política dos racistas do Sul.

Uma das piores contradições, neste contexto, é a posição de muitos — chamados — “conservadores” (não confinados exclusivamente ao Sul) que afirmam ser defensores da liberdade, do capitalismo, dos direitos de propriedade, da Constituição, ainda que ao mesmo tempo defendam o racismo. Eles não parecem possuir interesse suficiente nos princípios para perceber que estão puxando o tapete sob seus próprios pés. Os homens que negam os direitos individuais não podem afirmar, defender ou sustentar direitos, quaisquer que sejam. São estes supostos campeões do capitalismo que estão ajudando a desacreditá-lo e a destruí-lo.

Os “liberais” são culpados pela mesma contradição, mas de forma diferente. Defendem o sacrifício de todos os direitos individuais a uma norma de maioria ilimitada — ainda que posem como defensores dos direitos das minorias. Mas a menor minoria da Terra é o indivíduo. Os que negam os direitos individuais não podem conclamar-se defensores de minorias.

Este acúmulo de contradições, pragmatismo míope, desprezo cínico por princípios, irracionalidade ultrajante, alcançou agora seu clímax, nas novas exigências dos líderes negros.

Ao invés de lutar contra a discriminação racial, estão exigindo que ela seja legalizada e imposta. Ao invés de lutar contra o racismo, estão exigindo o estabelecimento de cotas raciais. Ao invés de lutar pelo “daltonismo” nas questões econômicas e sociais, estão proclamando que ele é nocivo, e que se deve tornar a “cor” uma consideração fundamental. Ao invés de lutar por direitos iguais, estão exigindo privilégios especiais de raça.

Estão exigindo que cotas raciais sejam estabelecidas com respeito a empregos, e que estes sejam distribuídos em bases raciais, proporcionalmente à porcentagem de uma suposta raça na população local. Por exemplo, já que os negros constituem 25 por cento da população da cidade de Nova Iorque, eles exigem 25 por cento dos empregos em determinado estabelecimento.

As cotas raciais têm sido um dos piores males do regime racista. Elas existiam nas universidades da Rússia czarista, na população das principais cidades da Rússia, etc. Uma das acusações contra os racistas neste país é que algumas escolas praticam um sistema secreto de cotas raciais. Foi considerada uma vitória para a justiça o fato dos questionários para empregos pararem de perguntar sobre a raça e a religião dos candidatos.

Atualmente, não é um opressor, mas um grupo minoritário oprimido, que está exigindo o estabelecimento de cotas raciais.

Esta exigência específica foi demais, até mesmo para os “liberais”. Muitos deles a denunciaram — apropriadamente — com chocada indignação.

Escreveu o The New York Times (23 de julho de 1963): “Os manifestantes estão seguindo um princípio verdadeiramente vicioso ao fazerem o ‘jogo dos números’. Uma exigência de que 25 por cento (ou qualquer outra porcentagem) de empregos sejam dados aos negros (ou a qualquer outro grupo) é errada por uma razão básica: requer um sistema de cotas, que é em si mesmo discriminador... Este jornal lutou por muito tempo contra uma cota religiosa com relação aos juízes; nós igualmente nos opomos à cota racial com respeito a empregos, dos mais nobres aos mais humildes”.

Como se o racismo óbvio desta exigência não fosse o suficiente, alguns líderes negros foram ainda mais longe. Whitney M. Young Jr., diretor executivo da Liga Urbana Nacional, fez a seguinte declaração (NY. Times, 1o de agosto): “A liderança branca deve ser honesta o suficiente para afirmar que, através de toda a nossa história, existiu uma classe privilegiada, especial, de cidadãos, que recebeu tratamento preferencial. Esta classe foi a branca. Agora, estamos dizendo: se dois homens, um negro e um branco, são igualmente qualificados para um emprego, contrate o negro”.

Considere as implicações desta declaração. Não exige simplesmente privilégios especiais com pretextos raciais — exige que os homens brancos sejam penalizados pelos pecados de seus ancestrais. Exige que um trabalhador branco seja recusado num emprego porque seu avô pode ter feito discriminação racial. Mas talvez seu avô não tenha feito. Ou talvez seu avô não tenha nem mesmo morado neste país. Já que estas questões não são consideradas, significa que este trabalhador branco deve ser cobrado por uma culpa racial coletiva, a culpa consistindo simplesmente na cor de sua pele.

O único comentário que se pode fazer sobre exigências deste tipo é: “Com que direito? — por qual código? — por qual critério?”

Essa política absurdamente nociva está destruindo a base moral da luta dos negros. O caso destes repousa no princípio dos direitos individuais. Se exigem a violação dos direitos dos outros, negam e confiscam os seus próprios. Então a mesma resposta aplica-se a eles, assim como aos racistas do Sul: não pode haver algo como “direito” de alguns homens de violarem os dos outros.

Contudo, toda a política dos líderes negros está, agora, movendo-se nesta direção. Por exemplo, a exigência por cotas raciais nas escolas, com o propósito de que centenas de crianças, brancas e negras, sejam forçadas a ir à escola em bairros distantes — com o propósito de “equilíbrio racial”. Isto é, novamente, puro racismo. Como oponentes desta exigência salientaram, designar crianças para determinadas escolas por motivo de raça é igualmente nocivo, se feito com propósito de segregação ou integração. E a mera ideia de usar crianças como fantoches num jogo político deve ultrajar seus pais, de qualquer raça, credo ou cor.

O projeto de lei de “direitos civis”, atualmente sob a consideração do Congresso, é outro exemplo de uma infração gritante aos direitos individuais. É correto proibir toda discriminação nas instalações e nos estabelecimentos governamentais: este não possui direito de discriminar qualquer cidadão. E, pelo mesmo princípio, não possui direito de discriminar alguns cidadãos, à custa de outros. Não possui o direito de violar o direito à propriedade privada, proibindo a discriminação em estabelecimentos pertencentes à iniciativa privada.

Nenhum homem, negro ou branco, possui qualquer direito à propriedade de outro. Os direitos de um homem não são violados pela recusa de um cidadão a tratar com ele. O racismo é uma doutrina nociva, irracional e moralmente desprezível — mas doutrinas não podem ser proibidas ou prescritas por lei. Assim como precisamos proteger a liberdade de discurso de um comunista, apesar de suas doutrinas serem nocivas, temos de proteger o direito de um racista ao uso e emprego de sua própria propriedade. O racismo privado não é uma questão legal, mas moral — e pode ser combatido apenas por meios privados, como boicote econômico ou ostracismo social.

É desnecessário dizer que, se este projeto de lei dos “direitos civis” for aprovado, será a pior transgressão aos direitos de propriedade no registro lamentável da história americana a respeito deste assunto.

Mas esse é o princípio do pior racista do Sul, que cobra de todos os negros a culpa racial coletiva de qualquer crime cometido por um indivíduo negro, e que trata a todos como inferiores, pelo motivo de que seus ancestrais eram selvagens.

É uma demonstração irônica da insanidade filosófica e da tendência consequentemente suicida de nossa era, o fato dos homens que precisam mais urgentemente da proteção dos direitos individuais — os negros — estarem agora na vanguarda da destruição destes direitos.

Uma palavra de advertência: não se tornem vítimas dos mesmos racistas, sucumbindo ao racismo; não sustentem, contra todos os negros, a irracionalidade vergonhosa de alguns de seus líderes. Nenhum grupo possui qualquer liderança intelectual adequada ou qualquer representação conveniente, na atualidade.

Para concluir, devo citar o editorial assombroso de 4 de agosto do The N.Y. Times — assombroso porque ideias desta natureza não são típicas de nossa época: “Porém a pergunta não deve ser se um grupo identificável em cor, características ou cultura possuí seus direitos como grupo. Não, a pergunta é se qualquer indivíduo americano, independentemente de cor, características ou cultura, é privado de seus direitos como americano. Se o indivíduo possui todos os direitos e privilégios pertencentes a ele sob a lei e a Constituição, não precisamos nos preocupar com grupos e massas — estes, de fato, não existem, exceto como figuras de linguagem.”


21 de maio de 2014

Você é aquilo que lê

Carlos U Pozzobon

Desabafos sobre filosofalhas e literatolices dos tempos em que vivemos

Carlos U Pozzobon

Que todos conhecem a desgraceira de nossa vida política, não é preciso comentar. O que precisamos entender é a relação de uma sociedade de corte estatal com a cultura, em que o mérito sempre esteve seriamente comprometido com as cotas destinadas à proteção dos tolos, dos despojados de energia intelectual, dos fraquinhos, dos frívolos inseridos no processo de produção cultural ― marca indelével de um país contaminado pela corrupção intelectual, que consiste no espírito de rebanho em aderir à onda produzida pelas calamidades elevadas ao pedestal da glória ― causa maior e mais aviltante do que a corrupção moral em que chafurdamos.

Quando uma Academia de Letras homenageia Ronaldinho Gaúcho com uma medalha de mérito, quando universidades distribuem títulos de doutor honoris causa a um apedeuta, podemos entender por que tanta gente expressa suas preferências por autores com obras vazias de conteúdo estético e artístico.

São essas cotas de literatolice que transformam autores sem conteúdo em celebridades nacionais e internacionais, confundindo o leitor eventual que ainda não tem um gosto consolidado, ou que não dispõe das ferramentas de análise do crítico. Supostamente deve ser a principal razão para que a leitura seja afinal considerada um sofrimento pela maioria dos brasileiros, e por sua inclinação à brevidade do jornal e da revista em lugar do livro.
Escravo do “ouvir dizer”, da fama turbinada pelas editoras “do mercado” (espécie de “seguimento da deseducação geral do país”), e de colunas de revistas, o brasileiro lê com sofreguidão o que lhe dizem que é bom, e procura fugir como o diabo da cruz do próximo bestseller, até que, forçado pela necessidade de inserção social, volta a porejar o sacrifício da leitura, o que o impede de evoluir intelectualmente para apurar seu gosto para os refinamentos mais sutis das formas de expressão, para o deleite eriçante da beleza da linguagem, ou para a compreensão do sublime ou do paradoxal, do poético ou do assombro que só o escritor erudito e talentoso pode proporcionar.

Dependente do padrão alienígena, em uma sociedade cujos valores mais cultivados são a imitação do estrangeiro, cativo das opiniões de membros de instituições avacalhadas difundidas incansavelmente, o leitor comum nunca desenvolverá a sensibilidade para contestar aquilo que a maioria consagra como grande autor. E esta deformidade atravessa as décadas com a mesma constância e uniformidade de nossa imutável realidade social, acorrentada nas tradições desesperadoramente retrógradas.

Quem lê a avassaladora crítica de Sylvio Romero ao espírito limitado de José Veríssimo, em Zeverissimações Ineptas da Crítica – Repulsas e Desabafos, percebe claramente a diferença abissal entre o erudito e o convencional, e entende muito bem por que somos uma sociedade onde a mediocridade tem um lugar garantido no triunfo das corriolas paroquianas, da crítica sem profundidade, do aceito sem controvérsias, para vislumbrar a amorfia que causa a repulsa ao próprio gênio da brasilidade que as instituições têm por missão instigar, pois nem sequer sabem como fazê-lo. Nossa sociedade está tão aviltada intelectualmente que perdeu os sensores que emitem os sinais de alerta para a chegada do mais dotado, para a presença catalítica dos melhores. Vive o entorpecimento de seu próprio contexto de servidão institucional.


Primeiro problema:

O vírus do paternalismo que informa a opinião alheia é o mesmo que cria os gostos literários no Brasil, e estes gostos e tecnicalidades literárias exaustivamente explorados nos EUA, com sua sequência de fórmulas buriladas no jornalismo, e de truques de marketing para a venda massiva pelas casas editoriais, são hoje parte de um universo que idealizamos, mas que não tem um pingo de nossa realidade. Como gostar de nossa realidade se queremos uma literatura engajada na modernidade e nossos autores só fornecem novelas de cangaceiros, bandidos e marginais? Cansados da imutabilidade de nossa realidade social, da resistência intransponível à inserção na modernidade, buscamos no personagem do escritor alienígena as pontes de identidade com nosso mundo subjetivo, para escapar da massacrante realidade de nossa jecolândia ridícula.

Grande engano: os leitores do primeiro mundo mergulham nos escritores do século XIX com uma voracidade insaciável, provando que não é o personagem moderno que atrai, mas a captura da imaginação do leitor pelo mecanismo de marketing das casas editoriais. Portanto, o aspecto histórico é menos importante que a narrativa em si, e não justifica a escolha do padrão. Ninguém usa o padrão de seu próprio tempo como bitola para o julgamento de uma obra literária.


Segundo problema:

Não resta dúvida que a acumulação em proporções legionárias de autores no repertório das letras nacionais deixa o leitor desorientado sobre a quem seguir, especialmente numa fase de rompimento institucional, em que a arrogância passa despercebida no quadro geral da burrice imperante.

Alguém que tenha lido 1000 livros, acha-se no devido direito de recomendar seus leitores para a importância do que sabe, do que lhe parece o melhor de nossas letras e pensamento, e chamar a frivolidade existente de imbecilidade geral.

Mas se no quadro geral da cultura encontramos um conjunto de 4 a 5 mil livros igualmente importantes, e muito além da disponibilidade de leitura do comum dos mortais (pois estou falando apenas da cultura nacional), como afirmar que se conhece “tudo” de mais importante, se todo o dia encontramos autores e livros esquecidos ou desconhecidos de altíssimo conteúdo estético e moral?

Como resolver esta questão volumétrica? A saída parece ser a constante renovação de nossas listas. É por isso que um autor consagrado em uma década, torna-se esquecido logo depois. Sem o saber, ele teve que dar lugar a outro na lista do leitor por simples esgotamento humano. E isto já vem se sucedendo desde Gutemberg.


Terceiro problema:

Amadeu Amaral publicou um livro de crítica literária em 1924, chamado Elogio da Mediocridade, em que enfatizava a necessidade dos menores talentos para que surja um grande talento do meio das sombras: “toda literatura pressupõe uma multidão de medíocres, e não só de medíocres, senão também de inferiores, de rudimentares, de falhados e de decadentes. Tanto mais pujante e luminosa ela é, tanto mais grossa a multidão rasteira. Esse mato baixo sustenta a indispensável camada de húmus, resguarda e entretém a vida incipiente das árvores destinadas à máxima expansão. Foi esse mato que permitiu, na Inglaterra, o crescimento fabuloso de Shakespeare, a cuja volta trabalhava e produzia uma plêiade de dramaturgos fortes e uma turbamulta obscura de escribas irrequietos”.

A ideia de que os menores são absolutamente necessários para o aparecimento e robustez dos maiores foi algo inusitado até então. A questão adquire relevo quando os menores são tomados como maiores, quando as inversões são a própria natureza das instituições. Neste caso, o dano ao espírito pode ser irreversível na formação do gosto, ou ao menos retardar o descobrimento do gênio por muitos anos.

Se o próprio ato de ler é entregar o espírito ao autor, e esta entrega não é feita sem cobrança, só se prepara para a cobrança aquele que atravessou estilos, colecionou trechos, comparou autores e, através da sensibilidade adquirida, soube amadurecer seu entendimento e se tornar um emissor de opinião independente, isto é, um verdadeiro crítico. Com isso, toda a vez que entramos em uma biblioteca e percorremos suas prateleiras, ficamos com a nítida impressão de que um gesto ao acaso pode nos revelar um gênio adormecido no meio da multidão.


Quarto problema:

O crítico profissional tem que lidar com valores que não interessam ao leitor comum. Para Sylvio Romero, a análise da obra literária deveria tratar de sua “personalidade, força, movimento, precisão, elegância, colorido”. O crítico deveria conhecer a evolução dos gêneros, os fatores mesológicos (ecológicos), os fatores étnicos, históricos e psicológicos. Ao leitor comum, estes fatos pouco importam. Mas ele insiste que a crítica deve ter um olho na sociologia e outro na filosofia. Para o leitor doméstico classificar um livro como bom, este deve ser excelente em mais de um dos seguintes tópicos:

  1. O mainstream da obra. Em uma novela ou romance, o argumento principal da narrativa pode ser interessante, por novidadoso ou convencional, por já ter sido abordado por inúmeros autores. Neste caso, o escritor deve ser comparado com os que melhor se conhece em obra semelhante. Mas um livro não pode receber o qualificativo de bom só por isso. Um livro deve ser lembrado pela sua moldura. Por exemplo, em A Montanha Mágica, de Thomas Man, as discussões no sanatório dos Alpes Suíços sobre o espírito da época e a decomposição dos valores liberais que precede a Alemanha Nazista. O projeto de um livro pode ser um debate em torno de algumas ideias, a saga de uma família, um crime hediondo, etc. É o que dele vai ser lembrado em primeira instância.
  2. O tom geral que introduz um livro, um assunto, um capítulo, uma parte. A boa leitura tem esse clima de enlevo e sedução que aumenta à medida que vamos avançando. Ezra Pound disse que um “clássico é clássico não porque esteja conforme certas regras estruturais ou se ajuste a certas definições (das quais o autor, provavelmente jamais teve conhecimento). Ele é clássico devido a certa juventude eterna e irreprimível”. E adverte para as propriedades visuais e sonoras do texto. Poesia ou prosa evocam sons e imagens que podem ser entendidos com a seguinte terminologia: a fanopéia, isto é, a imagem produzida pelas palavras; a melopéia, os sons da linguagem, a sua musicalidade; e a logopéia, a combinação da imagem com o som.
  3. A qualidade da linguagem. A maior praga na vida do escritor é a linguagem jornalística, por se tratar da prosa convencional, do vocabulário restrito ao gosto do povo semiletrado, da forma corriqueira de se escrever. A pobreza com que as pessoas são diariamente bombardeadas pelas mídias tem reflexo na preferência do leitor por uma literatura despojada, em que por incapacidade intelectual o autor se esconde na falsa trincheira do classicismo, como se o clássico fosse o modo de escrever simples e direto. Examinando Dante, Shakespeare, Cervantes e Sterne ficamos bastante chocados com a inexistência do “simples e direto”. Pela linguagem se conhece o autor. Sem o exercício da linguagem, não se conheceria Guimarães Rosa, James Joyce e Falkner. Barrocos como Euclides da Cunha, Alberto Rangel e Lezama Lima não seriam publicados. Mas a linguagem, evidentemente, não é tudo. A narrativa precisa de um fio condutor, para não ser apenas experimentalismo sem trama, alegorias desossadas, como, aliás, esteve na moda no final do século passado.
  4. A qualidade das metáforas. Este é o terreno onde mais transparece a diferença entre um escritor de verdade e um convencional, destituído de conteúdo e de sensibilidade poética e humana. É um dos elementos que vai ficar na nossa memória como qualificação do escritor, mesmo depois de muitos anos. Eu nunca mais esqueci a metáfora de Lezama Lima para a modorra de uma tarde de domingo: “arena demasiada espesa en la clepsidra”. A metáfora fala por si mesma: nela está o universo posto em relação. Associada à metonímia, temos um dos ingredientes que mais nos encantam em qualquer livro. Boa parte do talento de escrever surge da propensão natural do escritor para a criação de metáforas que se encaixam perfeitamente na descrição e a que correntemente chamamos de inspiração.
  5. As grandes manifestações da alma humana na questão da ironia, da evocação do riso, na construção da sátira, do sarcasmo. Existem escritores famosíssimos que não têm o mínimo senso de humor. Outros, cujo humor é tão ralo, tão misterioso, que passa despercebido. Considere um autor celebrado como José Lins do Rego, e seu livro Fogo Morto. Trata-se de uma novela de cangaceiros, escravos e coronéis em que todos os personagens estão permanentemente zangados. Só há lugar para descontentamento, destempero, desejo de vingança, inveja e desentendimentos. Por todo o livro pervade o tom desesperador de uma sociedade desagregada em torno do caráter de seus personagens cruéis ou bobalhões. Não há uma linha de ironia, um parágrafo de humor, uma página burlesca. E o Brasil está cheio de clássicos carrancudos, de escritores sem traço de sátira, sem derivação ainda que fugaz para o jocoso, com uma seriedade de velório como se a literatura fosse a guardiã do espírito institucional do homem e não de seu mundo público, político e privado. Nada mais escandalizador na literatura do que a ausência de humor em uma época de liberticídio e de devassidão institucional. Eu não recomendaria Lins do Rego, a menos que fosse pelo conhecimento sociológico que sua obra oferece.
  6. O embasamento histórico, literário, filosófico, psicológico. O que distingue um autor de peso de um reles escrevinhador é a densidade psicológica dos diálogos, os cortes epistemológicos, a transversalidade do saber em que se move nas suas fontes. Um leitor erudito sente-se recompensado com a familiaridade do autor com seu mundo, e estes vínculos criam as simpatias. Para um leitor iniciante, ainda pouco familiarizado com a vida literária, isso pode ser a fonte de referências para prosseguir na satisfação de sua curiosidade intelectual. A melhor forma de se tornar culto é seguir as indicações daqueles escritores de que se gosta.

Quinto problema:

Uma grande obra literária precisa ser excelente em algumas das combinações acima, para não cair no lugar comum da escritura frívola e maçante da cultura de casquinha. A profusão de “romancezinhos” tem impedido o desenvolvimento do prazer estético em uma porção não desprezível de leitores. Associado ao vício das novelas de televisão, produz uma massa de consumidores infensos à cultura literária erudita, que ao fim termina repercutindo na imarcescível vulgaridade das instituições sociais onde inexiste o rigor, e onde o aplauso obsequioso se torna a moeda de troca corriqueira entre os pavões literários.

A má educação intelectual é reconhecida no leitor que “ouviu falar” e precisa fazer um esforço sobrenatural para conseguir chegar ao fim. De fato, algumas grandes obras são labirínticas e cansativas (Stern), mas existe uma diferença entre elas e o tédio provocado pela falta de interesse suscitado pela má educação, pois esta pode ser uma trajetória sem retorno para o indivíduo, que, despreparado, não poderá dizer com segurança por que um autor é melhor do que outro a não ser pela manifestação binária do gostei, não gostei.


Sexto problema:

Estes são os elementos que o leitor deve observar em um livro. Mas a moeda tem duas faces. Pode-se classificar a obra literária do ponto de vista do escritor. Ezra Pound classificava da seguinte forma:

  1. Inventores. Homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo.
  2. Mestres. Homens que combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores.
  3. Diluidores. Homens que vieram depois das duas primeiras espécies de escritor e não foram capazes de realizar tão bem o trabalho.
  4. Bons escritores sem qualidades salientes. Homens que tiveram a sorte de nascer numa época em que a literatura de seu país está em boa ordem, ou em que algum ramo particular, em que a arte de escrever é “saudável”.
  5. Beletristas. Homens que realmente não inventaram nada, mas que se especializaram em uma parte particular da arte de escrever, e que não podem ser considerados 'grandes homens' ou autores que tentaram dar uma representação completa da vida ou da sua época.
  6. Lançadores de modas. Enquanto o leitor não conhecer as duas primeiras categorias, será incapaz de 'distinguir as árvores da floresta'. Ele pode saber que 'gosta', ser um verdadeiro 'amante dos livros', com uma grande biblioteca de volumes magnificamente impressos, nas mais caras e vistosas encadernações, mas nunca será capaz de ordenar o seu conhecimento ou de apreciar o valor de um livro em relação a outros, e se sentirá ainda mais confuso e menos capaz de formular um juízo sobre um livro cujo autor está 'rompendo com as convenções' do que sobre um livro de oitenta ou cem anos atrás.
    Ele jamais compreenderá a razão pela qual um especialista se mostra irritado ao vê-lo exibir pomposamente uma opinião de segunda ou terceira mão a propósito dos méritos de seu mau ator favorito.
    Até que vocês tenham feito a sua própria vistoria e o seu próprio exame detalhado, convém acautelar-se e evitar aceitar opiniões:
    a) de homens que não tenham, eles mesmos, produzido obra importante;
    b) de homens que não assumiram o risco de publicar os resultados de sua inspeção pessoal, ainda que o tenham feito seriamente.”

Os inventores são completamente desconhecidos da mídia. Eles podem ser falados depois de alguns anos ou décadas, mas em nossa cultura são considerados malditos. Os mestres só aparecem a partir de algumas casualidades ou pelas vinculações do autor com o mundo literário. O mestre pode ser qualificado: mestre da sátira (O Brasil pelo Método Confuso, de Mendes Fradique); mestre da crítica (toda a crítica de Sylvio Romero), etc. Os diluidores são os mais aplaudidos porque movimentam a indústria editorial e são apresentados como geniais. Os bons escritores sem qualidades salientes são os norte-americanos em sua maioria, todos técnicos experimentados na mídia, e em geral publicando a maior parte dos livros disputados pelo público.

A principal qualidade, segundo Ezra Pound, para que um escritor viva para sempre é poder dispensar as escolas e faculdades. Ele não viveu para conhecer as possibilidades de associação de leitores como nos nossos dias, que são capazes de manter vivos autores de todos os tempos e línguas.


Sétimo problema:

Nossa disjunção institucional reflete-se diretamente no problema da qualidade das traduções. Se não fosse um punhado de abnegados, não teríamos avançado muito nesta arte. Em todas as épocas existiram grandes tradutores em pequena quantidade, e muitos livros mal traduzidos.

Os “traditores” são uma praga tão grande quanto a falsificação planejada, proposta e aprovada pelo Ministério da Cultura, de uma obra de Machado (O Alienista de 1882), e outra de José de Alencar (A Pata da Gazela), que recebeu a inacreditável importância de mais de um milhão de reais para vulgarizar as expressões e produzir 600 mil exemplares para ser distribuídos gratuitamente pelo Instituto Brasil Leitor.

Essas decrepitudes literárias afrontam a sociedade em seus foros mais impensáveis. E não se vê a Academia de Letras, nem a Biblioteca Nacional protestarem contra o insulto que se acaba de cometer. Em poucos anos, a corrente, a doxa, os ventos e trabuzanas da idiopopulice foram capazes de trazer e vingar sementes que não pertencem ao mundo ocidental: em todas as épocas históricas, os menos dotados sempre se elevaram ao pedestal dos mais dotados.

Em toda a grande civilização, o mérito sempre foi premiado e como tal reconhecido através de seus grandes feitos. Falhava a civilização que desprezava seus gênios. Com o PT no poder, e seu populismo rasteiro e demagógico, lenta e progressivamente os menos dotados passaram a dar o tom na vida social.

A música, o cinema, as artes em geral ficaram sob o abrigo de uma nova classe de funcionários repulsivos, ideologizados para transgredir intencionalmente todas as normas e preceitos da tradição e da cultura, produzindo uma inundação de tolices que, paradoxalmente, no dia em que nos livrarmos deste pesadelo, serão os exemplos mais dantescos de nossa decomposição social, o relicário vergonhoso de desatinos que se avolumaram como resultado de uma sociedade dividida e paralisada em sua capacidade de se regenerar.

Espero que a exaustão nos leve a um renascimento, tal como o mundo viveu em 1945. Somente então os que puderem olhar para trás poderão perceber tudo o que ficou registrado de filosofalhas e literatolices.