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10 de julho de 2015

A mente petista

Carlos U Pozzobon

“Se a única esperança do niilismo reside no pensamento de que milhões de escravos possam um dia constituir uma humanidade que seria livre para sempre, então a história não é mais do que um sonho desesperado. O pensamento histórico foi libertar o homem de uma submissão para um paraíso; mas esta libertação demandava dele a mais absoluta sujeição à evolução histórica. O homem se refugia na permanência do partido da mesma forma que ele antigamente se prostrava perante o altar. Por isso que a Era que ousa clamar ser a mais rebelde que jamais existiu apenas oferece uma opção entre os vários tipos de conformismo. A paixão real do século vinte é a servidão”. (Albert Camus, L'Homme Revolté, p. 234).


Existem três fatores interligados que compõem o universo da mente petista. Discorrer sobre eles se torna um imperativo para o entendimento do Brasil em sua crise mais profunda desde a tomada do poder em 2002 pelo PT.

  • Negativismo
  • Niilismo
  • Negação da riqueza

Como se pode explicar o somatório de fatores negativos que nos cercam? A vida social do homem se forma com o aprendizado para lidar com os fatos negativos que lhe ocorrem necessariamente como uma condição de estar no mundo . Os perigos do meio, a violência social ou da natureza, os maus tratos, a falta de solidariedade e de oportunidade, a rejeição social, as humilhações, as dificuldades impostas por serviços públicos degradados, a insensibilidade, e tantas pequenas coisas que nos levam cotidianamente a detestar os outros, vão se acumulando no espírito e servem de substrato para moldar uma psicologia específica.

Se em nossa biografia, o entendimento da sociedade implica em uma série infindável de fatos negativos que vão decantando um acumulado de decepções proporcionais às dificuldades do meio em que estamos inseridos, o repertório mais popular e abrangente de crítica social capaz de abraçar os fatos negativos se chama marxismo.


Marxismo como contraponto ao Negativismo

O marxismo oferece uma explicação para os males sociais e uma solução profética para a sua superação. Para que o negativismo não seja conduzido para um fim escatológico em que presente e futuro se confundam, torna-se imperativo que ele seja contrabalançado por uma visão otimista do futuro. Este é o segundo elemento importante oferecido pelo marxismo: um antídoto para o suicídio individual cultivado na certeza de uma esperança profética, de uma libertação vindoura.

No profetismo marxista, sabemos que os males do capitalismo serão superados pelo advento de uma nova sociedade que libertará os homens oprimidos pelo egoísmo e crueldade de seus semelhantes. Para que o negativismo não se transforme em um pessimismo autodestruidor, ele precisa ser equilibrado com um futuro promissor, e só o marxismo consegue oferecer esta esperança por ser construído como uma plataforma de ideias edificantes. Isto lhe confere um enorme poder de expansão e penetração.


Niilismo

No entendimento da sociedade capitalista, chama-se niilismo a combinação de negativismo associado ao futurismo doutrinário moralizador reivindicado para uma nova sociedade, com outros ingredientes, entre os quais o sectarismo e o dogmatismo. O longo percurso da prática política vai absorvendo muito mais elementos para que setores sociais possam repeti-los sempre com o mesmo padrão.

O niilismo não é um sentimento novo. Afonso Arinos de Melo Franco em "Um Estadista na República", fala sobre o meio intelectual de seu pai, Afrânio, ainda no final do Império:

“Quando ingressou na Faculdade de São Paulo, distantes estavam os tempos da boemia literária, quando Álvares de Azevedo simbolizava aquela espécie de niilismo juvenil, atitude de frenético desespero em que homens de vinte anos se compraziam nos ambientes byronianos, envenenando o corpo com álcool e a alma com furiosas abstrações sobre o amor e a morte.

A geração estudantina da abolição e da República estava mais interessada pelo desabamento de velhos edifícios jurídicos e sociais e pela construção dos novos, que os deviam substituir. Naturalmente que tinham também os seus boêmios literários, como Bilac ou Raimundo Correia. Mas mesmo neles a boemia tomava um aspecto diferente, ligava-se ardorosamente às lutas do tempo, à vida real que em volta fervilhava.

Quando esta vida real apresenta interesse afetivo e dramático, como no tempo deles e no nosso, os melhores espíritos são atraídos para ela. O pélago dos dramas subjetivos, das especulações abstratas, dos sofrimentos morais gerados pelos movimentos espontâneos da alma, e não pela ação do mundo exterior, são consequências dos períodos de estabilidade social e política, de cristalização conservadora.

No advento da República os estudantes eram espíritos mais políticos e jurídicos que literários. A tradição político-jurídica do Império, e principalmente a admirável influência pessoal do imperador, no sentido de basear tanto quanto possível o Estado brasileiro num governo de opinião, facilitavam o desenvolvimento da vocação daqueles rapazes sem grandes obstáculos nem reações.

A vida de Afrânio é um exemplo disto. Foi naturalmente, sem nunca lutar com o meio, que ele pôde expandir seus dotes de jurista político. Coisa que a larga fase da ditadura republicana vedou aos moços da geração de 1930.

A geração de estudantes de hoje (1944) foi também chamada ao realismo porque o Brasil atravessa novamente uma fase aguda de possibilidades e experiências. Mas, ao contrário da de Afrânio, suas inclinações naturais pela vida pública são entravadas pela mais formidável reação que conheceu o país. Isto poderá dar aos seus componentes um caráter violento e revolucionário, que não conheceram os bacharéis da República, cujo espírito construtivo não se afastou nunca da prudência e da moderação.

A tendência dos moços para a violência de ideias e atitudes depende da reação que seja oposta à evolução natural do seu pensamento. Neste ponto o exemplo do tzarismo russo é demonstrativo. A fúria da sua reação formou, mais que qualquer outra causa, a mocidade revolucionária da geração bolchevista.

Inutilmente se procuraria fenômeno semelhante na Inglaterra ou nos Estados Unidos contemporâneos. Eis por que nos parece pesada a responsabilidade que assume no Brasil o poder que, neste ano de 1944, procura conter a evolução natural do pensamento político dos moços. Talvez os transforme numa geração de violentos revolucionários”. (p. 174)

O revolucionarismo de que fala o autor surge com a própria dinâmica das mudanças impostas pela revolução industrial do primeiro capitalismo e seus desdobramentos sobre as comunidades humanas. As transformações criadas pelas estradas de ferro, telégrafo e bens de consumo industriais produziram uma mudança qualitativa do ser humano que continua até hoje.

O futuro se torna ocupado pelo evolucionismo fundado em descobertas que não podemos prever, mas que sabemos que mudarão a sociedade e, com isso, abrem as consciências para a aceitação de novas ideias, muitas das quais extremamente pessimistas sobre o presente e altamente positivas sobre o futuro, consolidando assim a consciência niilista.

O pessimismo tem suas razões de existir quando o próprio mundo nos fornece dados comparativos sobre as assimetrias de desenvolvimento entre as nações e a incapacidade das sociedades atrasadas de se colocarem em marcha rumo ao crescimento pelo deteriorado modelo político que abrigam e o extraordinário quadro de rapacidade social dos modelos estatais no consumo da poupança nacional.


Perseguição à riqueza

Um terceiro fator, no entanto, tem sua origem no mundo ibérico e sua particularidade guarda uma importância capital na constituição do niilismo latino-americano: trata-se da visão da riqueza como pertencente, de direito e moral, a entes coletivos que a distribuem para toda a sociedade. A riqueza pertencente aos entes coletivos seria o valor moral primitivo mais renitente em nossa formação social, no passado conhecidos como o Império, a Igreja, empresas públicas e uns poucos cidadãos delegados por ordem expressa do imperador.

Na moral medieval, a Igreja seria o instrumento social destinado a coroar o ascetismo e a virtude como valores fundamentais ao espírito humano, e a riqueza uma necessidade de todas as ordens religiosas para custear os encargos administrativos de sua imensa máquina de condução das almas nas comunidades humanas.

Por esta moral, a riqueza em mãos privadas corria o risco de subverter esses valores e conduzir os homens à dissipação, à luxúria, à ostentação petulante, ao comportamento arrogante e à soberba. Contendo-se a riqueza individual, acreditava-se controlar os vícios humanos.

Os evangelhos já pregavam a hostilidade aos ricos, e quando estes foram identificados com os judeus, o estigma permaneceu ao longo dos séculos. Para evitar a perda dos valores religiosos produzidos pela riqueza, criou-se a Inquisição na forma de tribunal pelo qual somente o socialismo real viria a utilizar os mesmos métodos de obtenção da "verdade".

No livro Inquisição e Cristãos Novos, Antonio José Saraiva nos dá uma ideia do anticapitalismo tricentenário que moldou a consciência brasileira:

“De todas as ocupações da vida, quase nenhuma é tão condenável – se a observarmos segundo as regras da religião – como a mais comum, quero dizer a das pessoas que trabalham para ganhar dinheiro quer pelo negócio quer por outros meios honestos. Os meios mais legítimos, humanamente falando, de enriquecer, são contrários não só ao espírito do Evangelho, mas também às interdições literais de Jesus Cristo e de seus apóstolos” (p. 207).

A importância do papel da riqueza na formação da mente petista tem sido negligenciada: no passado colonial, os excedentes da exploração açucareira eram postos em circulação através de empréstimos, mas a aplicação de juros para remunerar o capital era vista como o pecado da usura, e o combate e perseguição aos financistas judeus ou cristãos-novos era uma forma de saldar dívidas para os devedores e de apropriação de bens por parte da Igreja. A fúria contra o capital financeiro existe até hoje e encontra raízes profundas na mente petista provinda desse passado reacionário.

Antonio Paim, historiador que tentou decifrar a nossa história através dos valores que se opuseram ao capitalismo, mostra como a perseguição à riqueza privada foi capaz de colocar em declínio nossa superioridade mundial na produção de açúcar no século XVIII. Em seu livro, Momentos Decisivos da História do Brasil, ele traz à luz os valores de nosso passado obscuro:

“A ação da Contra-Reforma se completa pela chamada pregação dos moralistas do século XVIII, que se incumbem de difundir no seio da elite a mais rigorosa condenação da riqueza. E assim se completa a nossa opção pela pobreza, que irá consistir numa das mais sólidas tradições da cultura brasileira” (p. 69).

Por esse passado nada altruístico podemos ver como a Teologia da Libertação tem suas raízes na negação da riqueza produzida pelo empreendimento individual, e na defesa intransigente de todas as iniciativas que sejam mantenedoras da pobreza. A pobreza da população era conservada como relicário do exemplo da vida cristã autêntica e do desapego material, e sua similaridade com o socialismo real não poderia ser escondida, razão pela qual este segmento atrasado da Igreja tem ligações emocionais e identidades práticas com o socialismo.

Qualquer empreendimento suspeito de prosperidade logo arregimenta os doutrinadores da fé com os apóstolos do ateísmo em frente única. Nas eleições de 2010, o candidato do PSOL, Plínio de Arruda Sampaio, disse abertamente na TV que era contra a transposição do rio São Francisco porque a chegada de água no nordeste iria alterar as condições de vida da população miserável, tornando suas terras invejadas pelo agronegócio que logo iria comprá-las e tornar os miseráveis atuais em trabalhadores agrícolas. A igreja da teologia da libertação formou fileiras em sua causa com bispos liderando a mobilização contra a ameaça de abundância no nordeste.

Este terceiro fator – a noção de riqueza – se casou com os outros dois de forma a cristalizar os valores de nossa nacionalidade e sua enorme resistência à modernidade. Em todo o processo social, os valores nascem da herança cultural, e depois se internalizam nas preferências dos indivíduos, para mais tarde se materializarem nas suas escolhas.

A vitória eleitoral e a popularidade do PT na conquista do poder tinham os fatores combinados: crítica social impiedosa do passado, responsabilizando todos os males às pessoas identificadas como elites e não às instituições; grande esperança no futuro, atribuída aos poderes messiânicos do novo presidente e sua equipe, combinando crítica negativista com utopia voluntarista, e uma promessa de superar todos os males pela correção dos vícios do estado comandado por uma fração preparada com iniciativas qualificadas de “vontade política”, criando uma narrativa que iria construir a mais espetacular crise social de todos os tempos: a inversão dos valores éticos e morais como jamais se viu em momento algum no Brasil.

Como provar que a riqueza entendida como um ente coletivo que deve ser distribuída para a sociedade faz parte de nossos valores primitivos que vão formular as preferências e depois as escolhas individuais?

Basta se observar os fatores ligados ao imaginário do brasileiro no tocante a riqueza: quase todo o brasileiro acha que o país é extremamente rico, mas, ao mesmo tempo, extremamente explorado por grupos gananciosos que fazem a riqueza desaparecer para o exterior misteriosamente por contrabando ou por esperteza, sendo a causa de nossa miséria.

Neste imaginário botocudo, a riqueza é um bem estático, que se acomoda em arcas cheias de ouro e que poderia servir a todos e não aos malditos capitalistas que a exploram. A visão da riqueza como uma montanha dourada transparece nos discursos das pessoas magnetizadas pelos metais raros como o nióbio e o petróleo. Não se entende a riqueza como um bem em circulação, mas algo de que se deseja apoderar por um ato de pirataria política, isto é, obtenção de um privilégio de exploração por meio de monopólio. O monopólio é visto como representante da nacionalidade e da moral pública do bem comum, não como um obstáculo à geração de riqueza.

Nem mesmo a água é vista como um bem em circulação. Depois que se criou a Agência Nacional de Águas no ano 2000 por iniciativa do Congresso, os integrantes desta agência começaram a espalhar a ideia de que a água iria acabar no mundo todo e, especialmente no Brasil, onde a extração do subsolo deveria ser acompanhada do pagamento de um imposto para que o estado estivesse suficientemente preparado para intervir quando de sua escassez. Que alguém possa acreditar neste bizantinismo pode parecer estupefaciente, no entanto está no discurso de seus membros. E a crise hídrica em SP permitiu avaliar que na opinião de muita gente estava estampada a noção de que a água pode se esgotar para sempre na natureza.

Agindo apenas pelos instintos do nosso arcaísmo histórico, as pessoas acham melhor guardar uma riqueza para o futuro do que explorá-la no presente por encargo de empresas privadas, mesmo sabendo que quase a metade voltaria para o estado na forma de impostos: o horror ao lucro e o ódio ao empreendimento privado são mais fortes do que a obtenção de recursos através dos impostos e empregos gerados pela produção.

Quando se argumenta que a nossa riqueza petrolífera poderia gerar uma exportação diária de uns 5 milhões de barris, e um “government take” de uns 150 bilhões de dólares anuais, as pessoas começam a suar frio e o pânico se instala em suas mentes com a imagem de um país transformado em cemitério pela exaustão de seus tesouros naturais.

As novas ideias de perseguição da riqueza estão presentes na moral ecológica, onde se coloca o interesse de conservação da natureza em sua forma primitiva como mais importante e autêntica do que a utilização desta mesma natureza para o enriquecimento de particulares. O meio ambiente, o ambientalismo petista, é a fonte mais importante da geração de ideias perseguidoras da riqueza como uma manifestação reacionária do passado colonial.

Trata-se do princípio de que um particular não gera outro particular e que o coletivo não é formado pelo agregado de particulares, mas por outra instância que está acima e além dos seres individuais: o estado onipotente. Por esta mentalidade, somente o estado pode ser essa agregação orgânica de indivíduos, e este sentimento arcaico ensinado nas escolas foi o responsável pela propagação e triunfo do niilismo petista.


Estado dentro do Estado: um exemplo

Qual a prova que correlaciona a riqueza com os valores sociais anticapitalistas?

Considere o sistema tributário brasileiro. Seu funcionamento talvez explique por que somos um povo atrasado e sem vias de se modernizar. O sistema tributário brasileiro constitui uma ditadura dentro do país, exercido por uma elite profissional que se encarrega da arrecadação de recursos para as várias instâncias das administrações em caráter absolutista.

As decisões tributárias são feitas pelas comunidades de secretários estaduais, pelas secretarias municipais da fazenda e pelo complexo de entidades em volta da Receita Federal. Os tributos não são mediados pelo sistema legislativo e tampouco contidos pelo sistema judicial.

Portarias, normas, instruções e decretos são emitidos por estes órgãos apenas sob consenso da autoridade política executiva, e sua obediência tem caráter de lei. Os impostos, taxas e contribuições não são elimináveis a menos que se possa declará-los inconstitucionais, e, uma vez em vigor, o judiciário não tem autoridade para questioná-los.

Quem define os crimes tributários são os próprios órgãos tributários, a quem se deve apelar e pelo qual se é julgado. Um imposto que foi declarado inconstitucional, como a taxa de lixo em São Paulo, nunca foi devolvido aos contribuintes. E quem estava em débito permanece na dívida ativa do município.

Trata-se do mesmo procedimento da Inquisição e dos processos de Moscou: no sistema soviético os procuradores acusavam, julgavam e executavam a sentença. Não havia a mediação de organismos separados.

A questão tributária não se limita ao recolhimento de tributos. Ela vai muito além da mera arrecadação. Seu papel principal consiste na certificação, na autorização e licenciamento, todos enfeixados em uma lógica de pureza que se comprova com um troca-troca de certidões em que um órgão demanda uma informação de outro órgão pelo qual o requerente deve ser o intermediário da transação e para cuja finalidade não existe nenhuma obrigatoriedade cronológica do órgão fornecedor, que dispõe de liberdade para requisitar quaisquer recursos que achar pertinente à consecução do interesse privado. E, naturalmente, estes recursos terminam na realidade do mundo subdesenvolvido: a indústria da propina.

A tão conhecida burocracia brasileira mereceria prêmios para universitários sequiosos por diplomas de doutorado. Explicar as motivações por trás de procedimentos que não existem em países adiantados poderia fornecer um entendimento muito mais acurado de nossa natureza social do que as centenas de teses acadêmicas pífias que são produzidas anualmente em nossas universidades. Ao longo dos últimos cinquenta anos, até ministérios foram criados para desburocratizar o país, mas seu resultado tem sido muito pequeno e circunscrito à obtenção de documentos pessoais.

Esta incrustação do mundo colonial na organização da sociedade brasileira tem implicações tremendas na formação do país. Funciona como um tribunal de exceção para industriais, pequenos empreendedores, comerciantes e proprietários rurais.

Pelo sistema tributário podemos entender como um modelo político se molda em uma sociedade onde toda a carreira política implica em patrimonialismo e no costume de colocar os interesses do estado acima dos cidadãos no discurso, e o estado a serviço dos seus apropriadores na prática. Que importância tem a gastança irresponsável dentro das casas legislativas se existe uma estrutura estatal que tem poderes especiais para resolver estes excessos?

O poder discricionário de um órgão arrecadador de estado implica em assumir a responsabilidade pela manutenção do próprio estado, e os organismos fazendários são incumbidos de resolver déficits, obter empréstimos e negociar dívidas, desde que não tenham o poder de dissolução do que possam entender como além e excedente do próprio estado, que neste caso está a cargo do sistema político.

O poder tributário como entidade autônoma dentro do estado brasileiro forma um dos itens da cesta dos fatores que fazem nosso PIB representar apenas 1/5 quando comparado a um país que passou pelo desenvolvimento capitalista independente. A musculatura deste poder está contida dentro de uma burocracia que funciona como uma estrutura asfixiante de toda atividade produtiva legal.

Os órgãos tributários agem como tribunais amparados por uma complexa legislação que obriga as empresas a um contingente enorme de funcionários e advogados para manter a ordem na contabilidade, e, mesmo assim, são frequentemente chantageadas por quadrilhas de fiscais com a capacidade de dissolução do aparelho comercial ou industrial criado a duras penas pelos empreendedores privados.

Como estes 'raids' burocráticos sedimentados ao longo das décadas não passam para os livros de história, o saldo de destruição que se pode apurar consiste na verdade inescondível dos números da renda per capita. Nenhum país do mundo tem tantas micro, pequenas e médias empresas frustradas em poucos meses de vida: o empreendedor que inicia um negócio logo aprende que não está trabalhando para a sua atividade fim. Sua energia fica canalizada para ser um mandalete de órgãos burocráticos cujas exigências parecem ter sido inventadas para ser resolvidas nas propinas.

Existe uma relação entre a Inquisição e a Fiscalização que deveria ser explorada por nossos historiadores de ideias, ao estilo dos seguidores de Antonio Paim. Estas duas instâncias históricas da brasilidade estão sedimentadas na consciência niilista.

Como se pode desconfiar, trata-se de um sistema que não mantém relações com o capitalismo, já que não lhe serve de apoio, mas vive de sua própria rapacidade, e cuja estrutura se concilia com a dos regimes do socialismo real.

E, falando em socialismo real, considere este texto do século XVIII, escrito por D. Luis de Souza em carta ao rei de Portugal, em uma época ainda insuspeita de socialismo:

“... que os corregedores e juízes do crime fossem obrigados a dar ao presidente do paço e ao regedor das justiças todos os meses uma exata lista das pessoas que moram nos seus bairros, e de que vivem, e como vivem, das companhias que frequentam, e dos que de novo nele vêm habitar para não consentir neles nem ociosos, nem vagabundos, porque são os que matam e roubam por não serem conhecidos.

E como as mulheres públicas são pela maior parte a causa destes desatinos, não as sofrerão nas suas jurisdições, de maneira que o regedor das justiças lhes fará culpa das desordens, que nelas acontecerem. Da mesma sorte tomarão conhecimento dos pobres, para lhes não permitir que peçam esmola senão os que absolutamente, e de nenhuma sorte não puderem trabalhar. Isto se pratica em Holanda, onde não se vê um só pobre, nem às portas das igrejas, nem nas ruas, que embaraçam os que vão à missa, e os que por eles passam. A caridade é muito louvável, e o Evangelho a recomenda, mas não para que contribua para a ociosidade, de que resulta toda a espécie de vício”.

Controlar as pessoas em seus bairros passou do mundo medieval para o socialismo real incólume, e não espanta que esta moral seja defendida por marxistas e padres da teologia da libertação. E o que dizer da noção de bolsa família quando correlacionada com a caridade?


A crença no estado salvador

A mente petista, sendo herdeira dessas tradições reacionárias, ainda precisa ser nutrida de novos elementos para se cristalizar em seu niilismo devastador da razão. O outro elemento consiste na forma de entendimento do estado como uma crença de que é a única estrutura social pela qual todos os problemas humanos podem ser resolvidos. Basta apenas que ele se molde de maneira a realizá-las. Se o estado deixar de ser apropriado pela classe dominante e se transformar em prestador de serviços para os despossuídos, a sociedade vai se curar de todos os seus males. E toda a atividade política se reduz à luta da pureza dos representantes estatais contra a impureza dos agentes sociais privados.

Esta foi a base moral do medievalismo, e, no entanto, está vivíssima na esquerda brasileira. Basta lermos os jornais diariamente para acompanhar o desfile de transgressões efetuadas contra as normas estabelecidas pelo estado condutor. Existem épocas em que o gosto popular se especializa em difamar a classe política, mas o produto que elabora, as normas e leis, são vistas como algo sagrado a que se deve obediência e respeito, nunca faltando uma dose de hostilidade moral a todos os seus transgressores.

O estado tem sido o aporte por onde se realiza o patrimonialismo e a carreira mais segura para ascensão social em um país assoberbado por crises periódicas. Na medida em que o petismo se transforma em ideologia do estado, ele tem o papel de difundir para a sociedade uma narrativa moral idealizada na questão dos direitos humanos, nas relações trabalhistas e nas obrigações sociais que são conduzidas de forma Inquisitória pela responsabilização solidária de todas as empresas privadas no ciclo de produção.

Tais valores contaminaram a ciência jurídica, onde diariamente se veem exemplos destas aberrações: um fabricante doméstico de camisas que tenha irregularidades em suas relações trabalhistas e tributárias, arrasta para o representante e distribuidor da marca o peso de sua culpabilidade.

A combinação de niilismo e estatismo tem mais efeitos arrasadores. A consciência petista funciona como construtora de narrativas apropriadas ao uso das circunstâncias, e recusa toda e qualquer experiência prática ou ponderação fora de sua lógica artificial. E quanto maior se torna a ruptura entre as evidências da realidade e os argumentos de sua narrativa, mais entorpecedores se tornam os argumentos.

O desprezo para com o mérito é o caso mais eloquente. Já se disse no século XIX que os povos que desdenham do mérito são aqueles que nunca se sentiram ameaçados.

O altruísmo embevecido pela justiça social cria uma rede de solidariedade que não existe em pessoas com ideias independentes. Parece que a mente niilista exige demonstrações reiteradas de solidariedade para se sentir autenticada em cada conjuntura adversa. São as únicas pessoas que, quando criticadas pessoalmente, recorrem a abaixo-assinados de apoio e desagravo. Trata-se de um psiquismo coletivo do vitimismo.

Certas florações psicossociais são próprias do niilismo: a questão da imigração é uma delas. Todo o niilista acha natural que um país rico seja invadido por imigrantes, na maioria das vezes sem qualificação para o mercado tecnológico, pelo simples motivo de que a solidariedade humana se alia ao propósito de subversão da ordem social, uma vez que uma sociedade rica contendo uma parcela muito pequena de pobres, ao aumentar seu contingente de pobres invasores, cria uma base de apoio para grupos radicais.


Niilismo x Tecnologia

Um dos elementos mais comuns do niilismo consiste em ser completamente insensível à tecnologia. Parece que se trata de uma síndrome secundária do estatismo. Todos os anos temos melhores automóveis, celulares, fármacos, bens de consumo, etc, mas isso não os comove a achar que o mundo capitalista esteja melhorando.

Todos querem os benefícios, mas não as condições que organizam a sociedade tecnológica e fazem com que contingentes inteiros de profissionais se dediquem ao esforço tecnológico de fazer a vida melhor para a humanidade. Parece paradoxal que frente a todas as demonstrações de progresso seguidas pelos países asiáticos, com diferentes empuxos ideológicos, tal esforço não seja sequer discutido entre os integrantes de uma agremiação que controla o poder no Brasil há mais de 12 anos. A confissão de que são consciências preparadas apenas para parasitar o estado pode ser vista pela relação que eles mantêm com o embalo das revoluções tecnológicas sucessivas que vamos acumulando década após década.

Um indivíduo niilista é capaz de ser salvo da morte em um hospital por um medicamento israelense de última geração e na semana seguinte estar nas ruas defendendo uma manifestação do Hamas pretensamente representativa dos palestinos. Esta capacidade de ser incoerente se explica pela rejeição ao individualismo sem tutelas.

Os filósofos e demais humanistas niilistas não só mantêm um desdém para com a tecnologia, como acham que ela não existe para melhorar as práticas da vida produtiva. Ao contrário, elas são desenvolvidas para as empresas ganharem dinheiro, sendo, evidentemente, esta postura altamente condenável porque acreditam que o estado pode fazer a mesma coisa desinteressadamente. É um momento em que se fundem os valores medievais com o socialismo latino-americano.

Como o capitalismo produz e distribui itens que exigem dinheiro, a mente niilista aspira a obtenção de todos os bens pelo simples direito de cidadania. E este benefício não sendo possível para todos, só pode ser concedido pelo estado que pratique a discriminação pelo uso de um critério elitista, onde uma nomenklatura tenha estes benefícios pelo direito autoatribuído de representar a classe proletária, o que explica subsidiariamente a rapacidade de tais agremiações políticas quando no poder.

De um lado, o desprezo pela meritocracia da sociedade tecnológica capitalista: de outro, a entronização do mérito como submetido à posição do indivíduo na estrutura política do partido. A consolidação do estado como uma crença provém de uma distorção dos princípios básicos de economia social e da impotência frente à diversidade do mundo científico e tecnológico, quando não da inadequação ao conhecimento gerada nos primeiros anos de uma escola calamitosa que deformou as novas gerações para qualquer possibilidade de abstração intelectual. Por trás de um niilista existe um histórico de frustrações que somente uma utopia futurista pode compensar.


Sectarismo

O resultado de tudo isso na mente humana consiste na criação de um dos fenômenos mais notórios dos nossos tempos: o sectarismo político. O sectarismo se consolida na consciência como uma forma de pensar extremamente hostil às ideias que estão fora da bitola das pregações políticas e que pertencem em geral a adversários odiados.

O pensamento alheio é sentido com hostilidade, como um perigo que é preciso esconjurar com as narrativas de demonização preparadas para servir de alívio às próprias contradições e bode expiatório para ocultação dos fracassos. Não existem escrúpulos com a verdade. As pessoas são tomadas de prejulgamentos preparados por publicistas partidários e perdem a capacidade de investigação independente.

O sectarismo atua como uma aversão totalizante representada em um conjunto de ideias identificáveis com uma ideologia, em um partido político, ou em uma organização social.

O sectarismo funciona na articulação de narrativas adequadas ao enfrentamento das contradições. Por exemplo: como as notícias dos jornais são frequentemente contrárias às opiniões de um grupo político, este precisa desqualificá-las em bloco, sem que necessite responder a cada caso. Para isso, usa o argumento de que se trata de uma imprensa burguesa que atua em consonância com a classe dominante. Tudo se passa como se a burguesia possuísse um comitê central que deliberasse as “verdades” que passariam a circular pelos jornais sob seu domínio. Trata-se de uma projeção de seu próprio comportamento como grupo para o resto da sociedade.

A desqualificação generalizada dispensa a necessidade de enfrentar cada argumento em separado e, ao mesmo tempo, estreita os laços de coesão de um grupo com sua doutrina, onde os eventos são tratados como necessariamente enquadrados nas constantes reiterações de suas premissas: a luta de classes, os interesses das classes dominantes, a corrupção dos empresários, a indiferença do capitalismo pela pobreza, etc.


A crítica da sociedade como projeção de si mesmo

O descontentamento dos adversários com a corrupção praticada no governo petista como política de cooptação é respondido por seus porta-vozes como se esses críticos odiassem os pobres, ou se sentissem incomodados pela presença cada vez maior da população de baixa renda nos aeroportos do país.

De fato, existe uma relação freudiana de desejo com aquilo que se critica nos outros quando tais críticas ultrapassam as raias dos fatos e se estendem a uma confissão de ódio subjetivo. Quando lemos o livro A Nomenklatura de Michael Volensky verificamos que na antiga União Soviética, existiam salas VIPs para os dirigentes (de qualquer nível) do partido e da burocracia soviética não apenas em aeroportos, mas também em estações ferroviárias.

Os dirigentes eram recebidos com carros e motoristas para os conduzirem aos seus destinos. Não se misturavam com o povo, em nenhuma hipótese. Até para descer dos aviões havia o ritual de separação de dirigentes dos demais tripulantes. Além de lojas e supermercados particulares para as famílias. Mas, quando caíam em desgraça, eram frequentemente acusados de ter perdido a “ligação com as massas”.

“Em 1621 o frade inquisidor de Lisboa dizia que eram Judeus não só os que praticavam o judaísmo, mas também os que contrariavam o Santo Ofício. Esta declaração remete aos nossos tempos de ortodoxia em que se diz que são contrarrevolucionários todos os que se opõem ao governo revolucionário” (Saraiva, op. Cit).

O sectarismo permite entender como certos tipos de crítica emanam de uma consciência que psicopaticamente deseja usufruir daquilo que denuncia nos adversários como uma perversão moral. Um desejo secreto de luxúria se esconde por trás não apenas dos miseráveis de Joãozinho Trinta, mas também dos ideólogos da miséria como podemos constatar do crescimento dos bens materiais da elite petista.

E a necessidade de esconder o fracasso do presente consiste na obsessão de criticar o passado com todas as falsificações possíveis e inevitáveis para uma mente contaminada pela fé ardente no coletivismo.

Para provar que o espírito de colaboração é muito mais poderoso em países onde a cultura do individualismo é preponderante, bastaria levantar os dados do sucesso de empreendimentos criados com a adesão voluntária de participantes, como os milhares de softwares de código aberto, a Wikipédia e tantos outros. Não por acaso, a cultura do individualismo sempre foi prestigiada como sinônimo de liberdade, pois é dela que emana o empreendimento independente, cujo sucesso está marcado pelo apoio espontâneo e sem tutela de sua comunidade.

O fracasso do PT como partido e ideologia não se limita a um fenômeno isolado e pertencente a um grupo de ativistas desmiolados. Têm razão os críticos que o equiparam a um fenômeno social genuinamente nacional. O PT representa o conglomerado mais vasto de um modo de pensar calcado em valores arcaicos que estão em todas as instâncias de nossas instituições degradadas pela ignorância de querer mudar os outros sem mudar a si mesmas.

Não é necessário perguntar às professoras que fazem o magistério nas ruas se elas se acham responsáveis pelo declínio de nossos índices de educação para termos as respostas de nossas calamidades históricas das quais o petismo foi o mais colossal acolhedor, e que o Brasil carregará como mais uma herança maldita ao longo das décadas que virão.

A longa permanência no poder das ideias petistas serve de aferição crepuscular de uma cultura imersa em um obscurantismo cultivado nas cátedras.

Estaria o Brasil condenado a reviver uma nova expulsão dos jesuítas como fez Pombal em Portugal, na segunda metade do século XVIII, como única forma de permitir que as ideias iluministas transitem em nosso território?

Só o tempo dirá se nossa crise será capaz de criar a unidade necessária para enfrentar os maiores inimigos da inteligência e do saber: o professorado petista herdeiro de nosso passado jesuítico adaptado ao niilismo marxista.

Em todo caso, o legado do petismo não desaparecerá tão cedo de nossa sociedade. Ele persistirá enquanto o estado brasileiro conseguir se manter à margem da modernidade e impedir que a sociedade desabroche em todo o esplendor de seus talentos esbulhados.

O socialismo brasileiro tem suas raízes no mundo jesuítico e numa interpretação do cristianismo ainda coagulado pela moral medieval. Enquanto estes valores não desaparecerem, o populismo pode mudar de nome, mas sempre vai nos assombrar com sua tragédia de decomposição moral e colapso econômico.


6 de agosto de 2013

O Sagrado e o Profano no século XVII

Juana Inés de La Cruz e Gregório de Matos: o sagrado e o profano no século XVII

Carlos U Pozzobon
  • Octavio Paz: Sóror Juana Inés de la Cruz – As armadilhas da fé –– Ed. Mandarim, 700 p. 1998.
  • Pedro Calmon: A vida espantosa de Gregório de Matos –– Ed. José Olympio, 1983.
  • Gregório de Matos – Obras Completas – Ed. Cultura, 1945 – 2ª edição
  • Obras de GM na Internet

Duas sumidades latino-americanas do século XVII, contemporâneas e opostas, que merecem muito mais do que um artigo comparativo, e que portanto não deveriam ficar esquecidas neste mundo de tantos títulos acadêmicos de doutorado em literatura comparada.

Juana Inés nasceu em 1648, na cidade do México; Gregório de Matos em 1636, em Salvador, Bahia. Morreram no mesmo ano de 1695. Ambos leram Quevedo (1580-1645), Calderon (1600-1681), Gôngora (1567-1627) e Cervantes (1547-1616) entre tantos escritores de seu tempo. Escreveram os mesmos tipos de poesia, mas Matos jamais publicou seus poemas e provavelmente nunca tenha ouvido falar de Juana Inés. Matos era filho de uma família rica da Bahia e se formou em advocacia em Portugal, mas não teve uma vida literária integrada, ao contrário, a poesia para ele não tinha nenhuma relação com as instituições.

Octavio Paz, em seu monumental trabalho de interpretação da obra de Juana Inés, desconhece totalmente Gregório de Matos. Para um intelectual do porte de Octavio Paz, a quem as comparações brilhantes e contundentes perfazem todos os seus artigos e ensaios, foi realmente uma ausência lamentável não conhecer Gregório de Matos. Mas o mesmo aconteceu no século XVII e se repete em nossos dias. Não seria abusivo supor que a Internet veio para produzir mais esquecimentos e perdas do que achados. Obras realmente dignas de figurar no panteão dos clássicos estão condenadas a ficarem no descuido dos blogs, dos sites e das indicações sem cliques das redes sociais pela impossibilidade de serem detectadas na avalanche de informações triviais.

Considerada a maior poetisa do século XVII, Juana Inés tornou-se a representação do gênio maldito condenado à renúncia e ao silêncio em uma época em que o totalitarismo tinha o estigma do poder associado à religião, em uma sociedade que recusava o Iluminismo nascente e vivia do dogma e do controle social pela ortodoxia da Contrarreforma.


Sobre Juana Inés

Juana Inês é um exemplo de pessoa incomum para sua época: a opção pela vida intelectual ainda jovem a inclinou para a vida religiosa — a única opção para uma mulher sem dotes econômicos na Nova Espanha. Abandonando a vida mundana, dedica-se inteiramente à combinação dos deveres monásticos com a vida intelectual. Poetisa, preparava os textos para os eventos públicos das festas religiosas, escrevia peças de teatro e mantinha intensa correspondência com os principais escritores espanhóis de seu tempo. Seu confessor, o jesuíta Antonio Nuñez de Miranda, disse sobre ela: “havendo conhecido (...) sua erudição singular com sua não pouca formosura, atrativos para a curiosidade de muitos que desejariam conhecê-la e seriam felizes cortejando-a, costumava eu dizer que não podia Deus enviar calamidade maior a este reino que permitir que Juana Inés se tornasse a personalidade do século”. (p. 15)

Inicialmente, Octavio Paz expõe a questão insolúvel entre a vida e a obra de um escritor: as lacunas, diferenças, e ao mesmo tempo a metafísica desse escritor representar o espírito de sua época. Se existem dificuldades para se conhecer a história pela obra literária, pois ambas são independentes, por outro lado é a obra literária que termina dando sentido à história. E a crítica de Octavio Paz sempre foi extremamente sensível a essas contradições. Toda obra literária está alicerçada em suas predecessoras. Ao mesmo tempo, todo escritor tem vínculos com seus contemporâneos. Paz enfatiza a correlação entre obras que são suas inspiradoras e ao mesmo tempo rivais. Uma obra tem também relação com seus leitores. Vendo por outro ângulo: são os leitores que interpretam a obra e que lhe dão sentido. Por outro lado, os leitores desempenham o papel de censores. “Em toda a sociedade funciona um sistema de proibições e autorizações — o terreno do que se pode ou não fazer. Há outra esfera, geralmente mais ampla, dividida também em duas zonas: o que se pode ou não dizer. As autorizações e as proibições abrangem uma vasta gama de matizes muito rica e que varia de sociedade para sociedade. Contudo, umas e outras podem dividir-se em duas grandes categorias: as expressas e as implícitas. A proibição implícita é a mais poderosa; é o que ‘por sabido se cala’, ao que se obedece automaticamente e sem refletir. O sistema de repressões vigente em cada sociedade repousa sobre esse conjunto de inibições que nem sequer exige a aprovação de nossa consciência”. (p. 18)

Um autor não lido sofre o pior tipo de censura de uma sociedade: a indiferença. Por isso, Paz acha que na sociedade moderna a luta contra a indiferença faz da poesia um ato de rebelião, uma vez que a arte e a poesia não se inserem na sociedade como valores racionais. A rebelião é assim conatural ao artista. Ele busca superar a indiferença, a pior de todas as censuras. “A poesia não é um gênero moderno; sua natureza profunda é hostil ou indiferente aos dogmas da modernidade: o progresso e a supervalorização do futuro... A poesia é, por natureza, extemporânea”.


Sobre Gregório de Matos

Por sua vez, Gregório de Matos era poeta nato, instintivo e culto. A população do recôncavo baiano no final do século XVII era de 35 mil pessoas, sendo que 20 mil eram escravos. Havia mais de cem engenhos de açúcar na região. Tanto Gregório como o padre Vieira tiveram irmãos que foram secretários de estado em Salvador em períodos diferentes.

Indo estudar em Coimbra (1652-1660) e vivendo em Portugal por 30 anos, retorna ao Brasil como versejador sem obra publicada devido mais à sua personalidade do que à impossibilidade de fazer isso em Portugal. Seus poemas eram presenteados a amigos na forma de manuscritos. Escrevia versos de encomenda e para presentear amigos, para celebrar nascimentos, falecimentos, casamentos e até ocorrências cotidianas. Sabemos que na Espanha de Gôngora, os poemas que acompanhavam os músicos eram chamados de ‘Cancioneiros’ porque eram escritos na forma pela qual hoje chamamos de ‘songbooks’, e circulavam como manuscritos. Sua fase mais profícua ocorre na Bahia (a partir de 1682), um local que não tinha imprensa por decisão da corte portuguesa, e onde a impressão de livros só veio a ocorrer depois da Proclamação da República. O que se conhece de sua obra foi salvo pelo último governador da Bahia (enquanto Matos ainda estava vivo), D. João de Lencastre, que sendo seu admirador, guardava seus versos. Depois da morte de Matos, o governador colocou um aviso solicitando uma doação de todos aqueles que o haviam conhecido em vida, ou que haviam sido presenteados com seus poemas. Diversos manuscritos foram doados anonimamente, principalmente porque muitos eram eróticos e licenciosos. Contudo, não se sabe se todos os poemas eram de fato de Gregório, ou se foram incluídos em seu repertório de sabujices. Por exemplo, a edição de 1945 de suas “obras completas” (tomo 1, p. 145, Edições Cultura) tem um poema em homenagem à morte do Padre Vieira (1608-1697), uma impossibilidade cronológica, pois o padre Vieira morreu dois anos depois de Matos. E a primeira reunião dos manuscritos só ocorreu em 1711, 16 anos depois de sua morte. Isso comprova que muitos versos apócrifos foram inseridos na sua coleção.

Gregório era o típico representante da boemia da colônia. Não tinha disposição para a burocracia do poder imperial. Era advogado, mas não se adaptava ao mundo jurídico e suas filigranas processuais. Seu mundo íntimo era a poesia. Acompanhado de uma viola a qual tangia com seus versos, como os repentistas de hoje, usava a poesia como forma de convívio, desafio, entretenimento, conquista amorosa e inspiração. Seu trato social não estava reservado à nobreza, da qual era parte por nascimento, mas às camadas populares. Mulherengo, festeiro, despojado e vivaz, obtinha pela palavra afiada o respeito que não conseguia na profissão de advogado. Por isso foi chamado de Boca do Inferno. Conta Pedro Calmon que já em Coimbra, onde ficou oito anos (1652-1660), “optara cedo pela sátira e pela audácia, as Musas bailando ao compasso da lira no seu palco vadio”. (p. 19)

Mancebo sem dinheiro, bom barrete,
medíocre vestido, bom sapato,
meias velhas, calção esfola-gato,
cabelo penteado, bom topete.
Presumir de dançar, cantar falsete,
jogo de fidalguia, bem barato,
tirar falsídia ao moço do seu trato,
furtar a carne à ama, que promete,
A putinha aldeã achada em feira
eterno murmurar de alheias famas,
soneto infame, sátira elegante,
Cartinhas de trocado para freira,
comer boi, ser Quixote com as damas,
pouco estudo, isto é, ser estudante.

Rimando barrete (não só o chapéu, como também em Portugal significando artifício para enganar, embuste) com esfola-gato, que não é senão a mesma coisa, já confessa no soneto sua personalidade de estudante boêmio.

Foi acusado de plagiar Gôngora por pura maldade, posto que seu maneirismo tinha ares do espanhol celebrado. Quem tem talento não precisa dos outros senão para estudo, mas já as más línguas da época destilavam sua infâmia movidas pelo ciúme provocado pelo gênio. Incontido, cortejando as freiras nos muros dos conventos nas noites sem lua, “fugindo dos quadrilheiros nos labirinto dos palácios confusos” (p. 24), acabou sendo preso e cumpriu pena em sua casa. Era um existencialista “avant la lettre”, uma personalidade que somente seria entendida e correspondida com a liberdade do século XX.

Bacharelou-se e deixou Coimbra, maldizendo em versos a cidade, para voltar a Lisboa e casar 4 meses depois de formado (agosto de 1661). Naquela época, havia um curioso ritual de casamento. Primeiro, era preciso testemunhas de solteiro. Depois, um atestado cartorial que comprovasse a limpeza de sangue como garantia de súdito da corte. Por limpeza de sangue se entendia a análise do parentesco até os avós, para determinar se havia sangue judeu ou mouro ou africano. Somente então era concedida a licença de casamento. Um procedimento que os nazistas haveriam de imitar 300 anos depois. Comprovado que noivo e noiva tinham “sangue cristão dos quatro costados”, a autorização era emitida. Com o casamento, segue-se a nomeação para o cargo de juiz de fora em uma vila alentejana. Era o início de carreira que o levaria logo depois a juiz de cível em Lisboa.

Sua carreira não foi fácil, e logo o espírito inadaptado às funções jurídicas iria pesar sobre seus ombros de forma irremediável. Com a notícia na Bahia de seu desempenho, a Câmara Municipal houve por bem nomeá-lo procurador na corte, cargo que aceitou pelo ordenado, mas logo com o cargo vieram os encargos, e a burocracia política lhe causava tal transtorno que não foi capaz de fazer qualquer coisa para atender aos reclamos da Bahia: foi demitido.

Ficou viúvo aos 42 anos (havia casado com 25 anos), e perdeu o jeito de juiz grave, mandou às urtigas a circunspeção e “desmandou-se, na decadência prematura que o faria miserável, entre os mais desafortunados, e invejado entre os maiores poetas” (João Calmon, p. 37).

Sua fama veio rápida pela agilidade como repentista. No século XVII, “glosar motes” significava dizer uma estrofe como motivo da obra cujo conteúdo desenvolve a ideia sugerida pela estrofe. Um testemunho de sua perícia escreveu: “Conhecemos aqui em Lisboa um homem que glosava motes (por dificultosos e paradoxais que fossem), sem deter-se mais do que quando corria a mão pelo bigode, torcendo-o na ponta”. Por exemplo, um marquês propôs o seguinte mote: “A mais formosa que Deus”. O que fez o Boca do Inferno?

Com duas donzelas vim
ontem de uma romaria;
uma feia parecia,
outra era um serafim.
E vendo-as eu assim
sós, sem os amantes seus,
perguntei-lhes: anjos meus
quem vos pôs em tal estado?
Disse a feia, que o pecado,
a mais formosa, que Deus.

Em Portugal, o Boca do Inferno terminou “queimando a fita”. Para se livrar dele, a corte propõe que vá ao Rio de Janeiro resolver um caso cabeludo de desmando comandado pelo régulo local. Recusou a empreitada temerária, pois tinha aversão ao poder real e terminou sendo deportado de volta para a Bahia, com um cargo recentemente criado de desembargador da eclesia da arquidiocese. Seus dois irmãos tinham funções na corte e não recusaram ir em seu auxílio.


Breve retrato da Nova Espanha (México)

Em sociedades fechadas com valores hostis à liberdade, a força da censura vem dos leitores atentos a qualquer transgressão. No México do século XVII, então chamado de Nova Espanha, a censura era a Inquisição. Em um de seus manuscritos Juana Inés deixa claro: “Não quero problemas com a Inquisição” (p. 19). Sua obra era assim rodeada de silêncios: aquilo que não podia dizer. “A palavra de Juana Inés constrói-se frente a uma proibição, que se sustenta numa ortodoxia, encarnada em uma burocracia de prelados e juízes” (OP, p. 19). Paz compara a atmosfera da Inquisição com os conhecidos totalitarismos do século XX. Trata-se de uma ponte importante: de um lado a ortodoxia católica, de outro, a ortodoxia soviética. Ambas desconfiavam do talento, criavam censuras e cortes.

O México é um país cuja história começa como asteca, é conquistado e se transforma em Nova Espanha, e depois, em 1821, na Independência se redescobre México outra vez. Para Paz a história é uma obsessão entre a grandeza e o esquecimento. Os povos têm uma relação com a história como a mente humana com a censura psíquica: ambos usam o esquecimento para evitar os fatos desagradáveis de seu passado. Para os mexicanos, a Nova Espanha é um período negro do México que se “reconquista” na Independência, isto é, na restauração. Isto acontece porque a Idade Moderna foi a negação das crenças que inspiraram a Nova Espanha. Se no passado colonial a crítica era tolhida pela ortodoxia, na modernidade ela foi a sua fundadora. A crítica tem um significado que vai mais além do que simplesmente imaginamos: é a liberdade de pensar, a liberdade de agir e paradoxalmente, uma religião da mudança. Em outras palavras, a crítica da religião transforma-se em uma religião da crítica, o período inaugurado pelo marxismo. Da Contrarreforma ao marxismo temos um período que se coagula com uma ideologia feita para barrar as mudanças, para deter a história, impedir o novo, até a insurgência permanente em busca desse novo na forma de uma nova sociedade e não no aperfeiçoamento da antiga, levando ao seu desmoronamento e retorno ao passado de opressão e silêncio. Por isso a sensibilidade de Octavio Paz em tratar o século XVII com o legado do totalitarismo do século XX.

Para analisar o contexto da época de Inés de La Cruz, Paz reconstrói as vertentes intelectuais, os poetas e escritores, analisa e compara o barroco com o romantismo, o transplante da cultura espanhola e europeia para a nova terra.

Uma comparação entre as duas obras revela um espetáculo de semelhanças. Tanto Gregório como Juana Inés escreviam o tipo de poesia da época: redondilhas (estrofe de 4 versos, o primeiro rimando com o último e o segundo com o terceiro); endeixas (composição de 4 versos de 5 sílabas); décimas, oitavas, silvas (versos de dez sílabas alternados com seis sílabas), e sonetos. Embora tenha ficado famoso por sua poesia erótica e crítica, Gregório de Matos também tem uma obra sacra e lírica. Mas suas vidas não se cruzaram intelectualmente. A única ponte entre ambos foi o Padre Vieira, mas apenas em seus sermões.

Juana Inés viveu a vida conventual. Correspondia-se com “meia Espanha”, mas não sabemos se teve contato com algum poema apócrifo de Matos. Sabemos que teve correspondentes em Portugal, e também sabemos que Matos cultivou admiradores justamente na fase em que Juana Inés despontava como talento.

O desconhecimento de Gregório de Matos sempre intrigou a minúscula elite literária brasileira que o homenageou. Augusto de Campos em um artigo lamenta que Borges não o tenha conhecido. Mas Borges também não conhecia a obra de Paz, segundo confessou em entrevista a Selden Rodman (The Tongue of The Faling Angels, 1972) até os anos 70. Por que deveríamos supor que Gregório teria conhecimento de Juana Inés se Borges não leu Paz? Aliás, Borges desconhecia a literatura latino-americana e brasileira. Seu universo literário era bem mais restrito do que se imagina, segundo nos conta Estela Canto (Borges à Contraluz, Iluminuras, 1991). O inverso, entretanto, não é verdadeiro, pois Paz, admirador da obra de Borges, afastou-se depois que Borges publicou um poema, como palestrante convidado de uma Universidade do Texas, em que homenageava a separação do Texas do México, um episódio até hoje dolorido para os mexicanos.

Tanto quanto no século XX, os escritores se relacionavam indiretamente lendo os mesmos autores, que serviam de inspiração às suas obras. No século XVII, as pontes eram Cervantes, Gôngora, Quevedo, Calderon e diversos autores comuns, além dos antigos, extremamente estudados e citados em suas obras, pois o século tinha uma deferência especial com o passado greco-romano, a filosofia tomista e o neoplatonismo. Paz diz que da língua portuguesa, Juana Inés, além de Vieira, teria lido Camões, Francisco Manuel de Melo (1606-1666) e alguns outros. Não se sabe quem seriam esses “alguns outros”, mas ela tinha uma correspondente em Lisboa.


Biografia de Juana Inés

Esta tarde, mi bien, cuando te hablaba,
como en tu rostro y tus acciones vía
que con palabras no te persuadía,
que el corazón me vieses deseaba;

y Amor, que mis intentos ayudaba,
venció lo que imposible parecía:
pues entre el llanto, que el dolor vertía,
el corazón deshecho destilaba.

Baste ya de rigores, mi bien, baste;
no te atormenten más celos tiranos,
ni el vil recelo tu quietud contraste

con sombras necias, con indicios vanos,
pues ya en líquido humor viste y tocaste
mi corazón deshecho entre tus manos.

Juana Inés de La Cruz nasceu Juana Ramirez ou Juana Ramirez de Asbaje, provavelmente em 2 de dezembro de 1648 em um pequeno povoado no interior do México. Era filha natural de Pedro Asbaje, de quem nunca ouviu falar. Razões misteriosas levaram sua mãe a desposar o capitão Diego Ruiz Lozano quando ela era uma menina. Especula-se que o pai teria abandonado o lar, e esse traumatismo seria a principal razão para Juana Inés lançar-se no caminho das letras. Em 1656 é enviada para viver com parentes na Cidade do México depois da morte do avô. Sua mãe já constituíra nova família e Juana Inés começou a conviver com seus co-irmãos.

Vivendo os primeiros anos com a mãe e o avô, Juana Inês aprendeu a ler e escrever em casa, como era o costume da época, e foi fortemente influenciada pela paixão do avô pelos livros. Mas esse mundo era um mundo masculino, mundo de clérigos e letrados. A função dos livros era uma compensação pela dupla falta original: a do nascimento ilegítimo e a ausência do pai; substituição da presença dominante do intruso padrasto e, sobretudo, a sublimação que resolve seu conflito interior.

“O mundo dos livros é composto de eleitos no qual os obstáculos materiais e as contingências cotidianas se afinam até evaporarem quase que totalmente. A verdadeira realidade, dizem os livros, são as ideias e as palavras que lhes dão significado: a realidade é a linguagem. Juana Inés habita a casa da linguagem. Essa casa não está povoada por homens e mulheres, mas por umas criaturas mais reais, duradouras e mais consistentes que todas as realidades e todos os seres de carne e osso: as ideias. A casa das ideias é estável, segura, sólida. Nesse mundo cambiante e feroz, existe um lugar inexpugnável: a biblioteca. Nela, Juana Inés encontra não só um refúgio como um espaço que substitui a realidade da casa com seus conflitos e fantasmas. A decisão de vestir o hábito, anos mais tarde, fica mais compreensível se pensarmos nesse descobrimento infantil. O convento é o equivalente da biblioteca.... A cela-biblioteca é a concha materna e nela se fechar é voltar ao mundo de origem. O autoerotismo infantil é o sucedâneo da situação pré-natal paradisíaca na qual não existe distinção entre o sujeito e o objeto. A leitura toma o lugar do autoerotismo: a confusão entre o sujeito e objeto revive, transmutada na passividade da leitura. Nela, o sujeito pode por fim se estender e se balançar como um objeto; na leitura, o sujeito alternadamente se contempla e esquece de si próprio, se olha e é olhado pelo que lê. Tempo rítmico da cela e da biblioteca, tempo que revive o berço ninado pela maré do existir”. (OP, p. 125)

Em 1669 ingressa no Convento São Jerônimo, aos vinte e um anos de idade, depois de 12 anos sozinha na casa de parentes. Dessa fase pouco se sabe, apenas que cresceu, brilhou nas tertúlias pelo conhecimento adquirido, e se transformou em uma adulta bela e culta. Apresentada à corte dos novos vice-reis do México, logo caiu nas graças da marquesa de Mancera, vice-rainha com nome de batismo de Leonor Carreto. Em pouco tempo tornaram-se amigas e a influência de Juana Inés nunca mais deixou de crescer junto à marquesa. “Juana Inês era uma companhia agradável, serviçal e discreta; a essas considerações utilitárias e mundanas somavam-se o assombro diante de um prodígio de inteligência e saber; e ao assombro juntava-se a piedade que inspira uma jovem sozinha no mundo”. (p. 138)

No soy yo la que pensáis,
sino es que allá me habéis dado
otro ser en vuestras plumas
y otro aliento en vuestros labios.

Em um poema, aos 18 anos de idade, chamado ‘Empeños de una casa’, retrata-se com as seguintes palavras:

Inclinéme a los estúdios
Desde mis primeros años
Com tan ardientes desvelos,
Con tan ansiosos cuidados
Que reduje a tiempo breve
Fatigas de mucho espacio.
Conmuté el tiempo, industriosa,
A lo intenso del trabajo,
De modo que em breve tiempo
Era El admirable Blanco
De todas las atenciones,
De tal modo, que llegaron
A venerar como infuso
Lo que fue adquirido Lauro.
Era de mi pátria toda
El objeto venerado
De aquellas adoraciones
Que forma el común aplauso;
Y como lo que decía,
Fuese bueno o fuese malo,
Ni el rostro lo deslucía,
Ni lo desairaba el garbo,
Llegó la superstición
Popular a empeño tanto,
Que ya adoraban deidad
El ídolo que formaron.
Voló la Fama parlera,
Discurrió reinos extrãnos,
Y en la distancia segura
Acreditó informes falsos.
La pasión se puso anteojos,
De tan egañosos grados,
Que a mis moderadas prendas
Agrandaban los tamaños. (OP, p. 147)

O grande mistério de entrar para um convento alguém já reconhecida por suas qualidades intelectuais, nunca foi suficientemente compreendido. Falta de dote, rejeição à vida de casada, conflitos pessoais, etc., nunca foram suficientes para a compreensão de sua atitude. Principalmente quando se descobriu que Juana Inés inicialmente entrou para a Ordem das Carmelitas como noviça, de onde saiu três meses depois arrependida do rigor das regras. Retorna um ano depois para o convento de São Jerônimo para nunca mais sair. Havia conflitos externos que seguramente pesaram fortemente na renúncia.

“A maioria dos críticos católicos pensa que Juana Inés escolheu a vida religiosa por autêntica vocação, quer dizer, porque ouviu o chamado de Deus. É evidente que Juana Inés era uma católica sincera. Não está em jogo sua ortodoxia, mas esquecer que nessa época a vida religiosa era uma ocupação como as outras seria esquecer muito. Os conventos estavam cheios de mulheres que haviam vestido o hábito não por responder a um chamado divino, mas só por considerações e necessidades mundanas; seu caso não era distinto dos das jovens que hoje procuram uma carreira que ao mesmo tempo lhes dê sustento econômico e respeitabilidade social. A vida religiosa no século XVII era uma profissão... As mulheres vestiam os hábitos porque, seja por acertos familiares, falta de fortuna ou por qualquer outra razão não podiam casar-se; também as que estavam sozinhas no mundo e sem um apoio masculino”. (OP, p. 156-157)

Em viagem que fiz ao sul do Brasil de carro em 2009/2010, presenciei 3 conventos de freiras que fecharam por inadequação das ordens religiosas ao mundo tecnológico: o primeiro em Ascurra, na região de Pomerode (SC); o segundo em Nova Veneza, na região de Criciúma (SC); e o terceiro em Arroio Grande, distrito de Santa Maria (RS). Como colégios situados em locais pequenos, entraram em declínio e fecharam as portas porque as famílias migraram para centros maiores, e porque já não possuíam o mesmo tipo de atividade econômica dos séculos XIX-XX.


A cidade do México no século XVII

No final do século XVII, havia na cidade do México 29 conventos de frades e 22 de freiras. A população da cidade era de uns 20 mil espanhóis e criollos, e uns 8 mil índios, mestiços e mulatos. Era, portanto, um século religioso, pois um convento era uma entidade econômica: servia de colégio, hotel, local de estudo de música, teatro, artes e ofícios como a costura, o bordado, e restaurante com cozinha. Dispunha de criação de animais, horta, cultivo de frutíferas, biblioteca e capela. As ordens religiosas possuíam grandes propriedades de terras que arrendavam. Aceitavam investimentos e pagavam uma taxa de 5% de juro anual. Eram instituições ricas, embora os frades e freiras fossem proibidos da ostentação da corte.

As freiras levavam para o convento suas empregadas e escravas. Na média havia 3 criadas para cada freira. As celas individuais eram tão grandes que poderiam abrigar uma família inteira. Era um pequeno apartamento para os dias de hoje. No São Jerônimo, havia um segundo andar, como se fosse um loft. Uma cela podia ser vendida ou alugada. A adesão a um convento implicava no pagamento de um dote. A administração era escolhida por eleição a cada 3 anos. “A autoridade máxima era a prioresa ou abadessa, assistida por uma vigária, uma ou várias professoras de noviças, uma porteira mais velha, duas ou mais ‘corretoras’ (vigilantes), uma procuradora (economista), algumas ‘definidoras’ que resolviam casos duvidosos, uma contadora (tesoureira), uma arquivista e, em alguns conventos, uma bibliotecária. Os cargos eram rotativos, mas havia reeleição” (OP, p. 178). Sóror Juana foi arquivista e contadora durante 9 anos.

Havia rivalidades, intrigas, associações para finalidades específicas, querelas, antipatias e até rebeliões. Muitos problemas eram tratados com a intervenção de autoridades eclesiásticas externas. A violência tinha lugar, pois castigos e até punições severas eram praticados. As freiras não saíam, mas recebiam visitas desde a alta corte até as figuras distintas do clero e da sociedade. Em geral, depois dos rituais religiosos, as freiras recebiam os participantes nos locutórios, locais onde se travavam grandes tertúlias. Além disso, havia eventos não religiosos, como cantos, bailes, teatros.

A rotina de um convento começava com as rezas da ‘prima’ às seis da manhã. Na fase anterior à medição do tempo por relógios, as horas tinham esses nomes estranhos. Às sete horas havia a missa com os coros; às oito, o café da manhã: pão, ovos, leite, manteiga. Às nove, as rezas da ‘terça’ (terceira hora depois das seis da manhã). Então começavam a trabalhar, seja na sala comum dos trabalhos, como em suas próprias celas, dependendo dos critérios e licenças da direção. Ao meio-dia as rezas da ‘sexta’, depois o almoço. Às 3 da tarde correspondia à ‘nona’, mais rezas e um intervalo de descanso seguido de um lanche. Às sete vinham as ‘vésperas’ seguidas de um jantar, um intervalo de recreação, e terminam nas ‘completas’, novamente rezas antecedendo o dormir. Havia os jejuns da Igreja, e às sextas-feiras havia o ‘capítulo’, uma reunião para discutir assuntos disciplinares e as penitências impostas às faltantes. Havia castigos que variavam de rezas até a prisão perpétua no convento. Evidentemente que as penas eram em geral leves. Mas surpreendentemente as comunhões não eram obrigatórias, salvos nas grandes festas, o que significa que a confissão não deveria ser tão recorrente.

Com tal monotonia de vida, Paz observa que não era “extraordinário o fato de algumas freiras se abandonarem a piedosas e cruéis excentricidades, mas de não terem enlouquecido. Para certas naturezas pouco resistentes, o tédio e as longas horas de ócio fomentavam delírios mórbidos, visões fantasmagóricas, e não poucas vezes pesar e horror por suas irmãs e por elas próprias”.

“Para a maioria das freiras a vida conventual era terreno propício às fofocas, intrigas e conjurações – todas as variedades da paixão cabalista, como chamava Fourier a esse amor pelo poder que nos leva a formar camarilhas e bandos. Esta paixão, diz o grande utopista, ‘é um entusiasmo calculador’. A união de cálculo e ambição é o veneno secreto que, conjuntamente, anima e corrompe a vida das associações fechadas – a Corte, a Igreja, a Milícia, a Universidade, o Partido, a Academia. A paixão cabalista, aliança entre a ambição e inveja, sobretudo em sua forma vulgar, a politicagem, busca para se satisfazer, a cumplicidade dos demais. O preço é alto: para se servir dos outros, o ambicioso não tem mais remédio a não ser servi-los. Juana Inés queixou-se muito das intrigas e invejas de suas irmãs: é quase certo que sua renúncia às letras tenha sido o resultado de uma cabala clerical contra ela. Mas ela também dominou esta arte feita de talento, dissimulação, paciência e sangue frio. Sobreviveu a mais de vinte anos de vida conventual e intrigas eclesiásticas e palacianas, não só graças às suas qualidades morais e intelectuais, como por sua habilidade. Suas relações com o palácio vice-reinal revelam um tino político nada comum. Como as outras mulheres de sua família, Juana Inés tinha uma natureza elástica e flexível, teimosa e sinuosa, deferente mas obstinada” (OP, p. 185-186).


A obra de Juana Inés

Este amoroso tormento
que en mi corazón se ve,
sé que lo siento, y no sé
la causa porque lo siento. (...)

Siento mal del mismo bien
con receloso temor,
y me obliga el mismo amor
tal vez a mostrar desdén.

Ya sufrida, ya irritada,
con contrarias penas lucho:
que por él sufriré mucho,
y con él sufriré nada.

No sé en qué lógica cabe
el que tal cuestión se pruebe:
que por él lo grave es leve,

y con él lo leve es grave. (...)
Si acaso me contradigo
en este confuso error, (...)
aquél que tuviere amor
entenderá lo que digo.

A obra de Juana Inés de la Cruz é conhecida apenas parcialmente, e sabe-se que uma parte muito pequena foi resumida em teatro (Los empeños de uma casa, Amor es mas labirinto); a lírica (Poesia Amorosa, Primer Sueño). Sua correspondência era intensa com “metade” da Espanha. Ela era uma escritora compulsiva. O padre Calleja, com quem se correspondeu por mais de 20 anos, dizia que era impossível vencê-la nos versos e nas construções alegóricas. Sua obra conhecida é Neptuno Alegórico, Fama y obras Póstumas, e A Carta Atenagórica.

Neptuno Alegórico refere-se à preparação da chegada dos vice-reis ao México. Trata-se de uma obra que envolvia desde a saudação, a leitura de poemas e vilancicos (tipo de composição festiva), a concepção arquitetônica do arco do triunfo (um costume da renascença especialmente cultuado na imponência espanhola), e discursos de apresentação.

Na Carta Atenagórica, Sóror Juana escreve uma crítica ao padre Antonio Vieira, de quem lera os sermões. É uma homenagem à sabedoria de Ateneia. Ateneia de Athena, a deusa grega da sabedoria. Vieira nunca soube da crítica de Juana Inés, que apareceu nos últimos dias de novembro de 1690 quando Vieira já estava exilado em Salvador. O Sermão do Mandato era predicado na quinta-feira, na cerimônia do lavatório, cujo tema era “amai-vos uns aos outros”, um versículo de São João. Vieira escreveu 3 ou 4 sermões em ocasiões diferentes. O tema do amor era natural na poesia, mas na prosa revela-se uma crítica à interpretação do evangelho. O que ocorreu com Juana Inés foi ser o alvo da disputa pelo poder entre prelados, algo que somente podemos avaliar comparando com a ortodoxia marxista do século XX e o destino de diversos revolucionários caídos em desgraça sob a acusação de revisionismo, reformismo, dogmatismo, sectarismo ou qualquer outro desvio ideológico usado como instrumento de luta pelo poder.

A Carta Atenagórica foi a perdição de Juana Inés. A crítica não era perdoada naquela época; somente podia exercê-la quem estivesse protegido pelo poder. Os acontecimentos que vieram a se precipitar sobre Juana Inés foram turbinados pela inveja de seu talento, um veneno que permanece atuando até hoje nos círculos artísticos.

Detente, sombra de mi bien esquivo,
imagen del hechizo que más quiero,
bella ilusión por quien alegre muero,
dulce ficción por quien penosa vivo.

Si al imán de tus gracias, atractivo,
sirve mi pecho de obediente acero,
¿para qué me enamoras lisonjero
si has de burlarme luego fugitivo?

Mas blasonar no puedes, satisfecho,
de que triunfa de mí tu tiranía:
que aunque dejas burlado el lazo estrecho

que tu forma fantástica ceñía,
poco importa burlar brazos y pecho
si te labra prisión mi fantasía.

Exemplo de soneto em que se acusou Juana Inés de licenciosidade:

Esta tarde, mi bien, cuando te hablaba,
como en tu rostro y tus acciones vía
que con palabras no te persuadía,
que el corazón me vieses deseaba;

y Amor, que mis intentos ayudaba,
venció lo que imposible parecía:
pues entre el llanto, que el dolor vertía,
el corazón deshecho destilaba.

Baste ya de rigores, mi bien, baste;
no te atormenten más celos tiranos,
ni el vil recelo tu quietud contraste
con sombras necias, con indicios vanos,
pues ya en líquido humor viste y tocaste
mi corazón deshecho entre tus manos.


O Padre Vieira

Curiosamente o padre Antonio Vieira conheceu Gregório de Matos. Mas não sabemos se tiveram tertúlias em comum, pois eram personalidades diferentes. Vieira não era literato, nem mesmo poeta, e muito menos boêmio, como Gregório de Matos.

O Padre Vieira (1608-1697) nasceu em Lisboa e morreu em Salvador. Veio para o Brasil ainda criança, com o pai enviado de Portugal. Com a invasão holandesa de Salvador em 1624, refugiou-se no interior do recôncavo, passando a conviver com os índios. Logo aprendeu o Tupi e se interessou pelos povos indígenas. Teve uma vida cosmopolita, privilegiada pelo seu intelecto e capacidade de oratória. Mas suas ideias se chocavam com sua época, da mesma forma que Juana Inés e Gregório. Vieira defendeu a entrega de Pernambuco aos holandeses quando da segunda invasão (1630-1654) porque a manutenção do esforço de expulsão custava dez vezes mais do que os benefícios de colonizar a região. Era uma posição inaceitável para Portugal. Vieira também defendia os cristãos novos, no caso os judeus convertidos, contra a sanha da Inquisição que só conferia títulos e empregos de primeira linha para os que demonstrassem a pureza de sangue. Isso lhe colocou na mira da Inquisição. Vieira se defendia pelos altos contatos que tinha na corte portuguesa, estratégia usada também por Juana Inés. Mas seu brilho intelectual produzia ciúmes entre seus pares do clero. Além disso, contornava o poder eclesiástico solicitando favores diretamente ao rei.

Vieira ordenou-se sacerdote em Olinda em 1634, em plena ocupação holandesa. Com a restauração da independência de Portugal do domínio da Espanha em 1640, vai para Lisboa e ingressa na carreira diplomática. Conquistou a confiança de D. João IV, rei de Portugal, por sua personalidade vivaz e brilhante retórica. Isto lhe permitiu contornar suas dificuldades com as patrulhas ideológicas de seu tempo, especialmente quando defendia os índios contra os colonos escravagistas, a quem acusava de maus tratos e comportamento arrogante e truculento, especialmente quando esteve pregando no Maranhão, entre 1652 e 1661. Era hostilizado pelos dominicanos (Vieira era da ordem dos jesuítas), que eram os membros do Santo Ofício. Ao defender abertamente os índios contra a exploração, foi expulso pelo vice-rei do Grão-Pará, retornando a Lisboa. O Brasil já demonstrava, desde o descobrimento, sua dualidade social e sua total incapacidade de coesão e inclusão social que permanece até hoje. O índio era diferente e não se integrava ao império, pois era visto apenas como escravo no sentido econômico e objeto sexual, na moralidade relapsa do amancebamento generalizado até mesmo de missionários que, isolados, abandonavam os votos de castidade em troca de um sem número de concubinas índias, deixando-se conduzir por uma vida de preguiça e luxúria, tal qual os índios. Era nessa atmosfera de lassidão moral que missionários do tipo Manoel da Nóbrega, Anchieta e, um século mais tarde, Vieira tinham de trabalhar.

Vieira caiu em desgraça com a ascensão de D. Afonso VI ao trono de Portugal. Defendendo a teoria do quinto império (depois do Mesopotâmico, Persa, Grego e Romano), Vieira dizia que estava reservado a Portugal o grande destino de dominar o mundo. Vieira foi novamente hostilizado e refugiou-se em Roma onde permaneceu por seis anos. Sua oratória mais uma vez o tornou capaz de cativar altas personalidades, como a rainha Cristina da Suécia, exilada em Roma, e até o papa. Vendo sua influência ascender, denunciou os múltiplos abusos da Inquisição portuguesa ao papa, fazendo com que este proibisse a ação do Santo Ofício entre 1675 e 1681. Regressou a Lisboa e, incompatibilizado com a corte, decidiu regressar ao Brasil em 1681, onde passou a dedicar-se a reunir seus sermões e mais de 500 cartas, que coligiu escrevendo aos destinatários. Como Gregório de Matos, que voltou para o Brasil um ano depois, em 1682, em fase altamente poética e mundana, não sabemos quantas vezes se encontraram em eventos oficiais, pois não tinham afinidades, mas estiveram juntos na mesma cidade até a expulsão de Gregório de Matos de Salvador.


A fase final de Gregório de Matos

Na Bahia, veio acompanhado de seu fiel seguidor, Tomas Pinto Brandão, companheiro de trovas e libertinagem. Salvador era um fervilhar de mazombos (filhos de portugueses), mulatos, mamelucos e brancos. Gregório achava os mulatos uns mal-educados, mas tinha predileção especial em sua verve poética pelas mulatinhas. Sua alegoria da miscigenação racial pode ser vista neste poema:

Quais são seus doces objetos? .... Pretos.
Tem outros bens mais maciços? ... Mestiços.
Quais desses lhe são mais gratos? .... Mulatos.
Dou ao Demo os insensatos,
dou ao Demo o povo asnal,
que estima por cabedal,
pretos, mestiços, mulatos.

Compare com os versos semelhantes (pelo período histórico, mas completamente diferentes pelo objeto lírico) de Juana Inés:

Y com sus ecos suaves,
                    las Aves;
y com sus dulces corrientes,
                     las Fuentes;
y com cláusulas de olores,
                     las Flores;
y com sus verdes gargantas,
                     las Plantas...

Juana Inés fazia poesia do divino, do sensível, enquanto Gregório era um crítico social e mundano. A poesia obscena de Gregório tem uma extraordinária importância, pois permite uma análise dos costumes, do erotismo, dos desejos e, numa sociedade piedosa, das aberrações sexuais da época. Seu anticlericalismo fornece os elementos para o entendimento da hipocrisia social comprovada na transgressão dos votos de castidade dos clérigos, da obsessão sexual pela mulata. Sua poesia é obscena e complexa, com construções que nem sempre se entendem nos dias atuais. Sua obra satírica abrange um volume inteiro. Escreveu dezenas de poemas para celebrar cornos e putas, seduções e conquistas, pornografia e masoquismo, como, por exemplo, o soneto à mulata Vicência que amava três sujeitos ao mesmo tempo:

Com vossos três amantes me confundo,
mas vendo-os com todos cuidadosa,
entendo que de amor e amorosa
podeis vender amor a todo mundo.
Se do amor vosso peito é tão fecundo,
E tendes esta entranha tão piedosa,
Vendei-me de afeição uma ventosa,
que é pouco mais que um selamin sem fundo.
Se tal compro, e nas cartas há verdade,
Eu terei, quando menos, trinta damas,
que infunde vosso amor pluralidade.
E dirá, quem me vir com tantas chamas,
que Vicência me fez a caridade,
porque o leite mamei das suas mamas.

Selamin é palavra inexistente em nosso léxico atual, mas em Portugal foi uma medida de 1,725 litros, utilizada para cereais e secos. Mas o selamin sem fundo era uma quarta (isto é uma bandeja que se mediam 3,4 litros de um cereal, que com o fundo virava metade do volume, um selamin, sendo por isso uma expressão para trapaça, para alguma coisa que vale só a metade. Gregório é mais complexo do que se imagina. Entender sua poesia requer dedicação através da pesquisa nem sempre contemplada. E deixo ao leitor a interpretação de “vendei-me de afeição uma ventosa”.

Sua decadência ocorre com a chegada de uma triste figura em Salvador: o jovem filho do governador da Bahia, chamado Câmara Coutinho, de quem Gregório não gostava escarnecendo-o frequentemente em versos. O governador é substituído em 25/3/1694 por João Lencastre, considerado amigo de Gregório. Mas o filho do ex-governador logo se investe em disputas poéticas com o Boca do Inferno. E deve ter levado uma surra lírica. Além disso, houve ciúmes de mulheres que devem ter provocado ainda mais a ferocidade fescenina de ambos. Neste ponto, Pedro Calmon esboça sua tese muito discutível: a disputa evoluiu para uma conspiração contra a vida de Gregório. O governador soube da contenda e o mandou esconder-se. Gregório não só desdenhava seu rival, como ignorava a trama que se urdia contra ele. João Lencastre não deixou por menos: para salvar a vida do amigo, mandou prendê-lo e desterrá-lo em Angola.

A hipótese não convence, e procura por um caminho contemporizador: achar uma solução que preserve a vida de um condenado com sua expulsão da Bahia. Tudo indica que seu desterro foi uma medida política para se livrar de um inconveniente. Recém-empossado, João Lencastre poderia colocar em risco seu cargo se a sociedade protegesse o Boca do Inferno. Ou até mesmo desprestigiá-lo por ter de julgar um homem de letras com base na coleta de poemas apócrifos e facilmente rechaçáveis pelo acusado, provocando embaraços e reprovações da elite de quem ele dependia para seu projeto de poder. Se o seu caso fosse entregue à Inquisição, o Padre Vieira – um ex-indiciado – poderia interceder em favor do amigo e complicar ainda mais o resultado.

Como Juana Inés, que contornou a Inquisição pela abjuração, Gregório de Matos foi expulso da Bahia e mandado em degredo para a África depois de ficar detido à espera de um navio. Escreveu um poema que serviria para Juana Inés e reflete o estilo da época barroca:

Que falta nesta cidade? ..... Verdade
Que mais por sua desonra? ..... Honra.
Falta mais que se lhe ponha? .... Vergonha.
O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,
numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha

Passou pouco tempo na África, por se envolver na intermediação de uma rebelião local de soldados logrados com a promessa de soldo pelo governador de Luanda. Conseguiu o perdão do degredo e retornou ao Brasil, porém foi obrigado a se estabelecer em Recife, longe da Bahia. Ali, acometido por uma doença, faleceu poucos meses depois em novembro de 1695.

O legado de Gregório de Matos continua a ser explorado. Algumas correntes literárias classificam-no como a primeira brasileirização de nossas letras. O Boca do Inferno seria o nosso ponto de partida do idioma nacional. Exatamente pela sua personalidade avessa ao poder, desconfiada das instituições coloniais, repulsiva à hipocrisia e privilégios da Corte, ele usou em seus poemas os termos africanos e indígenas que circulavam nas vias públicas da Bahia.

“Quem intrometeu o linguajar caboclo na fala poética, quem arrebanhou na senzala as mulatas, quem introduziu na cantiga o cotidiano, quem fez de sua arte o protesto, não do europeu que se revolta, mas do brasileiro que se reconhece, quem pediu e vociferou, senão ele, por sua terra e sua gente?

“Escutaram-no os eruditos, que lhe guardam os apógrafos – como antes da imprensa se conservavam os cartapácios nas estantes monacais, e os estudantes acabaram reproduzindo-lhe a chocarrice, esquecendo o autor. Reviveu pela memória coletiva – revelada pelas variantes joviais de sua produção caudalosa” (Pedro Calmon, p. 209-210).

Excetuando a Europa, e especialmente a Espanha barroca, nas Américas Gregório só teve concorrente em Juana Inês no México. Foram os dois grandes gênios poéticos do segundo século após o descobrimento.