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6 de agosto de 2013

O Sagrado e o Profano no século XVII

Juana Inés de La Cruz e Gregório de Matos: o sagrado e o profano no século XVII

Carlos U Pozzobon
  • Octavio Paz: Sóror Juana Inés de la Cruz – As armadilhas da fé –– Ed. Mandarim, 700 p. 1998.
  • Pedro Calmon: A vida espantosa de Gregório de Matos –– Ed. José Olympio, 1983.
  • Gregório de Matos – Obras Completas – Ed. Cultura, 1945 – 2ª edição
  • Obras de GM na Internet

Duas sumidades latino-americanas do século XVII, contemporâneas e opostas, que merecem muito mais do que um artigo comparativo, e que portanto não deveriam ficar esquecidas neste mundo de tantos títulos acadêmicos de doutorado em literatura comparada.

Juana Inés nasceu em 1648, na cidade do México; Gregório de Matos em 1636, em Salvador, Bahia. Morreram no mesmo ano de 1695. Ambos leram Quevedo (1580-1645), Calderon (1600-1681), Gôngora (1567-1627) e Cervantes (1547-1616) entre tantos escritores de seu tempo. Escreveram os mesmos tipos de poesia, mas Matos jamais publicou seus poemas e provavelmente nunca tenha ouvido falar de Juana Inés. Matos era filho de uma família rica da Bahia e se formou em advocacia em Portugal, mas não teve uma vida literária integrada, ao contrário, a poesia para ele não tinha nenhuma relação com as instituições.

Octavio Paz, em seu monumental trabalho de interpretação da obra de Juana Inés, desconhece totalmente Gregório de Matos. Para um intelectual do porte de Octavio Paz, a quem as comparações brilhantes e contundentes perfazem todos os seus artigos e ensaios, foi realmente uma ausência lamentável não conhecer Gregório de Matos. Mas o mesmo aconteceu no século XVII e se repete em nossos dias. Não seria abusivo supor que a Internet veio para produzir mais esquecimentos e perdas do que achados. Obras realmente dignas de figurar no panteão dos clássicos estão condenadas a ficarem no descuido dos blogs, dos sites e das indicações sem cliques das redes sociais pela impossibilidade de serem detectadas na avalanche de informações triviais.

Considerada a maior poetisa do século XVII, Juana Inés tornou-se a representação do gênio maldito condenado à renúncia e ao silêncio em uma época em que o totalitarismo tinha o estigma do poder associado à religião, em uma sociedade que recusava o Iluminismo nascente e vivia do dogma e do controle social pela ortodoxia da Contrarreforma.


Sobre Juana Inés

Juana Inês é um exemplo de pessoa incomum para sua época: a opção pela vida intelectual ainda jovem a inclinou para a vida religiosa — a única opção para uma mulher sem dotes econômicos na Nova Espanha. Abandonando a vida mundana, dedica-se inteiramente à combinação dos deveres monásticos com a vida intelectual. Poetisa, preparava os textos para os eventos públicos das festas religiosas, escrevia peças de teatro e mantinha intensa correspondência com os principais escritores espanhóis de seu tempo. Seu confessor, o jesuíta Antonio Nuñez de Miranda, disse sobre ela: “havendo conhecido (...) sua erudição singular com sua não pouca formosura, atrativos para a curiosidade de muitos que desejariam conhecê-la e seriam felizes cortejando-a, costumava eu dizer que não podia Deus enviar calamidade maior a este reino que permitir que Juana Inés se tornasse a personalidade do século”. (p. 15)

Inicialmente, Octavio Paz expõe a questão insolúvel entre a vida e a obra de um escritor: as lacunas, diferenças, e ao mesmo tempo a metafísica desse escritor representar o espírito de sua época. Se existem dificuldades para se conhecer a história pela obra literária, pois ambas são independentes, por outro lado é a obra literária que termina dando sentido à história. E a crítica de Octavio Paz sempre foi extremamente sensível a essas contradições. Toda obra literária está alicerçada em suas predecessoras. Ao mesmo tempo, todo escritor tem vínculos com seus contemporâneos. Paz enfatiza a correlação entre obras que são suas inspiradoras e ao mesmo tempo rivais. Uma obra tem também relação com seus leitores. Vendo por outro ângulo: são os leitores que interpretam a obra e que lhe dão sentido. Por outro lado, os leitores desempenham o papel de censores. “Em toda a sociedade funciona um sistema de proibições e autorizações — o terreno do que se pode ou não fazer. Há outra esfera, geralmente mais ampla, dividida também em duas zonas: o que se pode ou não dizer. As autorizações e as proibições abrangem uma vasta gama de matizes muito rica e que varia de sociedade para sociedade. Contudo, umas e outras podem dividir-se em duas grandes categorias: as expressas e as implícitas. A proibição implícita é a mais poderosa; é o que ‘por sabido se cala’, ao que se obedece automaticamente e sem refletir. O sistema de repressões vigente em cada sociedade repousa sobre esse conjunto de inibições que nem sequer exige a aprovação de nossa consciência”. (p. 18)

Um autor não lido sofre o pior tipo de censura de uma sociedade: a indiferença. Por isso, Paz acha que na sociedade moderna a luta contra a indiferença faz da poesia um ato de rebelião, uma vez que a arte e a poesia não se inserem na sociedade como valores racionais. A rebelião é assim conatural ao artista. Ele busca superar a indiferença, a pior de todas as censuras. “A poesia não é um gênero moderno; sua natureza profunda é hostil ou indiferente aos dogmas da modernidade: o progresso e a supervalorização do futuro... A poesia é, por natureza, extemporânea”.


Sobre Gregório de Matos

Por sua vez, Gregório de Matos era poeta nato, instintivo e culto. A população do recôncavo baiano no final do século XVII era de 35 mil pessoas, sendo que 20 mil eram escravos. Havia mais de cem engenhos de açúcar na região. Tanto Gregório como o padre Vieira tiveram irmãos que foram secretários de estado em Salvador em períodos diferentes.

Indo estudar em Coimbra (1652-1660) e vivendo em Portugal por 30 anos, retorna ao Brasil como versejador sem obra publicada devido mais à sua personalidade do que à impossibilidade de fazer isso em Portugal. Seus poemas eram presenteados a amigos na forma de manuscritos. Escrevia versos de encomenda e para presentear amigos, para celebrar nascimentos, falecimentos, casamentos e até ocorrências cotidianas. Sabemos que na Espanha de Gôngora, os poemas que acompanhavam os músicos eram chamados de ‘Cancioneiros’ porque eram escritos na forma pela qual hoje chamamos de ‘songbooks’, e circulavam como manuscritos. Sua fase mais profícua ocorre na Bahia (a partir de 1682), um local que não tinha imprensa por decisão da corte portuguesa, e onde a impressão de livros só veio a ocorrer depois da Proclamação da República. O que se conhece de sua obra foi salvo pelo último governador da Bahia (enquanto Matos ainda estava vivo), D. João de Lencastre, que sendo seu admirador, guardava seus versos. Depois da morte de Matos, o governador colocou um aviso solicitando uma doação de todos aqueles que o haviam conhecido em vida, ou que haviam sido presenteados com seus poemas. Diversos manuscritos foram doados anonimamente, principalmente porque muitos eram eróticos e licenciosos. Contudo, não se sabe se todos os poemas eram de fato de Gregório, ou se foram incluídos em seu repertório de sabujices. Por exemplo, a edição de 1945 de suas “obras completas” (tomo 1, p. 145, Edições Cultura) tem um poema em homenagem à morte do Padre Vieira (1608-1697), uma impossibilidade cronológica, pois o padre Vieira morreu dois anos depois de Matos. E a primeira reunião dos manuscritos só ocorreu em 1711, 16 anos depois de sua morte. Isso comprova que muitos versos apócrifos foram inseridos na sua coleção.

Gregório era o típico representante da boemia da colônia. Não tinha disposição para a burocracia do poder imperial. Era advogado, mas não se adaptava ao mundo jurídico e suas filigranas processuais. Seu mundo íntimo era a poesia. Acompanhado de uma viola a qual tangia com seus versos, como os repentistas de hoje, usava a poesia como forma de convívio, desafio, entretenimento, conquista amorosa e inspiração. Seu trato social não estava reservado à nobreza, da qual era parte por nascimento, mas às camadas populares. Mulherengo, festeiro, despojado e vivaz, obtinha pela palavra afiada o respeito que não conseguia na profissão de advogado. Por isso foi chamado de Boca do Inferno. Conta Pedro Calmon que já em Coimbra, onde ficou oito anos (1652-1660), “optara cedo pela sátira e pela audácia, as Musas bailando ao compasso da lira no seu palco vadio”. (p. 19)

Mancebo sem dinheiro, bom barrete,
medíocre vestido, bom sapato,
meias velhas, calção esfola-gato,
cabelo penteado, bom topete.
Presumir de dançar, cantar falsete,
jogo de fidalguia, bem barato,
tirar falsídia ao moço do seu trato,
furtar a carne à ama, que promete,
A putinha aldeã achada em feira
eterno murmurar de alheias famas,
soneto infame, sátira elegante,
Cartinhas de trocado para freira,
comer boi, ser Quixote com as damas,
pouco estudo, isto é, ser estudante.

Rimando barrete (não só o chapéu, como também em Portugal significando artifício para enganar, embuste) com esfola-gato, que não é senão a mesma coisa, já confessa no soneto sua personalidade de estudante boêmio.

Foi acusado de plagiar Gôngora por pura maldade, posto que seu maneirismo tinha ares do espanhol celebrado. Quem tem talento não precisa dos outros senão para estudo, mas já as más línguas da época destilavam sua infâmia movidas pelo ciúme provocado pelo gênio. Incontido, cortejando as freiras nos muros dos conventos nas noites sem lua, “fugindo dos quadrilheiros nos labirinto dos palácios confusos” (p. 24), acabou sendo preso e cumpriu pena em sua casa. Era um existencialista “avant la lettre”, uma personalidade que somente seria entendida e correspondida com a liberdade do século XX.

Bacharelou-se e deixou Coimbra, maldizendo em versos a cidade, para voltar a Lisboa e casar 4 meses depois de formado (agosto de 1661). Naquela época, havia um curioso ritual de casamento. Primeiro, era preciso testemunhas de solteiro. Depois, um atestado cartorial que comprovasse a limpeza de sangue como garantia de súdito da corte. Por limpeza de sangue se entendia a análise do parentesco até os avós, para determinar se havia sangue judeu ou mouro ou africano. Somente então era concedida a licença de casamento. Um procedimento que os nazistas haveriam de imitar 300 anos depois. Comprovado que noivo e noiva tinham “sangue cristão dos quatro costados”, a autorização era emitida. Com o casamento, segue-se a nomeação para o cargo de juiz de fora em uma vila alentejana. Era o início de carreira que o levaria logo depois a juiz de cível em Lisboa.

Sua carreira não foi fácil, e logo o espírito inadaptado às funções jurídicas iria pesar sobre seus ombros de forma irremediável. Com a notícia na Bahia de seu desempenho, a Câmara Municipal houve por bem nomeá-lo procurador na corte, cargo que aceitou pelo ordenado, mas logo com o cargo vieram os encargos, e a burocracia política lhe causava tal transtorno que não foi capaz de fazer qualquer coisa para atender aos reclamos da Bahia: foi demitido.

Ficou viúvo aos 42 anos (havia casado com 25 anos), e perdeu o jeito de juiz grave, mandou às urtigas a circunspeção e “desmandou-se, na decadência prematura que o faria miserável, entre os mais desafortunados, e invejado entre os maiores poetas” (João Calmon, p. 37).

Sua fama veio rápida pela agilidade como repentista. No século XVII, “glosar motes” significava dizer uma estrofe como motivo da obra cujo conteúdo desenvolve a ideia sugerida pela estrofe. Um testemunho de sua perícia escreveu: “Conhecemos aqui em Lisboa um homem que glosava motes (por dificultosos e paradoxais que fossem), sem deter-se mais do que quando corria a mão pelo bigode, torcendo-o na ponta”. Por exemplo, um marquês propôs o seguinte mote: “A mais formosa que Deus”. O que fez o Boca do Inferno?

Com duas donzelas vim
ontem de uma romaria;
uma feia parecia,
outra era um serafim.
E vendo-as eu assim
sós, sem os amantes seus,
perguntei-lhes: anjos meus
quem vos pôs em tal estado?
Disse a feia, que o pecado,
a mais formosa, que Deus.

Em Portugal, o Boca do Inferno terminou “queimando a fita”. Para se livrar dele, a corte propõe que vá ao Rio de Janeiro resolver um caso cabeludo de desmando comandado pelo régulo local. Recusou a empreitada temerária, pois tinha aversão ao poder real e terminou sendo deportado de volta para a Bahia, com um cargo recentemente criado de desembargador da eclesia da arquidiocese. Seus dois irmãos tinham funções na corte e não recusaram ir em seu auxílio.


Breve retrato da Nova Espanha (México)

Em sociedades fechadas com valores hostis à liberdade, a força da censura vem dos leitores atentos a qualquer transgressão. No México do século XVII, então chamado de Nova Espanha, a censura era a Inquisição. Em um de seus manuscritos Juana Inés deixa claro: “Não quero problemas com a Inquisição” (p. 19). Sua obra era assim rodeada de silêncios: aquilo que não podia dizer. “A palavra de Juana Inés constrói-se frente a uma proibição, que se sustenta numa ortodoxia, encarnada em uma burocracia de prelados e juízes” (OP, p. 19). Paz compara a atmosfera da Inquisição com os conhecidos totalitarismos do século XX. Trata-se de uma ponte importante: de um lado a ortodoxia católica, de outro, a ortodoxia soviética. Ambas desconfiavam do talento, criavam censuras e cortes.

O México é um país cuja história começa como asteca, é conquistado e se transforma em Nova Espanha, e depois, em 1821, na Independência se redescobre México outra vez. Para Paz a história é uma obsessão entre a grandeza e o esquecimento. Os povos têm uma relação com a história como a mente humana com a censura psíquica: ambos usam o esquecimento para evitar os fatos desagradáveis de seu passado. Para os mexicanos, a Nova Espanha é um período negro do México que se “reconquista” na Independência, isto é, na restauração. Isto acontece porque a Idade Moderna foi a negação das crenças que inspiraram a Nova Espanha. Se no passado colonial a crítica era tolhida pela ortodoxia, na modernidade ela foi a sua fundadora. A crítica tem um significado que vai mais além do que simplesmente imaginamos: é a liberdade de pensar, a liberdade de agir e paradoxalmente, uma religião da mudança. Em outras palavras, a crítica da religião transforma-se em uma religião da crítica, o período inaugurado pelo marxismo. Da Contrarreforma ao marxismo temos um período que se coagula com uma ideologia feita para barrar as mudanças, para deter a história, impedir o novo, até a insurgência permanente em busca desse novo na forma de uma nova sociedade e não no aperfeiçoamento da antiga, levando ao seu desmoronamento e retorno ao passado de opressão e silêncio. Por isso a sensibilidade de Octavio Paz em tratar o século XVII com o legado do totalitarismo do século XX.

Para analisar o contexto da época de Inés de La Cruz, Paz reconstrói as vertentes intelectuais, os poetas e escritores, analisa e compara o barroco com o romantismo, o transplante da cultura espanhola e europeia para a nova terra.

Uma comparação entre as duas obras revela um espetáculo de semelhanças. Tanto Gregório como Juana Inés escreviam o tipo de poesia da época: redondilhas (estrofe de 4 versos, o primeiro rimando com o último e o segundo com o terceiro); endeixas (composição de 4 versos de 5 sílabas); décimas, oitavas, silvas (versos de dez sílabas alternados com seis sílabas), e sonetos. Embora tenha ficado famoso por sua poesia erótica e crítica, Gregório de Matos também tem uma obra sacra e lírica. Mas suas vidas não se cruzaram intelectualmente. A única ponte entre ambos foi o Padre Vieira, mas apenas em seus sermões.

Juana Inés viveu a vida conventual. Correspondia-se com “meia Espanha”, mas não sabemos se teve contato com algum poema apócrifo de Matos. Sabemos que teve correspondentes em Portugal, e também sabemos que Matos cultivou admiradores justamente na fase em que Juana Inés despontava como talento.

O desconhecimento de Gregório de Matos sempre intrigou a minúscula elite literária brasileira que o homenageou. Augusto de Campos em um artigo lamenta que Borges não o tenha conhecido. Mas Borges também não conhecia a obra de Paz, segundo confessou em entrevista a Selden Rodman (The Tongue of The Faling Angels, 1972) até os anos 70. Por que deveríamos supor que Gregório teria conhecimento de Juana Inés se Borges não leu Paz? Aliás, Borges desconhecia a literatura latino-americana e brasileira. Seu universo literário era bem mais restrito do que se imagina, segundo nos conta Estela Canto (Borges à Contraluz, Iluminuras, 1991). O inverso, entretanto, não é verdadeiro, pois Paz, admirador da obra de Borges, afastou-se depois que Borges publicou um poema, como palestrante convidado de uma Universidade do Texas, em que homenageava a separação do Texas do México, um episódio até hoje dolorido para os mexicanos.

Tanto quanto no século XX, os escritores se relacionavam indiretamente lendo os mesmos autores, que serviam de inspiração às suas obras. No século XVII, as pontes eram Cervantes, Gôngora, Quevedo, Calderon e diversos autores comuns, além dos antigos, extremamente estudados e citados em suas obras, pois o século tinha uma deferência especial com o passado greco-romano, a filosofia tomista e o neoplatonismo. Paz diz que da língua portuguesa, Juana Inés, além de Vieira, teria lido Camões, Francisco Manuel de Melo (1606-1666) e alguns outros. Não se sabe quem seriam esses “alguns outros”, mas ela tinha uma correspondente em Lisboa.


Biografia de Juana Inés

Esta tarde, mi bien, cuando te hablaba,
como en tu rostro y tus acciones vía
que con palabras no te persuadía,
que el corazón me vieses deseaba;

y Amor, que mis intentos ayudaba,
venció lo que imposible parecía:
pues entre el llanto, que el dolor vertía,
el corazón deshecho destilaba.

Baste ya de rigores, mi bien, baste;
no te atormenten más celos tiranos,
ni el vil recelo tu quietud contraste

con sombras necias, con indicios vanos,
pues ya en líquido humor viste y tocaste
mi corazón deshecho entre tus manos.

Juana Inés de La Cruz nasceu Juana Ramirez ou Juana Ramirez de Asbaje, provavelmente em 2 de dezembro de 1648 em um pequeno povoado no interior do México. Era filha natural de Pedro Asbaje, de quem nunca ouviu falar. Razões misteriosas levaram sua mãe a desposar o capitão Diego Ruiz Lozano quando ela era uma menina. Especula-se que o pai teria abandonado o lar, e esse traumatismo seria a principal razão para Juana Inés lançar-se no caminho das letras. Em 1656 é enviada para viver com parentes na Cidade do México depois da morte do avô. Sua mãe já constituíra nova família e Juana Inés começou a conviver com seus co-irmãos.

Vivendo os primeiros anos com a mãe e o avô, Juana Inês aprendeu a ler e escrever em casa, como era o costume da época, e foi fortemente influenciada pela paixão do avô pelos livros. Mas esse mundo era um mundo masculino, mundo de clérigos e letrados. A função dos livros era uma compensação pela dupla falta original: a do nascimento ilegítimo e a ausência do pai; substituição da presença dominante do intruso padrasto e, sobretudo, a sublimação que resolve seu conflito interior.

“O mundo dos livros é composto de eleitos no qual os obstáculos materiais e as contingências cotidianas se afinam até evaporarem quase que totalmente. A verdadeira realidade, dizem os livros, são as ideias e as palavras que lhes dão significado: a realidade é a linguagem. Juana Inés habita a casa da linguagem. Essa casa não está povoada por homens e mulheres, mas por umas criaturas mais reais, duradouras e mais consistentes que todas as realidades e todos os seres de carne e osso: as ideias. A casa das ideias é estável, segura, sólida. Nesse mundo cambiante e feroz, existe um lugar inexpugnável: a biblioteca. Nela, Juana Inés encontra não só um refúgio como um espaço que substitui a realidade da casa com seus conflitos e fantasmas. A decisão de vestir o hábito, anos mais tarde, fica mais compreensível se pensarmos nesse descobrimento infantil. O convento é o equivalente da biblioteca.... A cela-biblioteca é a concha materna e nela se fechar é voltar ao mundo de origem. O autoerotismo infantil é o sucedâneo da situação pré-natal paradisíaca na qual não existe distinção entre o sujeito e o objeto. A leitura toma o lugar do autoerotismo: a confusão entre o sujeito e objeto revive, transmutada na passividade da leitura. Nela, o sujeito pode por fim se estender e se balançar como um objeto; na leitura, o sujeito alternadamente se contempla e esquece de si próprio, se olha e é olhado pelo que lê. Tempo rítmico da cela e da biblioteca, tempo que revive o berço ninado pela maré do existir”. (OP, p. 125)

Em 1669 ingressa no Convento São Jerônimo, aos vinte e um anos de idade, depois de 12 anos sozinha na casa de parentes. Dessa fase pouco se sabe, apenas que cresceu, brilhou nas tertúlias pelo conhecimento adquirido, e se transformou em uma adulta bela e culta. Apresentada à corte dos novos vice-reis do México, logo caiu nas graças da marquesa de Mancera, vice-rainha com nome de batismo de Leonor Carreto. Em pouco tempo tornaram-se amigas e a influência de Juana Inés nunca mais deixou de crescer junto à marquesa. “Juana Inês era uma companhia agradável, serviçal e discreta; a essas considerações utilitárias e mundanas somavam-se o assombro diante de um prodígio de inteligência e saber; e ao assombro juntava-se a piedade que inspira uma jovem sozinha no mundo”. (p. 138)

No soy yo la que pensáis,
sino es que allá me habéis dado
otro ser en vuestras plumas
y otro aliento en vuestros labios.

Em um poema, aos 18 anos de idade, chamado ‘Empeños de una casa’, retrata-se com as seguintes palavras:

Inclinéme a los estúdios
Desde mis primeros años
Com tan ardientes desvelos,
Con tan ansiosos cuidados
Que reduje a tiempo breve
Fatigas de mucho espacio.
Conmuté el tiempo, industriosa,
A lo intenso del trabajo,
De modo que em breve tiempo
Era El admirable Blanco
De todas las atenciones,
De tal modo, que llegaron
A venerar como infuso
Lo que fue adquirido Lauro.
Era de mi pátria toda
El objeto venerado
De aquellas adoraciones
Que forma el común aplauso;
Y como lo que decía,
Fuese bueno o fuese malo,
Ni el rostro lo deslucía,
Ni lo desairaba el garbo,
Llegó la superstición
Popular a empeño tanto,
Que ya adoraban deidad
El ídolo que formaron.
Voló la Fama parlera,
Discurrió reinos extrãnos,
Y en la distancia segura
Acreditó informes falsos.
La pasión se puso anteojos,
De tan egañosos grados,
Que a mis moderadas prendas
Agrandaban los tamaños. (OP, p. 147)

O grande mistério de entrar para um convento alguém já reconhecida por suas qualidades intelectuais, nunca foi suficientemente compreendido. Falta de dote, rejeição à vida de casada, conflitos pessoais, etc., nunca foram suficientes para a compreensão de sua atitude. Principalmente quando se descobriu que Juana Inés inicialmente entrou para a Ordem das Carmelitas como noviça, de onde saiu três meses depois arrependida do rigor das regras. Retorna um ano depois para o convento de São Jerônimo para nunca mais sair. Havia conflitos externos que seguramente pesaram fortemente na renúncia.

“A maioria dos críticos católicos pensa que Juana Inés escolheu a vida religiosa por autêntica vocação, quer dizer, porque ouviu o chamado de Deus. É evidente que Juana Inés era uma católica sincera. Não está em jogo sua ortodoxia, mas esquecer que nessa época a vida religiosa era uma ocupação como as outras seria esquecer muito. Os conventos estavam cheios de mulheres que haviam vestido o hábito não por responder a um chamado divino, mas só por considerações e necessidades mundanas; seu caso não era distinto dos das jovens que hoje procuram uma carreira que ao mesmo tempo lhes dê sustento econômico e respeitabilidade social. A vida religiosa no século XVII era uma profissão... As mulheres vestiam os hábitos porque, seja por acertos familiares, falta de fortuna ou por qualquer outra razão não podiam casar-se; também as que estavam sozinhas no mundo e sem um apoio masculino”. (OP, p. 156-157)

Em viagem que fiz ao sul do Brasil de carro em 2009/2010, presenciei 3 conventos de freiras que fecharam por inadequação das ordens religiosas ao mundo tecnológico: o primeiro em Ascurra, na região de Pomerode (SC); o segundo em Nova Veneza, na região de Criciúma (SC); e o terceiro em Arroio Grande, distrito de Santa Maria (RS). Como colégios situados em locais pequenos, entraram em declínio e fecharam as portas porque as famílias migraram para centros maiores, e porque já não possuíam o mesmo tipo de atividade econômica dos séculos XIX-XX.


A cidade do México no século XVII

No final do século XVII, havia na cidade do México 29 conventos de frades e 22 de freiras. A população da cidade era de uns 20 mil espanhóis e criollos, e uns 8 mil índios, mestiços e mulatos. Era, portanto, um século religioso, pois um convento era uma entidade econômica: servia de colégio, hotel, local de estudo de música, teatro, artes e ofícios como a costura, o bordado, e restaurante com cozinha. Dispunha de criação de animais, horta, cultivo de frutíferas, biblioteca e capela. As ordens religiosas possuíam grandes propriedades de terras que arrendavam. Aceitavam investimentos e pagavam uma taxa de 5% de juro anual. Eram instituições ricas, embora os frades e freiras fossem proibidos da ostentação da corte.

As freiras levavam para o convento suas empregadas e escravas. Na média havia 3 criadas para cada freira. As celas individuais eram tão grandes que poderiam abrigar uma família inteira. Era um pequeno apartamento para os dias de hoje. No São Jerônimo, havia um segundo andar, como se fosse um loft. Uma cela podia ser vendida ou alugada. A adesão a um convento implicava no pagamento de um dote. A administração era escolhida por eleição a cada 3 anos. “A autoridade máxima era a prioresa ou abadessa, assistida por uma vigária, uma ou várias professoras de noviças, uma porteira mais velha, duas ou mais ‘corretoras’ (vigilantes), uma procuradora (economista), algumas ‘definidoras’ que resolviam casos duvidosos, uma contadora (tesoureira), uma arquivista e, em alguns conventos, uma bibliotecária. Os cargos eram rotativos, mas havia reeleição” (OP, p. 178). Sóror Juana foi arquivista e contadora durante 9 anos.

Havia rivalidades, intrigas, associações para finalidades específicas, querelas, antipatias e até rebeliões. Muitos problemas eram tratados com a intervenção de autoridades eclesiásticas externas. A violência tinha lugar, pois castigos e até punições severas eram praticados. As freiras não saíam, mas recebiam visitas desde a alta corte até as figuras distintas do clero e da sociedade. Em geral, depois dos rituais religiosos, as freiras recebiam os participantes nos locutórios, locais onde se travavam grandes tertúlias. Além disso, havia eventos não religiosos, como cantos, bailes, teatros.

A rotina de um convento começava com as rezas da ‘prima’ às seis da manhã. Na fase anterior à medição do tempo por relógios, as horas tinham esses nomes estranhos. Às sete horas havia a missa com os coros; às oito, o café da manhã: pão, ovos, leite, manteiga. Às nove, as rezas da ‘terça’ (terceira hora depois das seis da manhã). Então começavam a trabalhar, seja na sala comum dos trabalhos, como em suas próprias celas, dependendo dos critérios e licenças da direção. Ao meio-dia as rezas da ‘sexta’, depois o almoço. Às 3 da tarde correspondia à ‘nona’, mais rezas e um intervalo de descanso seguido de um lanche. Às sete vinham as ‘vésperas’ seguidas de um jantar, um intervalo de recreação, e terminam nas ‘completas’, novamente rezas antecedendo o dormir. Havia os jejuns da Igreja, e às sextas-feiras havia o ‘capítulo’, uma reunião para discutir assuntos disciplinares e as penitências impostas às faltantes. Havia castigos que variavam de rezas até a prisão perpétua no convento. Evidentemente que as penas eram em geral leves. Mas surpreendentemente as comunhões não eram obrigatórias, salvos nas grandes festas, o que significa que a confissão não deveria ser tão recorrente.

Com tal monotonia de vida, Paz observa que não era “extraordinário o fato de algumas freiras se abandonarem a piedosas e cruéis excentricidades, mas de não terem enlouquecido. Para certas naturezas pouco resistentes, o tédio e as longas horas de ócio fomentavam delírios mórbidos, visões fantasmagóricas, e não poucas vezes pesar e horror por suas irmãs e por elas próprias”.

“Para a maioria das freiras a vida conventual era terreno propício às fofocas, intrigas e conjurações – todas as variedades da paixão cabalista, como chamava Fourier a esse amor pelo poder que nos leva a formar camarilhas e bandos. Esta paixão, diz o grande utopista, ‘é um entusiasmo calculador’. A união de cálculo e ambição é o veneno secreto que, conjuntamente, anima e corrompe a vida das associações fechadas – a Corte, a Igreja, a Milícia, a Universidade, o Partido, a Academia. A paixão cabalista, aliança entre a ambição e inveja, sobretudo em sua forma vulgar, a politicagem, busca para se satisfazer, a cumplicidade dos demais. O preço é alto: para se servir dos outros, o ambicioso não tem mais remédio a não ser servi-los. Juana Inés queixou-se muito das intrigas e invejas de suas irmãs: é quase certo que sua renúncia às letras tenha sido o resultado de uma cabala clerical contra ela. Mas ela também dominou esta arte feita de talento, dissimulação, paciência e sangue frio. Sobreviveu a mais de vinte anos de vida conventual e intrigas eclesiásticas e palacianas, não só graças às suas qualidades morais e intelectuais, como por sua habilidade. Suas relações com o palácio vice-reinal revelam um tino político nada comum. Como as outras mulheres de sua família, Juana Inés tinha uma natureza elástica e flexível, teimosa e sinuosa, deferente mas obstinada” (OP, p. 185-186).


A obra de Juana Inés

Este amoroso tormento
que en mi corazón se ve,
sé que lo siento, y no sé
la causa porque lo siento. (...)

Siento mal del mismo bien
con receloso temor,
y me obliga el mismo amor
tal vez a mostrar desdén.

Ya sufrida, ya irritada,
con contrarias penas lucho:
que por él sufriré mucho,
y con él sufriré nada.

No sé en qué lógica cabe
el que tal cuestión se pruebe:
que por él lo grave es leve,

y con él lo leve es grave. (...)
Si acaso me contradigo
en este confuso error, (...)
aquél que tuviere amor
entenderá lo que digo.

A obra de Juana Inés de la Cruz é conhecida apenas parcialmente, e sabe-se que uma parte muito pequena foi resumida em teatro (Los empeños de uma casa, Amor es mas labirinto); a lírica (Poesia Amorosa, Primer Sueño). Sua correspondência era intensa com “metade” da Espanha. Ela era uma escritora compulsiva. O padre Calleja, com quem se correspondeu por mais de 20 anos, dizia que era impossível vencê-la nos versos e nas construções alegóricas. Sua obra conhecida é Neptuno Alegórico, Fama y obras Póstumas, e A Carta Atenagórica.

Neptuno Alegórico refere-se à preparação da chegada dos vice-reis ao México. Trata-se de uma obra que envolvia desde a saudação, a leitura de poemas e vilancicos (tipo de composição festiva), a concepção arquitetônica do arco do triunfo (um costume da renascença especialmente cultuado na imponência espanhola), e discursos de apresentação.

Na Carta Atenagórica, Sóror Juana escreve uma crítica ao padre Antonio Vieira, de quem lera os sermões. É uma homenagem à sabedoria de Ateneia. Ateneia de Athena, a deusa grega da sabedoria. Vieira nunca soube da crítica de Juana Inés, que apareceu nos últimos dias de novembro de 1690 quando Vieira já estava exilado em Salvador. O Sermão do Mandato era predicado na quinta-feira, na cerimônia do lavatório, cujo tema era “amai-vos uns aos outros”, um versículo de São João. Vieira escreveu 3 ou 4 sermões em ocasiões diferentes. O tema do amor era natural na poesia, mas na prosa revela-se uma crítica à interpretação do evangelho. O que ocorreu com Juana Inés foi ser o alvo da disputa pelo poder entre prelados, algo que somente podemos avaliar comparando com a ortodoxia marxista do século XX e o destino de diversos revolucionários caídos em desgraça sob a acusação de revisionismo, reformismo, dogmatismo, sectarismo ou qualquer outro desvio ideológico usado como instrumento de luta pelo poder.

A Carta Atenagórica foi a perdição de Juana Inés. A crítica não era perdoada naquela época; somente podia exercê-la quem estivesse protegido pelo poder. Os acontecimentos que vieram a se precipitar sobre Juana Inés foram turbinados pela inveja de seu talento, um veneno que permanece atuando até hoje nos círculos artísticos.

Detente, sombra de mi bien esquivo,
imagen del hechizo que más quiero,
bella ilusión por quien alegre muero,
dulce ficción por quien penosa vivo.

Si al imán de tus gracias, atractivo,
sirve mi pecho de obediente acero,
¿para qué me enamoras lisonjero
si has de burlarme luego fugitivo?

Mas blasonar no puedes, satisfecho,
de que triunfa de mí tu tiranía:
que aunque dejas burlado el lazo estrecho

que tu forma fantástica ceñía,
poco importa burlar brazos y pecho
si te labra prisión mi fantasía.

Exemplo de soneto em que se acusou Juana Inés de licenciosidade:

Esta tarde, mi bien, cuando te hablaba,
como en tu rostro y tus acciones vía
que con palabras no te persuadía,
que el corazón me vieses deseaba;

y Amor, que mis intentos ayudaba,
venció lo que imposible parecía:
pues entre el llanto, que el dolor vertía,
el corazón deshecho destilaba.

Baste ya de rigores, mi bien, baste;
no te atormenten más celos tiranos,
ni el vil recelo tu quietud contraste
con sombras necias, con indicios vanos,
pues ya en líquido humor viste y tocaste
mi corazón deshecho entre tus manos.


O Padre Vieira

Curiosamente o padre Antonio Vieira conheceu Gregório de Matos. Mas não sabemos se tiveram tertúlias em comum, pois eram personalidades diferentes. Vieira não era literato, nem mesmo poeta, e muito menos boêmio, como Gregório de Matos.

O Padre Vieira (1608-1697) nasceu em Lisboa e morreu em Salvador. Veio para o Brasil ainda criança, com o pai enviado de Portugal. Com a invasão holandesa de Salvador em 1624, refugiou-se no interior do recôncavo, passando a conviver com os índios. Logo aprendeu o Tupi e se interessou pelos povos indígenas. Teve uma vida cosmopolita, privilegiada pelo seu intelecto e capacidade de oratória. Mas suas ideias se chocavam com sua época, da mesma forma que Juana Inés e Gregório. Vieira defendeu a entrega de Pernambuco aos holandeses quando da segunda invasão (1630-1654) porque a manutenção do esforço de expulsão custava dez vezes mais do que os benefícios de colonizar a região. Era uma posição inaceitável para Portugal. Vieira também defendia os cristãos novos, no caso os judeus convertidos, contra a sanha da Inquisição que só conferia títulos e empregos de primeira linha para os que demonstrassem a pureza de sangue. Isso lhe colocou na mira da Inquisição. Vieira se defendia pelos altos contatos que tinha na corte portuguesa, estratégia usada também por Juana Inés. Mas seu brilho intelectual produzia ciúmes entre seus pares do clero. Além disso, contornava o poder eclesiástico solicitando favores diretamente ao rei.

Vieira ordenou-se sacerdote em Olinda em 1634, em plena ocupação holandesa. Com a restauração da independência de Portugal do domínio da Espanha em 1640, vai para Lisboa e ingressa na carreira diplomática. Conquistou a confiança de D. João IV, rei de Portugal, por sua personalidade vivaz e brilhante retórica. Isto lhe permitiu contornar suas dificuldades com as patrulhas ideológicas de seu tempo, especialmente quando defendia os índios contra os colonos escravagistas, a quem acusava de maus tratos e comportamento arrogante e truculento, especialmente quando esteve pregando no Maranhão, entre 1652 e 1661. Era hostilizado pelos dominicanos (Vieira era da ordem dos jesuítas), que eram os membros do Santo Ofício. Ao defender abertamente os índios contra a exploração, foi expulso pelo vice-rei do Grão-Pará, retornando a Lisboa. O Brasil já demonstrava, desde o descobrimento, sua dualidade social e sua total incapacidade de coesão e inclusão social que permanece até hoje. O índio era diferente e não se integrava ao império, pois era visto apenas como escravo no sentido econômico e objeto sexual, na moralidade relapsa do amancebamento generalizado até mesmo de missionários que, isolados, abandonavam os votos de castidade em troca de um sem número de concubinas índias, deixando-se conduzir por uma vida de preguiça e luxúria, tal qual os índios. Era nessa atmosfera de lassidão moral que missionários do tipo Manoel da Nóbrega, Anchieta e, um século mais tarde, Vieira tinham de trabalhar.

Vieira caiu em desgraça com a ascensão de D. Afonso VI ao trono de Portugal. Defendendo a teoria do quinto império (depois do Mesopotâmico, Persa, Grego e Romano), Vieira dizia que estava reservado a Portugal o grande destino de dominar o mundo. Vieira foi novamente hostilizado e refugiou-se em Roma onde permaneceu por seis anos. Sua oratória mais uma vez o tornou capaz de cativar altas personalidades, como a rainha Cristina da Suécia, exilada em Roma, e até o papa. Vendo sua influência ascender, denunciou os múltiplos abusos da Inquisição portuguesa ao papa, fazendo com que este proibisse a ação do Santo Ofício entre 1675 e 1681. Regressou a Lisboa e, incompatibilizado com a corte, decidiu regressar ao Brasil em 1681, onde passou a dedicar-se a reunir seus sermões e mais de 500 cartas, que coligiu escrevendo aos destinatários. Como Gregório de Matos, que voltou para o Brasil um ano depois, em 1682, em fase altamente poética e mundana, não sabemos quantas vezes se encontraram em eventos oficiais, pois não tinham afinidades, mas estiveram juntos na mesma cidade até a expulsão de Gregório de Matos de Salvador.


A fase final de Gregório de Matos

Na Bahia, veio acompanhado de seu fiel seguidor, Tomas Pinto Brandão, companheiro de trovas e libertinagem. Salvador era um fervilhar de mazombos (filhos de portugueses), mulatos, mamelucos e brancos. Gregório achava os mulatos uns mal-educados, mas tinha predileção especial em sua verve poética pelas mulatinhas. Sua alegoria da miscigenação racial pode ser vista neste poema:

Quais são seus doces objetos? .... Pretos.
Tem outros bens mais maciços? ... Mestiços.
Quais desses lhe são mais gratos? .... Mulatos.
Dou ao Demo os insensatos,
dou ao Demo o povo asnal,
que estima por cabedal,
pretos, mestiços, mulatos.

Compare com os versos semelhantes (pelo período histórico, mas completamente diferentes pelo objeto lírico) de Juana Inés:

Y com sus ecos suaves,
                    las Aves;
y com sus dulces corrientes,
                     las Fuentes;
y com cláusulas de olores,
                     las Flores;
y com sus verdes gargantas,
                     las Plantas...

Juana Inés fazia poesia do divino, do sensível, enquanto Gregório era um crítico social e mundano. A poesia obscena de Gregório tem uma extraordinária importância, pois permite uma análise dos costumes, do erotismo, dos desejos e, numa sociedade piedosa, das aberrações sexuais da época. Seu anticlericalismo fornece os elementos para o entendimento da hipocrisia social comprovada na transgressão dos votos de castidade dos clérigos, da obsessão sexual pela mulata. Sua poesia é obscena e complexa, com construções que nem sempre se entendem nos dias atuais. Sua obra satírica abrange um volume inteiro. Escreveu dezenas de poemas para celebrar cornos e putas, seduções e conquistas, pornografia e masoquismo, como, por exemplo, o soneto à mulata Vicência que amava três sujeitos ao mesmo tempo:

Com vossos três amantes me confundo,
mas vendo-os com todos cuidadosa,
entendo que de amor e amorosa
podeis vender amor a todo mundo.
Se do amor vosso peito é tão fecundo,
E tendes esta entranha tão piedosa,
Vendei-me de afeição uma ventosa,
que é pouco mais que um selamin sem fundo.
Se tal compro, e nas cartas há verdade,
Eu terei, quando menos, trinta damas,
que infunde vosso amor pluralidade.
E dirá, quem me vir com tantas chamas,
que Vicência me fez a caridade,
porque o leite mamei das suas mamas.

Selamin é palavra inexistente em nosso léxico atual, mas em Portugal foi uma medida de 1,725 litros, utilizada para cereais e secos. Mas o selamin sem fundo era uma quarta (isto é uma bandeja que se mediam 3,4 litros de um cereal, que com o fundo virava metade do volume, um selamin, sendo por isso uma expressão para trapaça, para alguma coisa que vale só a metade. Gregório é mais complexo do que se imagina. Entender sua poesia requer dedicação através da pesquisa nem sempre contemplada. E deixo ao leitor a interpretação de “vendei-me de afeição uma ventosa”.

Sua decadência ocorre com a chegada de uma triste figura em Salvador: o jovem filho do governador da Bahia, chamado Câmara Coutinho, de quem Gregório não gostava escarnecendo-o frequentemente em versos. O governador é substituído em 25/3/1694 por João Lencastre, considerado amigo de Gregório. Mas o filho do ex-governador logo se investe em disputas poéticas com o Boca do Inferno. E deve ter levado uma surra lírica. Além disso, houve ciúmes de mulheres que devem ter provocado ainda mais a ferocidade fescenina de ambos. Neste ponto, Pedro Calmon esboça sua tese muito discutível: a disputa evoluiu para uma conspiração contra a vida de Gregório. O governador soube da contenda e o mandou esconder-se. Gregório não só desdenhava seu rival, como ignorava a trama que se urdia contra ele. João Lencastre não deixou por menos: para salvar a vida do amigo, mandou prendê-lo e desterrá-lo em Angola.

A hipótese não convence, e procura por um caminho contemporizador: achar uma solução que preserve a vida de um condenado com sua expulsão da Bahia. Tudo indica que seu desterro foi uma medida política para se livrar de um inconveniente. Recém-empossado, João Lencastre poderia colocar em risco seu cargo se a sociedade protegesse o Boca do Inferno. Ou até mesmo desprestigiá-lo por ter de julgar um homem de letras com base na coleta de poemas apócrifos e facilmente rechaçáveis pelo acusado, provocando embaraços e reprovações da elite de quem ele dependia para seu projeto de poder. Se o seu caso fosse entregue à Inquisição, o Padre Vieira – um ex-indiciado – poderia interceder em favor do amigo e complicar ainda mais o resultado.

Como Juana Inés, que contornou a Inquisição pela abjuração, Gregório de Matos foi expulso da Bahia e mandado em degredo para a África depois de ficar detido à espera de um navio. Escreveu um poema que serviria para Juana Inés e reflete o estilo da época barroca:

Que falta nesta cidade? ..... Verdade
Que mais por sua desonra? ..... Honra.
Falta mais que se lhe ponha? .... Vergonha.
O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,
numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha

Passou pouco tempo na África, por se envolver na intermediação de uma rebelião local de soldados logrados com a promessa de soldo pelo governador de Luanda. Conseguiu o perdão do degredo e retornou ao Brasil, porém foi obrigado a se estabelecer em Recife, longe da Bahia. Ali, acometido por uma doença, faleceu poucos meses depois em novembro de 1695.

O legado de Gregório de Matos continua a ser explorado. Algumas correntes literárias classificam-no como a primeira brasileirização de nossas letras. O Boca do Inferno seria o nosso ponto de partida do idioma nacional. Exatamente pela sua personalidade avessa ao poder, desconfiada das instituições coloniais, repulsiva à hipocrisia e privilégios da Corte, ele usou em seus poemas os termos africanos e indígenas que circulavam nas vias públicas da Bahia.

“Quem intrometeu o linguajar caboclo na fala poética, quem arrebanhou na senzala as mulatas, quem introduziu na cantiga o cotidiano, quem fez de sua arte o protesto, não do europeu que se revolta, mas do brasileiro que se reconhece, quem pediu e vociferou, senão ele, por sua terra e sua gente?

“Escutaram-no os eruditos, que lhe guardam os apógrafos – como antes da imprensa se conservavam os cartapácios nas estantes monacais, e os estudantes acabaram reproduzindo-lhe a chocarrice, esquecendo o autor. Reviveu pela memória coletiva – revelada pelas variantes joviais de sua produção caudalosa” (Pedro Calmon, p. 209-210).

Excetuando a Europa, e especialmente a Espanha barroca, nas Américas Gregório só teve concorrente em Juana Inês no México. Foram os dois grandes gênios poéticos do segundo século após o descobrimento.