Translate

14 de abril de 2014

Sylvio Romero - Nosso Maior Mal

De Provocações e Debates - pgs. 102-114

Nosso maior mal... A febre amarela? As secas do norte? O clima tropical? As oligarquias estaduais? A politicagem?

Não; nada disso.

Com serem coisas graves, muito graves até, podem ser atenuadas, a começar pela febre amarela, que vai desaparecendo... Não é, pois, desses flagelos que venho falar. O maior mal do Brasil, e não é cosa que lhe seja exclusivamente peculiar, porque muitos outros povos participam do mesmo achaque: é — pretendermos ser, como nação, como todo político-social, o que não somos realmente.

É um estudo de psicologia popular, de antropo-sociologia nacional que não tem sido feito e do qual darei apenas algumas linhas gerais.

Dá-se com as nações o que se dá com os indivíduos: a maior parte dos erros, dos embaraços, das decepções, das quedas, dos prejuízos, dos desastres e até da total ruína que cada um de nós comete, encontra ou sofre na vida, provém pura e simplesmente, quase sempre, desta coisa tão simples, tão rudimentar, tão indesculpável, — o desconhecimento de nós mesmos.

Cada um pode fazer a experiência e sairá edificado do exame. A inconsciência, em que a maior parte das pessoas vive das lacunas de sua inteligência, da insuficiência de seu saber, dos vícios de seu caráter, da fraqueza de sua vontade, — é a origem da precipitação, da leviandade, da arrogância, dos falsos cálculos, dos passos errados, das loucuras praticadas.

Pois bem; essa espécie de leviandade, de perigosa pedanteria acomete também o espírito coletivo, a índole dos povos. Assaz sofremos, nós os brasileiros, — desse mal.

Afigura-se-me ser ele, não a única fonte de nossos desastres, senão, certo, a mais considerável de todas. Nós brasileiros, entre muitas qualidades de bom quilate, entre muitos predicados merecedores de apreço, temos a fantasia demasiado inflamável, e, em se tratando peculiarmente de nosso valor, de nossas grandezas, de nosso prestígio, de nossas superioridades, de nossos progressos, de nossa cultura, de nosso papel no mundo, perdemos, com a mais singela, íntima e sincera confiança, o senso da realidade, a consciência das coisas e nos julgamos colocados no pináculo entre as nações.

Foi sempre assim. Desde os tempos coloniais, a datar do terceiro século da colonização, esse prazer, essa embriaguez dionisíaca, para falar com Nietzsche, por tudo quanto é nosso, foi a primeira ação reflexa embutida em nosso caráter pelo aspecto geral de nossa natureza.

Foi a primeira dádiva do meio — brilhante, colorido, matizado na terra por primavera imorredoura, no mar pelas doçuras intérminas dum glauco inigualável, no céu pela luz dum sol do qual se pode dizer que colabora com a gente, que preside ao trabalho, e bem merece o canto do poeta que lhe chamou de eterno concidadão que nos ajuda e conforta...

Ação fisiológica inconsciente, ainda reforçada pelos crepúsculos alucinantes de beleza, pelas noites embevecedoras de infinito, no palejar das estrelas, ou embriagadoras de intraduziveis aspirações, nos luares esplêndidos...

Desde Rocha Pitta a descrição do meio está feita e a característica da gente implicitamente traçada. Ao crítico e psicólogo, porém, incumbe a ingrata função de desfazer miragens, reduzir fantasias, dissipar ilusões. Pratica-o quase sempre com mágoa e dor, pois sabe que vai chocar preconceitos e suscitar cóleras e esconjuros. Mas há uma coisa, que para o crítico e psicólogo, sincero consigo mesmo e com o país, está acima de todas as conveniências de momento: a verdade estrita no interesse real, positivo do povo.

Este é o dever dos deveres, o primeiro mandamento do decálogo do patriotismo. Nas linhas que a estas se deverão seguir procurarei despretensiosamente apontar, muito de leve, os males que nos têm, a nós brasileiros, advindo desse, a primeira vista inocente, passatempo de nos darmos por bem mais notáveis e grandiosos do que na realidade somos.

Em todas as esferas das manifestações da atividade nacional se tentará descobrir os efeitos do mal. Política, estado social, direito, finanças, ensino público, literatura, economia nacional, indústrias, tudo passará rapidamente sob as vistas do leitor neste rápido estudo de etiologia popular.

É bem de ver que, neste despretencioso artigo, não poderei dar às teses demonstração documentada, largamente desenvolvida, como fora mister num livro, por exemplo, que tivesse de traçar o quadro real da situação brasileira.

Não poderei oferecer aos leitores senão proposições gerais apoiadas em provas singelas de facílima verificação.

Algumas dessas afirmações, ou melhor, quase todas elas — são simples postulados do bom senso geral que andam aí formulados em todos os espíritos. São proposições evidentes que andam de boca em boca.

Meu trabalho será apenas o de fazer uma síntese, enfiar as contas de um rosário que quase toda a gente tem manipulado.

Nosso maior mal, disse, é não termos a consciência positiva do que realmente somos e, muito ao invés disso, darmo-nos a nossos próprios olhos uma superioridade, uma grandeza, um poderio, um progresso, uma cultura, um adiantamento, uns predicados quase sem par por aí além entre as demais nações.

Dessa terrível inconsciência derivam males gravíssimos em todas as esferas da vida nacional: política, estado social, direito e legislação, finanças, ensino e educação, literatura, economia nacional, indústrias, e moral publica.

Comecemos pela política. Na presunção de sermos tão bons como os melhores, tão distintos como os mais distintos, tão cultos como os mais cultos, tão enérgicos como os mais enérgicos dentre os povos que se acham à frente da civilização moderna, vão-se prender na ordem política muitíssimos desvarios, erros e tropeços que nos têm causado e hão de ainda causar por muito tempo os maiores males. Entre eles avulta a leviandade infantil com que sempre nos temos embalado na doce ilusão de que para nosso andar desassombrado no mundo, fazendo nele a mais brilhante figura, não temos mais que copiar as constituições e leis dos povos mais cultos e transportar para cá as instituições que alhures deram os melhores frutos.

Se tivéssemos verdadeiro juízo e são critério, teríamos logo visto que institutos, aparelhos, órgãos políticos são a frutificação secular, e muitas vezes milenária, de funções nacionais formadas, desenvolvidas, selecionadas nas condições peculiaríssimas do viver de cada nacionalidade; não são coisas que se transplantem ao nosso bel-prazer.

Fazê-lo é dar provas da maior incapacidade criadora, da mais completa ausência de plasticidade para o meneio das coisas políticas. Fazê-lo é tomar a vacuidade retórica, retumbante, palavrosa de nossos parlamentares, que tem sido os chefes de nossos governos ou os inspiradores de nossas leis, como coisa séria, aproveitável, organicamente útil.

Desse formidável parto de nossa incapacidade real, enfeitada apenas em frases que a turba acha bonitas, origina-se o fracasso completo, radical, irreparável, exposto aos olhos da nação, de todas as instituições populares, transplantadas para o nosso meio, sem que presidisse à mudança a mais leve adaptação.

E nota-se até que quanto mais perto do povo devia ficar o instituto para ser por ele mesmo exercido em seu próprio proveito, maior foi a decadência, mais desastrada a ruína.

Deste número são: o júri, as câmaras municipais, as assembleias provinciais; o júri, que no Brasil se transformou em aparelho protetor de assassinos, ou seguro de vida para ladrões; as câmaras municipais, horrendas cavernas de Caco, terríveis ratoeiras para arrancar aos povos os últimos vinténs, enriquecendo pelo país em fora verdadeiros clãs locais de mandões insaciáveis; as assembleias provinciais mudadas agora em congressos e senados Estaduais, são guardas avançadas ao serviço das oligarquias, cujos interesses defendem com a espoliação muitas vezes, dos haveres das populações e sempre com o sequestro das liberdades públicas.

Não é só: entre os males de ordem política, devidos à nossa presunção de nos supormos o que não somos, destacam-se as duas constituições políticas, copiadas de modelos que somos incapazes de seguir com segurança e vantagens práticas: — a Constituição Imperial, liberalizante em excesso, não condicionada ao nosso meio; a Constituição Republicana, copiada por alguns fantasistas desarticulados, talentos inorgânicos, que sempre tiveram a simploriedade de confundir palavras com ideias...

Daí a pasmosa decadência do parlamentarismo, que se foi pouco a pouco transformando no famoso sorites de Nabuco de Araújo É famoso, na história do Brasil, o "sorites de Nabuco" – silogismo com o qual o primeiro Nabuco, José Thomás, descreveu o sistema político do Segundo Reinado: "O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país". O sorites de hoje seria: "O presidente chama parceiros porque não consegue presidir sozinho; estes parceiros abrem espaço para a malversação e as falcatruas; a malversação e as falcatruas levam o governo a perder o rumo e a afundar num mar de escândalos" (Fonte: Revista Veja nr.1906). Daí esse presidencialismo repulsivo, de cujo ventre brotaram vinte e uma oligarquias ou satrapias fechadas, irredutíveis, verdadeiros clãs como os do País do Roubo em Marrocos, menos a coragem, o pitoresco e a poesia que vive ali nos tipos e nas coisas.

E há pior: como estamos cada vez mais a pensar que o Brasil se reduz todo ele a esta velha carcaça do Rio de Janeiro, que, como as mulheres de Jerusalém acreditavam que se salvavam só com o tomarem trajes garridos, imagina que só com a abertura de avenidas tem atingido todas as grandezas, no mais triste abandono jaz cada vez mais a educação política das massas, cujo caráter se tem, ao contrário, cada vez mais inconvenientemente aviltado.

Tem sido uma verdadeira lição de coisas: tem-se levado sistematicamente às massas a convicção que isto de vida política é coisa com que elas nada têm a ver; é um negócio de poucos, de alguns escolhidos, de raros privilegiados.

Basta o Bloco empoleirado no centro, os sátrapas nos Estados e está tudo feito...

Ora, a política, segundo a melhor definição que dela se conhece, — é, como ciência, a teoria da vontade popular, como prática, a realização desta vontade.

O Brasil desmente em absoluto tal verdade. A prova temo-la irrefragável neste fato vergonhosíssimo, cheio dos mais alarmantes perigos: a indiferença, o desinteresse, o alheamento completo em que andam as massas, o povo, as gentes todas de alto a baixo por seu viver como nação, seus destinos coletivos, suas funções históricas, suas aspirações ideais.

Dirigidos andamos por incapazes que exercem a sinistra função de lobrigar na política desta grande terra apenas as suas vantagens particulares, as suas vantagens deles, Bloquistas, Sátrapas, Oligarcas, Senadores, Ministros, Deputados... Mandões, Chefes de clã, tigres famintos que arrocham os pulsos aos povos, sufocam neles todos os nobres impulsos de ideal para melhor devorar-lhes as carnes.

Desta suprema degradação, origina-se o criminoso, aviltante e miserando abandono em que andam as eleições políticas no Brasil, o espetáculo mais desprezível que se possa deparar nos anais da humanidade.

Isto mesmo é que obriga os hediondos especuladores que entre nós têm o nome de Chefes Políticos, Chefes de Partidos, Estadistas, cuja ciência consiste em povoar o solo por decreto, criando repartições onerosíssimas; fomentar a agricultura, enviando vadios e nulos à Índia, à China e ao Japão para que nos ensinem como se planta café e se fabrica açúcar...

Um cúmulo !

Trataram de incutir o mais possível na crença do povo que ele é dos mais cultos e adiantados existentes na terra. Ora, se a multidão já é assim, que não será a elite dirigente? Que não serão os super-homens dessa gente? Verdadeiros gênios, assombrosas capacidades, aptos para meter no chinelo os maiores guias de povos que tem existido, os Alexandres, os Césares, os Fredericos, os Cromwels, os Bismarcks...

Mas a realidade é bem outra: ignorância, pauperismo, miséria, opressão reinam por toda a parte. A demonstração prática deste monstruoso estado das populações nacionais, desde a serra de Parima, ao norte, até o Quaraí, ao sul, é a coisa mais fácil, mais simples que possa existir e quase não precisa ser feita, porque está na consciência geral, e até na da gente do Bloco...

E é porque vivemos na fantasia de ser um grande, poderoso, riquíssimo, avançado, cultíssimo povo, tanto que (é a crença geral...) fazemos sempre a primeira figura em todos os congressos mundiais, e é porque, como consequência dessa miragem, julgamos os nossos estadistas prodigiosas cabeças, dignas da veneração universal, que, como os loucos que se julgam reis, não damos fé do deplorável estado em que nos debatemos.

Este sistema de iludir e consolar é, consciente ou inconscientemente, mantido pelos poderosos desfrutadores da política e do trabalho do povo brasileiro.

Não lhes convém que a nação abra os olhos; porque, no dia em que ela tiver a vista clara de sua deplorável situação, a vista clara produzida, não por essa instrução palavrosa, superficial, falsa, cheia de mentiras, aleatória de toda a masculinização e dignificação da vontade que se inocula sistematicamente nas gerações novas, mas por uma educação em que se incuta na alma dos moços que o caráter é a primeira força social, porque nesse dia ruirá por terra a infamante politicagem bloquista que nos avilta.

Não haverá mister de derramar sangue: basta que alguns milhares de homens, em dia de eleição, saiam à rua decididos a exercer com firmeza, coragem, verdade, o seu direito de voto, no intuito de expulsar das altas posições executivas e parlamentares os nulos, os prevaricadores, os traficantes.

Mas assim como para fazer uma fritada são indispensáveis os ovos, para fazer uma boa eleição são de primeira necessidade — quem vote e em quem se vote. É o que não temos, nunca tivemos e não teremos tão cedo no Brasil: porque nós não temos tido até agora, e não a teremos facilmente uma disciplina deliberada do caráter nacional, e a consciência iniludível de uma função histórica a desempenhar.

Temos estado nas condições descritas pelo poeta, de:

— Sermos um povo rebanho
Sem aprisco e sem pastor.

O que disse da política, desvirtuada entre nós por nossa fatuidade de querermos passar por um grande povo, estando ainda muito longe de sê-lo, o que importa dizer que deixamos de curar de nossos males, correndo atrás de aventuras, o que disse da política se repete, mutatis mutandis, de tudo o mais. É a esse vezo que, na ordem social, em vez de cuidar de arrancar da barbárie as populações do interior, de espalhar o ensino e fortalecer a educação, tratamos apenas de embelezar a capital, principalmente para com isso iludir o estrangeiro.

É a esse vezo que devemos a importação de um socialismo espúrio que ainda nos há de trazer dias aflitíssimos. Pelo que toca ao direito e legislação, é a esse desvario que devemos o não estudar as necessidades práticas de nossas gentes e entrarmos a copiar atabalhoadamente as leis estrangeiras, sem a menor adaptação a nosso atrasadíssimo estado de cultura, além de outros disparates ainda maiores.

No que se refere ao ensino público, é a nossas ilusórias fumaças de possuirmos enormes talentos, eminentíssimas capacidades, proficientíssimos mestres, que havemos de atribuir o desprezível estado de abatimento em que ele tem caído.

Para a mais elementar instrução primária, como para a mais elevada e superior, passando pela secundária e pelas aplicações técnicas, há muito deveriam os governos ter contratado no estrangeiro mestres de verdade. É principalmente o que nos falta. Disto havemos mister muito mais do que de fortes e poderosos couraçados.

Na literatura é a mania de tão bom como tão bom — que leva toda a gente a desprezar os assuntos nacionais, nossas tradições, nossos costumes, todos os aspectos em suma, d'alma do povo em todas as classes para andar a sonhar com os eslavos de Tolstói os escandinavos de Ibsen, os germanos de Nietzsche...

O mais elementar bom senso está a indicar que desses grandes mestres o que nos aproveita é o próprio exemplo, isto é, estudar a alma de nossas gentes, como eles estudaram as de seus patrícios.

No que se refere a finanças, basta mostrar que é onde a fátua pretensão que venho apontando tem acumulado maiores destroços. Todas essas loucuras de impostos sobre impostos, lançados às populações já exaustas; todos esses empréstimos sobre empréstimos, malbaratados em obras de luxo; essas exposições fantásticas e mentirosas; essas embaixadas de ouro; essas encomendas de formidandos navios de guerra, iguais ou maiores que os da Inglaterra, dos Estados Unidos e da Alemanha, não tem outra origem: aparentarmos o que não somos, — custe o que custar... É o cúmulo da insânia.

Quanto à vida econômica geral da nação, os desastres acumulados pela fatal moléstia são terribilíssimos. Desacostumou-se, com o sistema dum protecionismo criminoso, o povo do exercício natural das suas atividades econômicas conforme as zonas do país: numas o pastoreio, noutras a pesca, nestas a mineração; naquelas a lavoura do café ou do algodão, ou do tabaco, ou da cana, ou dos cereais; aqui os frutos arborescentes, além as plantas extrativas, etc. etc.

Em lugar disto, teima-se em criar uma indústria de estufa, que só serve para pagarmos caríssimo os mais grosseiros artefatos. São os nossos progressos...

Claro é que todas estas teses poderiam ser largamente esplanadas. Meu fito foi apenas formular, de leve, a lista dos prejuízos que sobre nós desencadeia a mais fatal de nossas moléstias, o nosso maior mal: a mania de passar pelo que não somos.


Janeiro de 1908.


-

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentário livre, desde que pertinente ao assunto e decência vocabular.