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6 de maio de 2014

Tobias Barreto - Discurso em mangas de camisa

Observação preliminar sobre o "Discurso em mangas de camisa" — Em Setembro de 1877, apareceu-me a ideia de organizar nesta cidade, e à semelhança de outros, já algures existentes, um pequeno Club Popular. Como todas as lembranças infelizes, que no nosso país têm a propriedade de germinar com a mesma rapidez do alho plantado em noite de S. João, segundo a crença vulgar — a minha ideia prontamente grelou; mas também, com a mesma prontidão, murchou e morreu. Foi esta ainda uma das muitas ilusões de que se tem alentado o meu espírito nesta bela terra onde aliás vim sepultar os dois mais caros objetos do meu coração e da minha fantasia: — minha Mãe e meu futuro!...

Foi ainda uma ilusão, sem dúvida, porém um pouco mais durável, um pouco menos enganadora do que, por exemplo, a realidade das flores, com a sua vida de um só dia: minha ilusão durou quinze.

Por ocasião e a propósito de realizar o meu plano, pronunciei o discurso que aí vai. Publicado logo depois no Jornal do Recife, não deixou de ser então, como era natural, agradável a uns, e displicente a outros. Mas ficou nisto.

Correram os dias, mudaram-se as coisas, e eu entendi que devia, para dar uma feição mais permanente aquele produto de outros tempos, publicá-lo em brochura, como agora o faço, acompanhado de notas, que servem de ilustração ao meu pensamento.

É o que tenho a dizer sobre a história do livrinho. Quanto ao mais, o leitor o julgue, como bom e justo lhe parecer.

Escada, 11 de Fevereiro de 1879.


MEUS senhores! Ainda uma vez, é a mim que incumbe vir expor-vos, e em traços mais visíveis a ideia que se propõe realizar o Club Popular da Escada. A primeira reunião que já fizemos, não foi, nem podia ser inteiramente satisfatória, sob este ponto de vista, porquanto, além da grave dificuldade, que há em falar-se, de modo, eficaz, a um auditório não preparado, acresce que seria então antecipar, sem vantagem para esta sociedade, a explanação detalhada do seu objeto e dos seus intuitos. Bem quer me parecer que semelhante reserva, da minha parte, podia dar direito a se supor que há no fundo deste meu tentame uma certa dose de mistério e intenção secreta, que só pouco a pouco é dado perceber. Mas isto seria errôneo e altamente injusto.

O pensamento que forma a base desta sociedade, como de outras de igual natureza, não se resume — é verdade — numa definição, nem se esgota em centenas de discursos. Só às crianças é lícito imaginar que poderiam conter na palma da mão qualquer estrelinha, que se lhes afigura do tamanho de uma moeda, e apta para um brinquedo. Do mesmo modo, somente aos parvos é permitido crer que o conceito inspirador e dirigente de uma corporação criada com fins humanitários, políticos e sociais, qualquer que seja o círculo de sua ação, é suscetível de abranger-se numa folha de papel, e pode se deixar ver em todos os seus aspectos e atitudes sedutoras, à luz mortiça de velhas frases consagradas ao culto aparatoso dos ídolos do dia.

Porém também é certo, senhores, que quando se evangeliza uma ideia nobre, por mais densa mesmo que seja a nuvem, em que ela venha envolvida, o gênio do povo se encarrega de penetrar-lhe no íntimo e conhecer, por instinto, o seu valor e o seu alcance. Nem eu quero dissimular que uma associação, à guisa da nossa, que tem por principal agente o espírito popular, o ímpeto democrático do século, encerra naturalmente alguma partícula de reação e protesto contra a tirania das coisas, algum germe de rebeldia contra a impudência dos deuses, e importa, como tal, uma gota de assa-fétida na taça de néctar dos poderosos da terra.


Mas isto não desfigura a placidez e serenidade do nosso intento, nem seria motivo suficiente para as chamadas autoridades constituídas nos pedirem contas, por tentativa de insurreição. Tranquilizem-se, pois: se há aqui algum segredo, esse segredo não é para vós; é para aqueles que têm a orelha longa e fina, que no simples ato da livre respiração, que na sístole e diástole do coração do povo percebem sempre um como fluxo e refluxo do mar, que vem engoli-los; é para aqueles, em cuja opinião o menor esforço para sair-se deste sono de abatimento e miséria, é um plano de amotinados, assim como o sangue, que borbulha e jorra impetuoso, pode ser também um revolucionário, na opinião do punhal; é para aqueles, enfim, que tendo boas razões de unirem-se a nós, de estarem conosco, não se dignam, todavia, de aparecer aqui, pelo receio que lhes inspira o contato dos lázaros políticos, quais somos todos nós, os homens do trabalho e não do emprego público, os deserdados da pátria, os excluídos do seu banquete, mas que, a despeito de tudo, guardamos ainda uma esperança no peito e uma seta na aljava!… É para esses, sim, que o exercício de um direito pode tomar as proporções de um fenômeno perigoso, de uma nuvem tenebrosa, que esconde no bojo alguma tempestade. Quanto a nós, porém, não nos incomodemos por isso; e quanto a eles, deixemo-los conjecturarem o que lhes aprouver; e prossigamos em nossa marcha.


Volto a tratar, senhores, do assunto capital do nosso entretenimento, que já foi em síntese indicado a primeira vez que aqui nos reunimos. Esforçar-me-ei, sobretudo, por ser claro. Não compareço entre vós, para fazer-me admirar, mas para fazer-me compreender. A musa que me inspira nesta ocasião é muito modesta, para que me obrigue a trajar a grande gala da linguagem bordada a ouro, e muito menos a ouro francês. Alguma coisa de familiar, alguma coisa de designável por um discurso em mangas de camisa, é o que vos venho apresentar. Se a viagem é curta e aprazível, se fui eu quem vos convidou para ela, não seria uma extravagância, adicionada de uma impolidez, que eu quisesse ir a cavalo, quando os demais vão a pé? Nada, pois, de formalidades, nem jeitos oratórios; nada de espartilho retórico: todo a cômodo, e com toda a calma, vou expor-vos o que nos interessa.


Disse uma vez o padre Lacordaire que a posição mais desfavorável ao orador é quando tem de falar a homens que comem; porém há outra, a meu ver, ainda mais desfavorável: é quando se fala a homens que têm fome, se não se trata dos meios de satisfazê-la, ou ao menos de moderá-la. Tal seria, por certo, a minha posição diante de vós, como iniciador da ideia de um Club Popular, se me viesse à mente a singular lembrança de ocupar-me em outros assuntos, que não fossem os males da nossa vida política, o estado de penúria, e a pior das penúrias, a penúria moral, em que laboramos, o desânimo dos espíritos, a surdez das consciências, em uma palavra, todos os sintomas da doença, que mata as nações, o abandono de si mesmo, o esquecimento de seus direitos, pela falta de justiça e liberdade, de que todos nós, sentimo-nos sequiosos e famintos. Não me compete, nem seria agora oportuno, lançar as vistas no país inteiro, depondo sobre a mesa das dissecações o grande corpo brasileiro, para sujeitar a uma análise rigorosa a totalidade dos seus órgãos. Não interessa mesmo, nem a mim nem a vós, dividindo o Estado em suas partes naturais, tomar a província por objeto de nossa apreciação. Limito-me, portanto, ao município, e ao município concreto, quero dizer, a este de quem somos habitantes. É um fragmento do monstruoso tremó; mas este pedacinho reflete tão bem a nossa face, o nosso caráter nacional, como todo o espelho.



O que mais salta aos olhos, o que mais fere as vistas do observador, o fenômeno mais saliente da vida municipal, que bem se pode chamar o expoente da vida geral do país, é a falta de coesão social, o desagregamento dos indivíduos, alguma coisa que os reduz ao estado de isolamento absoluto, de átomos inorgânicos, quase podia dizer, de poeira impalpável e estéril. Entre nós, o que há de organizado é o Estado, não é a Nação; é o governo, é a administração, por seus altos funcionários na corte, por seus sub-rogados nas províncias, por seus ínfimos caudatários nos municípios; não é o povo, o qual permanece amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser a comunhão da língua, dos maus costumes e do servilismo.

Os cidadãos não podem, ou melhor não querem combinar a sua ação.


Nenhuma nobre aspiração os prende uns aos outros; eles não têm, nem força defensiva contra os assaltos do poder, nem força intelectual e moral para viverem por si; tal é o fato mais notável que a observação estabelece em geral, porém, que me parece não se manifestar em lugar algum tão carregado de más consequências, como na Escada. Aqui de certo, os habitantes do município, máxime os da cidade, fazem a impressão de viajantes, que se reuniram à noite em uma mesma casa de rancho mas logo que amanheça, cada um tomará o seu caminho, quase sem probabilidade de outra vez se encontrarem. Deste modo de viver à parte, de sentir e pensar à parte, resulta a indiferença, com que olha cada um para aquilo que pessoalmente não lhe diz respeito, e enquanto não chega o seu dia, contempla impassível os tormentos alheios, sem saber que, como disse o poeta:


A todos cabe o mal da humanidade,
De lágrimas e dor fatal convívio,
E aquilo que um tomou sobre seus ombros
É para os outros verdadeiro alívio.



Não fica aí. Essa impassibilidade, que acabo de assinalar, não se revela somente por uma certa ausência de sincero amor e caridade, nas relações puramente humanas, mas também pela falta de patriotismo, nas relações nacionais, pela ausência de senso político e dignidade pessoal, nos negócios locais. É a esta doença moral de que padece o povo da Escada, que o nosso Club propõe-se aplicar um remédio, senão de todo eficaz, ao menos paliativo.


E importa advertir: o Club Popular Escadense não toma por princípio diretor nenhum dos estribilhos da moda, menos que tudo a célebre trilogia: liberdade, igualdade e fraternidade, três palavras que se espantam de se acharem unidas, porque significam tres coisas reciprocamente estranhas e contraditórias, principalmente as duas primeiras. E para que não se me acuse de paradoxia, permiti-me, por um pouco, tratar de demonstrá-lo; o que tanto mais interessa, quanto é certo que não temos por nós nenhuma das três pessoas dessa trindade revolucionária, e por isso muito importa sabermos, se delas uma só nos basta, ou se de todas necessitamos, bem como se é possível à sua consecução.


Mas antes de tudo — que a liberdade e a igualdade são contraditórias e repelem-se mutuamente, não milita dúvida. A liberdade é um direito, que tende a traduzir-se no fato, um princípio de vida, uma condição de progresso e desenvolvimento; a igualdade, porém, não é um fato, nem um direito, nem um princípio, nem uma condição: é, quando muito, um postulado da razão, ou antes, do sentimento. A liberdade é alguma coisa de que o homem pode dizer: eu sou!…; a igualdade alguma coisa de que ele somente diz: quem me dera ser !… A liberdade entregue a si mesma, à sua própria ação, produz naturalmente a desigualdade, da mesma forma que a igualdade, tomada como princípio prático, naturalmente produz a escravidão. A liberdade é aquele estado no qual o homem pode empregar, tanto as suas próprias, como as forças da natureza ambiente, nos limites da possibilidade, para atingir um alvo, que ele mesmo escolhe. Onde, pois, o indivíduo é perturbado no uso de suas forças, e a respeito das ações que não se opõem à liberdade dos outros, nem às necessidades sociais, é sujeito a uma tutela, aí não existe liberdade, nem civil, nem política, nem de outra qualquer espécie. A igualdade é aquele estado da vida pública, no qual não se confere ao indivíduo predicado algum particular, como não se lhe confere particular encargo. Igual independência de todos, ou igual sujeição de todos. O mais alto grau imaginável da igualdade — o comunismo — porque ele pressupõe a opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau da servidão. A realização da liberdade satisfaz ao mais nobre impulso do coração e da consciência humana; a realização da igualdade só pode satisfazer ao mais baixo dos sentimentos: a inveja. Que uma e outra não se harmonizam, que são exclusivas e repugnantes entre si, prova-o de sobra a revolução francesa, que tendo começado em nome da liberdade, degenerou no fanatismo da igualdade, e reduziu-se ao absurdo nas mãos de um déspota. O povo francês assemelhou-se então a uma cidade que se submerge, só ficando de pé uma torre enorme, no meio do lago imenso: a figura de Napoleão! Estava assim, da melhor forma, o ideal de Mirabeau: — la monarchie sur la surface égale. Os indivíduos, ou os povos, que esquecem a liberdade por amor da igualdade, são semelhantes ao cão da fábula, que larga o pedaço de carne que tem na boca, pela sombra que vê na água do rio.


Não falo da classe econômica propriamente dita, porque a sua vida se limita a uma luta pelo capital, e nada tem que ver com as nossas lutas pelo direito. Após então vem o povo, o povo triste e sofredor, em cuja fronte, não poucas vezes, junto ao estigma da infelicidade, por cúmulo de miséria, a sorte imprime também o estigma da ingratidão; o povo que é o número, mas um número abstrato, um número que não é a força; perseguido, humilhado, abatido, a ponto de sobre ele os grandes disputarem e lançarem os dados, para ver quem o possui, como os judeus sortearam a túnica inconsútil do mártir do Calvário.


Não exagero, senhores, é a verdade. O povo brasileiro, ou muito restritamente, o povo da Escada, é tido na conta de uma coisa apropriável, se já não apropriada. Quereis uma prova entre muitas? Eu vos dou. Reparai bem: o ano passado, quando se tratava da qualificação dos votantes desta paróquia, nessa época de baixeza e picardia, que hoje porém, já não me espanta, porque depois disso tenho aqui mesmo testemunhado mais negras misérias, haveis de estar lembrados que os dois partidos em contenda, para mostrar qual deles tinha por si a maioria, levaram à imprensa, com uma ingenuidade infantil, somente a apreciação do número dos engenhos! … — “Há mais engenhos do lado dos liberais”, — diziam estes.— “Nem tantos, como alegam” — diziam os conservadores, e acrescentavam: — “Se os liberais têm alguns engenhos a mais, os dos conservadores, em compensação, são mais extensos, mais povoados, mais ricos…” — Eis aí.


Quereis melhor? Se isto não era uma questão de fábrica, isto é, de maior número de bois, cavalos e escravos, inclusive os cidadãos votantes, já sei que as palavras perderam o seu sentido, ou eu perdi o uso da razão. É pois evidente que, pela própria confissão das partes, está criada na Escada uma açucarocracia, a qual se julga com direito à posse de todos aqueles que vieram tarde e não encontraram um pouco de terra para chamarem sua, e dentro desse domínio manejarem sem piedade o bastão da prepotência.


Tudo isto, repito, senhores, é de uma clareza solar; de tudo isto estamos inteirados por amarga experiência. Porém, é certo que não devemos desanimar. O processo da ação do povo, se me é lícito assim expressar-me, para adquirir a posição perdida, é sumário: uma espécie de interdito unde vi, em matéria política. Ainda não passou ano e dia para intentá-lo, se é que o povo não prefere usar do meio que as leis permitem aos esbulhados da posse de coisas materiais, e que seria absurdo não permitir igualmente aos esbulhados de coisas mais sagradas que uma jeira de terreno, se é que já não chegamos aquele estado de vilania e transtorno dos conceitos morais, em que a vida é preferível à honra, e a propriedade preferível à vida. Esta linguagem eriça cabelos; a mais de um amigo da ordem pode ela parecer o cúmulo da extravagância; e todavia senhores, este meu vinho tem água, não é dele que se costuma beber nos festins da democracia. Seja, porém, como for, não hesito em declará-lo: o povo da Escada, a quem ora me dirijo, deve pôr-se fora da tutela. Tomando conta de si mesmo, e contestando aos poderosos a faculdade de disporem desta cidade, como de uma filial das suas fazendas, cumpre-lhe erguer-se à altura de um poder, com que eles devem contar, em bem ou em mal, e não continuar a ser um algarismo mínimo, um milésimo de força, cujo erro não lhe perturba os cálculos. Ao povo da Escada importa convencer-se que ele não tem para quem apelar, senão para o seu próprio gênio, que não é o da resignação e da humildade. Importa convencer-se que ninguém se lembra dele, ninguém por ele se interessa. Os magnatas do município, por mais que finjam o contrário, não escapam à censura de serem todos acordes no tratar com desprezo a esta localidade. Sirva de prova o fato extraordinário de não haver um só proprietário do termo, qualquer que seja o seu grau de riqueza, que possua dentro da cidade um prédio, digno de si, relativo à sua posição e à influência que por ventura queira ter. Não há um único sequer, que tenha aqui edificado, nem em grande nem em pequena escala. Muitos até existem, que contam nos dedos de uma só das mãos as vezes que têm vindo à sede do município, e ainda fica dedo desocupado para uma pitada de rapé.

Este fenômeno singular e significativo, creio eu, não se repete em outro lugar, pelo menos, com tão claro propósito de desdém votado à população da cidade. Seria fútil e desprezível a objeção que me fizessem, alegando que as despesas da edificação da nova matriz correram quase todas por conta desses mesmos proprietários. Nenhuma dúvida; porém, o que importa? Uma questão de bigotismo, senão antes de alardo pecuniário, ou de simples consideração ao burel de um capuchinho.


Não vos iludais, senhores. Em assunto de popularidade, de homens dedicados à causa popular, a experiência está feita; e sou tentado a dizer-vos, como o francês H. Beyle: — j´invite á se méfier de tout le monde, même de moi… — Aconselho-vos que desconfieis de todo mundo, até de mim mesmo. Confiai somente em vós, que releva levantardes a fronte, nos vossos esforços, que é mister multiplicar, no vosso próprio caráter, que é preciso reformar.


O município da Escada, e como ele, a província, e como a província, o país inteiro, anseia pela vinda de qualquer grande acontecimento. Não sei qual ele seja, mas ele há de vir.


Não sou judeu para crer no Messias, nem tenho a ingenuidade dos primitivos cristãos para acreditar na parousia; mas sou filósofo em confiar nas leis da história, que regulam o destino dos povos; e essas hão de também cumprir-se entre nós. Os cometas não percorrem uma mesma órbita, e as nações não seguem um mesmo caminho. Do país em geral se ergue como que um sussurro de imprecações e lamentos, é o naufrágio que se aproxima. Nada de bater nos peitos, nem de pedir misericórdia. Ninguém nos socorrerá, se o socorro não vier de nós mesmos. Abramos mão de nossos prejuízos, de nossas reservas, de nossos temores, e sejamos um povo livre.


Sim, meus senhores, é a liberdade que nos falta: não aquela que se exerce em falar, bradar, cuspir e macular o próximo, porque esta temo-la de sobra, mas aquela que se traduz em atos dignos e meritórios. Informa-nos escritor competente que no pórtico da nova casa do parlamento alemão existe, entre outros, o retrato de um célebre deputado liberal, Carlos Mathy, debaixo do qual se leem as seguintes palavras suas: A liberdade é o preço da vitória que adquirimos sobre nós mesmos. É esta, senhores, que deve provocar os nossos anhelos, é desta que carecemos: o preço da vitória adquirida, não tanto sobre um governo maléfico e execrável, como antes sobre nós mesmos, sobre os nossos desvarios, e a nossa facilidade em deixarmo-nos intimidar, ou seduzir, pela tentação dos seus demônios.


Entretanto, eu tenho, neste sentido, sombrias apreensões. Talvez já seja tarde, para consegui-lo. Notai bem: tarde, e não cedo. Não pertenço a escola dos teoréticos pacientes, que julgam o povo ainda não maduro para a liberdade. Como se fosse possível aprender a nadar sem meter-se dentro d´água, ou aprender a equitação sem montar a cavalo! Dislates iguais aos dos que querem que o povo passe por um tirocínio da liberdade, sem aliás exercê-la.


O que me causa apreensões, é o contrário disto. Receio que conosco suceda o que se deu com a mais robusta encarnação do bizantinismo moderno: o império de Napoleão III.


Este infeliz regime teve duas fases: uma de marcha em linha reta, na senda do despotismo, sem transigir, nem tergiversar — foi a época da ascensão ao seu apogeu; outra de decadência e enfraquecimento — foi a época das concessões e tentativas liberais, que durou até a queda final do império e o desastre da nação.


De 1852 a novembro de 1860, que é a data do primeiro decreto, onde o despotismo dignou-se de encurtar o diâmetro, e daí, de concessão em concessão, isto é, de fraqueza em fraqueza até 1870, quero dizer até Sedan !… Semelhante fato, senhores, confirma a seguinte verdade: — que qualquer governo corre o risco de cair, quando mente aos seus princípios e torna-se incoerente — assim como, que uma nação, por força do absolutismo, pode chegar ao estado de incapacidade para um regime livre. Desconfio que o nosso Libertas quae sera tamen… será de todo inútil. O Brasil já faz a impressão de um menino de cabelos brancos. Estamos estragados. Quando aprouver ao imperador conceder-nos um pouco mais de ar, não será fora de tempo, não estará já tudo perdido, até mesmo a honra? Tenho medo!… Nem há razão para estranhardes o paralelo. Se existe alguma diferença, é só de desvantagens para o nosso lado. Poucos anos antes da queda do segundo império, dizia dele um pensador político da Alemanha, que sem embargo da constituição, sem embargo de um senado e corpo legislativo, o que tudo não passava de maquinismo burocrático, o governo napoleônico não era mais do que um puro absolutismo, temperado pelo temor das bombas de Orsini.


Muito bem. O escritor disse a verdade, não, porém, toda a verdade. Não era somente o temor das bombas de Orsini que temperava o governo de Napoleão, o qual se pudera chamar de o socialismo no trono. Era também o amor das classes necessitadas, a continua atenção prestada aos interesses do quarto estado, ponto este que sempre constituiu o pensamento diretor do novo bonapartismo.


Sim, o governo absoluto de Napoleão era ainda temperado pelas sociétés de secours mutuels, pelas cités ouvriéres, pela société industrielle de Mulhouse; era ainda temperado pelos fourneaux do príncipe imperial, que forneciam comida aos trabalhadores por baratíssimo preço, pelos banhos gratuitos da capital; pelo Grand Cafe Parisien, levantado à porta de S. Martin, confinando com os quarteirões dos operários, no qual o homem pobre, por poucos soldos, à luz de candelabros e num divã de veludo, podia tomar o seu petit verre. Entretanto, nós outros o que é que temos? Também um puro absolutismo, apenas, porém, temperado… pela batalha de Avahy, pela Fosca, pela bancarrota do Estado, pela corrupção dos ministros, pela miséria do povo e as viagens do rei. Ou será que vós ao menos vós, cidadãos da Escada, tendes motivos de vos julgardes felizes? Vós que dificilmente adquiris o pão quotidiano, com o suor do vosso rosto, vós a quem é aplicável, bem como à maioria do país, o que uma vez disse Gladstone da sua Inglaterra: — Em nove casos de dez, a vida não é mais do que um combate pela existência?! E que combate! Um combate com a natureza, que não raro se vos mostra cruel; um combate com a sociedade, que se vos opõe não menos madrasta; um combate com o capital, que vos olha desconfiado, e não se digna de animar-vos; um combate com o Estado, que multiplica os impostos, aumenta as dificuldades, toma as vistas do futuro; e desta quádrupla luta é que tem de sair os meios de viver e educar os vossos filhos!… Eu não sou socialista: não encaro o número dos que cuidam poder, com um traço de pena, extinguir os males humanos, quase irremediáveis. Mas também não faço coro com a escola de Manchester; não penso que a pobreza é sempre o castigo da preguiça econômica, e que, como tal, qualquer medida de socorro ou alívio para ela, importa premiar os inertes e preguiçosos. Alto e bom som se diz que a Escada é riquíssima, que é um dos mais ricos municípios da província. Quero crer que seja assim. Porém não é estranhável que sendo o município tão abastado, ofereçam aliás os habitantes da cidade, por este lado, aspecto pouco lisonjeiro? Para as vinte mil cabeças da população do termo, esta cidade contribui com três mil, pouco mais ou menos. Sobre estas três mil almas, ou melhor, sobre estes três mil ventres, é probabilíssimo o seguinte cálculo:


90 por cento de necessitados, quase indigentes.

8 por cento dos que vivem sofrivelmente.

1 1/2 por cento dos que vivem bem.

1/2 por cento de ricos em relação.

Semelhante quadro, que pode pecar por excesso de cor de rosa, não é todavia apto para dar do nosso estado econômico outra ideia, senão a de um pauperismo medonho, quando muito, moderado pela esperança de uma sorte de loteria. Nesta triste conjuntura, o que faz o Estado, o que faz a província, o que faz a comuna, em favor da população, para diminuir-lhe os obstáculos e facilitar-lhe o trabalho? Nada mais nem menos do que sobre o costado da besta, já caída de fadiga, arrumar mais alguns quilos, afim de ajudá-la a erguer-se. O Estado e a Província sugam anualmente deste Município, sem falar de outros canais, e só do que corre pelas duas coletorias, de 25 a 30 contos de réis. Eis o que vai no refluxo. Vejamos agora o que vem no fluxo: 10 porcento dessa quantia, que se gasta com a magra instrução pública; 15 porcento, com a justiça e seus apêndices; 20 porcento, com a polícia; 1 a 2 porcento, com o artigo religião; e o resto, a saber, mais da metade, vai perder-se em outras plagas, sendo ainda para notar que as despesas com a polícia local são as únicas que trazem um resultado prático e sensível, pois que o cidadão, em muitas ocasiões, recebe no lombo a benéfica pancada do refle. Por sua vez a Municipalidade exercita, com o mesmo zelo, as suas funções exaurientes, e não se sabe, em última análise, em que se emprega a sua receita. Por toda parte, pois, e sob todos os pontos de vista, os mesmos sintomas mórbidos, as mesmas ânsias, a mesma angústia. As consciências como que perderam o centro de gravidade moral, e balançam-se inquietas em busca de um apoio. A instrução é quase nula, à medida que também é nulo o gosto de instruir-se; e temos em casa o exemplo. Acabais de ouvir que o dispêndio feito com as escolas desta cidade é muito inferior ao que se faz com a polícia: sinal evidente de atraso intelectual. Não limita-se a isso. Segundo a opinião de competentes, a proporção regular entre o número de habitantes de um lugar e o das pessoas que devem frequentar a escola, é de 12 a 15 porcento, se esse lugar quer ter o título de adiantado. Ora, dos três mil espíritos, que dissemos haver aqui dentro, 4 por cento e alguns quebrados é que se encontra realmente de frequência em cinco casas de instrução que existem, sendo somente 7 por cento o número dos matriculados !… Vê-se pois, que ainda entre nós há uma certa má suspeita contra a arte diabólica de ler e escrever, para servir-me da irônica expressão do italiano Aristides Gabelli.


Juntai esse aos demais fenômenos da nossa decadência.


O Club Popular Escadense, meus senhores, não nutre a pretensão, que seria ridícu1a, de vir levantar um dique de resistência contra a corrente de tantos males, cujo ligeiro esboço acabo de fazer; mas tem o intuito de incutir no povo desta localidade um mais vivo sentimento do seu valor, de despertar-lhe a indignação contra os opressores, e o entusiasmo pelos oprimidos. E há momentos, já disse com razão alguém, há momentos, em que o entusiasmo também tem o direito de resolver questões…


Tenho concluído.






14 de abril de 2014

Sylvio Romero - Nosso Maior Mal

De Provocações e Debates - pgs. 102-114

Nosso maior mal... A febre amarela? As secas do norte? O clima tropical? As oligarquias estaduais? A politicagem?

Não; nada disso.

Com serem coisas graves, muito graves até, podem ser atenuadas, a começar pela febre amarela, que vai desaparecendo... Não é, pois, desses flagelos que venho falar. O maior mal do Brasil, e não é cosa que lhe seja exclusivamente peculiar, porque muitos outros povos participam do mesmo achaque: é — pretendermos ser, como nação, como todo político-social, o que não somos realmente.

É um estudo de psicologia popular, de antropo-sociologia nacional que não tem sido feito e do qual darei apenas algumas linhas gerais.

Dá-se com as nações o que se dá com os indivíduos: a maior parte dos erros, dos embaraços, das decepções, das quedas, dos prejuízos, dos desastres e até da total ruína que cada um de nós comete, encontra ou sofre na vida, provém pura e simplesmente, quase sempre, desta coisa tão simples, tão rudimentar, tão indesculpável, — o desconhecimento de nós mesmos.

Cada um pode fazer a experiência e sairá edificado do exame. A inconsciência, em que a maior parte das pessoas vive das lacunas de sua inteligência, da insuficiência de seu saber, dos vícios de seu caráter, da fraqueza de sua vontade, — é a origem da precipitação, da leviandade, da arrogância, dos falsos cálculos, dos passos errados, das loucuras praticadas.

Pois bem; essa espécie de leviandade, de perigosa pedanteria acomete também o espírito coletivo, a índole dos povos. Assaz sofremos, nós os brasileiros, — desse mal.

Afigura-se-me ser ele, não a única fonte de nossos desastres, senão, certo, a mais considerável de todas. Nós brasileiros, entre muitas qualidades de bom quilate, entre muitos predicados merecedores de apreço, temos a fantasia demasiado inflamável, e, em se tratando peculiarmente de nosso valor, de nossas grandezas, de nosso prestígio, de nossas superioridades, de nossos progressos, de nossa cultura, de nosso papel no mundo, perdemos, com a mais singela, íntima e sincera confiança, o senso da realidade, a consciência das coisas e nos julgamos colocados no pináculo entre as nações.

Foi sempre assim. Desde os tempos coloniais, a datar do terceiro século da colonização, esse prazer, essa embriaguez dionisíaca, para falar com Nietzsche, por tudo quanto é nosso, foi a primeira ação reflexa embutida em nosso caráter pelo aspecto geral de nossa natureza.

Foi a primeira dádiva do meio — brilhante, colorido, matizado na terra por primavera imorredoura, no mar pelas doçuras intérminas dum glauco inigualável, no céu pela luz dum sol do qual se pode dizer que colabora com a gente, que preside ao trabalho, e bem merece o canto do poeta que lhe chamou de eterno concidadão que nos ajuda e conforta...

Ação fisiológica inconsciente, ainda reforçada pelos crepúsculos alucinantes de beleza, pelas noites embevecedoras de infinito, no palejar das estrelas, ou embriagadoras de intraduziveis aspirações, nos luares esplêndidos...

Desde Rocha Pitta a descrição do meio está feita e a característica da gente implicitamente traçada. Ao crítico e psicólogo, porém, incumbe a ingrata função de desfazer miragens, reduzir fantasias, dissipar ilusões. Pratica-o quase sempre com mágoa e dor, pois sabe que vai chocar preconceitos e suscitar cóleras e esconjuros. Mas há uma coisa, que para o crítico e psicólogo, sincero consigo mesmo e com o país, está acima de todas as conveniências de momento: a verdade estrita no interesse real, positivo do povo.

Este é o dever dos deveres, o primeiro mandamento do decálogo do patriotismo. Nas linhas que a estas se deverão seguir procurarei despretensiosamente apontar, muito de leve, os males que nos têm, a nós brasileiros, advindo desse, a primeira vista inocente, passatempo de nos darmos por bem mais notáveis e grandiosos do que na realidade somos.

Em todas as esferas das manifestações da atividade nacional se tentará descobrir os efeitos do mal. Política, estado social, direito, finanças, ensino público, literatura, economia nacional, indústrias, tudo passará rapidamente sob as vistas do leitor neste rápido estudo de etiologia popular.

É bem de ver que, neste despretencioso artigo, não poderei dar às teses demonstração documentada, largamente desenvolvida, como fora mister num livro, por exemplo, que tivesse de traçar o quadro real da situação brasileira.

Não poderei oferecer aos leitores senão proposições gerais apoiadas em provas singelas de facílima verificação.

Algumas dessas afirmações, ou melhor, quase todas elas — são simples postulados do bom senso geral que andam aí formulados em todos os espíritos. São proposições evidentes que andam de boca em boca.

Meu trabalho será apenas o de fazer uma síntese, enfiar as contas de um rosário que quase toda a gente tem manipulado.

Nosso maior mal, disse, é não termos a consciência positiva do que realmente somos e, muito ao invés disso, darmo-nos a nossos próprios olhos uma superioridade, uma grandeza, um poderio, um progresso, uma cultura, um adiantamento, uns predicados quase sem par por aí além entre as demais nações.

Dessa terrível inconsciência derivam males gravíssimos em todas as esferas da vida nacional: política, estado social, direito e legislação, finanças, ensino e educação, literatura, economia nacional, indústrias, e moral publica.

Comecemos pela política. Na presunção de sermos tão bons como os melhores, tão distintos como os mais distintos, tão cultos como os mais cultos, tão enérgicos como os mais enérgicos dentre os povos que se acham à frente da civilização moderna, vão-se prender na ordem política muitíssimos desvarios, erros e tropeços que nos têm causado e hão de ainda causar por muito tempo os maiores males. Entre eles avulta a leviandade infantil com que sempre nos temos embalado na doce ilusão de que para nosso andar desassombrado no mundo, fazendo nele a mais brilhante figura, não temos mais que copiar as constituições e leis dos povos mais cultos e transportar para cá as instituições que alhures deram os melhores frutos.

Se tivéssemos verdadeiro juízo e são critério, teríamos logo visto que institutos, aparelhos, órgãos políticos são a frutificação secular, e muitas vezes milenária, de funções nacionais formadas, desenvolvidas, selecionadas nas condições peculiaríssimas do viver de cada nacionalidade; não são coisas que se transplantem ao nosso bel-prazer.

Fazê-lo é dar provas da maior incapacidade criadora, da mais completa ausência de plasticidade para o meneio das coisas políticas. Fazê-lo é tomar a vacuidade retórica, retumbante, palavrosa de nossos parlamentares, que tem sido os chefes de nossos governos ou os inspiradores de nossas leis, como coisa séria, aproveitável, organicamente útil.

Desse formidável parto de nossa incapacidade real, enfeitada apenas em frases que a turba acha bonitas, origina-se o fracasso completo, radical, irreparável, exposto aos olhos da nação, de todas as instituições populares, transplantadas para o nosso meio, sem que presidisse à mudança a mais leve adaptação.

E nota-se até que quanto mais perto do povo devia ficar o instituto para ser por ele mesmo exercido em seu próprio proveito, maior foi a decadência, mais desastrada a ruína.

Deste número são: o júri, as câmaras municipais, as assembleias provinciais; o júri, que no Brasil se transformou em aparelho protetor de assassinos, ou seguro de vida para ladrões; as câmaras municipais, horrendas cavernas de Caco, terríveis ratoeiras para arrancar aos povos os últimos vinténs, enriquecendo pelo país em fora verdadeiros clãs locais de mandões insaciáveis; as assembleias provinciais mudadas agora em congressos e senados Estaduais, são guardas avançadas ao serviço das oligarquias, cujos interesses defendem com a espoliação muitas vezes, dos haveres das populações e sempre com o sequestro das liberdades públicas.

Não é só: entre os males de ordem política, devidos à nossa presunção de nos supormos o que não somos, destacam-se as duas constituições políticas, copiadas de modelos que somos incapazes de seguir com segurança e vantagens práticas: — a Constituição Imperial, liberalizante em excesso, não condicionada ao nosso meio; a Constituição Republicana, copiada por alguns fantasistas desarticulados, talentos inorgânicos, que sempre tiveram a simploriedade de confundir palavras com ideias...

Daí a pasmosa decadência do parlamentarismo, que se foi pouco a pouco transformando no famoso sorites de Nabuco de Araújo É famoso, na história do Brasil, o "sorites de Nabuco" – silogismo com o qual o primeiro Nabuco, José Thomás, descreveu o sistema político do Segundo Reinado: "O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país". O sorites de hoje seria: "O presidente chama parceiros porque não consegue presidir sozinho; estes parceiros abrem espaço para a malversação e as falcatruas; a malversação e as falcatruas levam o governo a perder o rumo e a afundar num mar de escândalos" (Fonte: Revista Veja nr.1906). Daí esse presidencialismo repulsivo, de cujo ventre brotaram vinte e uma oligarquias ou satrapias fechadas, irredutíveis, verdadeiros clãs como os do País do Roubo em Marrocos, menos a coragem, o pitoresco e a poesia que vive ali nos tipos e nas coisas.

E há pior: como estamos cada vez mais a pensar que o Brasil se reduz todo ele a esta velha carcaça do Rio de Janeiro, que, como as mulheres de Jerusalém acreditavam que se salvavam só com o tomarem trajes garridos, imagina que só com a abertura de avenidas tem atingido todas as grandezas, no mais triste abandono jaz cada vez mais a educação política das massas, cujo caráter se tem, ao contrário, cada vez mais inconvenientemente aviltado.

Tem sido uma verdadeira lição de coisas: tem-se levado sistematicamente às massas a convicção que isto de vida política é coisa com que elas nada têm a ver; é um negócio de poucos, de alguns escolhidos, de raros privilegiados.

Basta o Bloco empoleirado no centro, os sátrapas nos Estados e está tudo feito...

Ora, a política, segundo a melhor definição que dela se conhece, — é, como ciência, a teoria da vontade popular, como prática, a realização desta vontade.

O Brasil desmente em absoluto tal verdade. A prova temo-la irrefragável neste fato vergonhosíssimo, cheio dos mais alarmantes perigos: a indiferença, o desinteresse, o alheamento completo em que andam as massas, o povo, as gentes todas de alto a baixo por seu viver como nação, seus destinos coletivos, suas funções históricas, suas aspirações ideais.

Dirigidos andamos por incapazes que exercem a sinistra função de lobrigar na política desta grande terra apenas as suas vantagens particulares, as suas vantagens deles, Bloquistas, Sátrapas, Oligarcas, Senadores, Ministros, Deputados... Mandões, Chefes de clã, tigres famintos que arrocham os pulsos aos povos, sufocam neles todos os nobres impulsos de ideal para melhor devorar-lhes as carnes.

Desta suprema degradação, origina-se o criminoso, aviltante e miserando abandono em que andam as eleições políticas no Brasil, o espetáculo mais desprezível que se possa deparar nos anais da humanidade.

Isto mesmo é que obriga os hediondos especuladores que entre nós têm o nome de Chefes Políticos, Chefes de Partidos, Estadistas, cuja ciência consiste em povoar o solo por decreto, criando repartições onerosíssimas; fomentar a agricultura, enviando vadios e nulos à Índia, à China e ao Japão para que nos ensinem como se planta café e se fabrica açúcar...

Um cúmulo !

Trataram de incutir o mais possível na crença do povo que ele é dos mais cultos e adiantados existentes na terra. Ora, se a multidão já é assim, que não será a elite dirigente? Que não serão os super-homens dessa gente? Verdadeiros gênios, assombrosas capacidades, aptos para meter no chinelo os maiores guias de povos que tem existido, os Alexandres, os Césares, os Fredericos, os Cromwels, os Bismarcks...

Mas a realidade é bem outra: ignorância, pauperismo, miséria, opressão reinam por toda a parte. A demonstração prática deste monstruoso estado das populações nacionais, desde a serra de Parima, ao norte, até o Quaraí, ao sul, é a coisa mais fácil, mais simples que possa existir e quase não precisa ser feita, porque está na consciência geral, e até na da gente do Bloco...

E é porque vivemos na fantasia de ser um grande, poderoso, riquíssimo, avançado, cultíssimo povo, tanto que (é a crença geral...) fazemos sempre a primeira figura em todos os congressos mundiais, e é porque, como consequência dessa miragem, julgamos os nossos estadistas prodigiosas cabeças, dignas da veneração universal, que, como os loucos que se julgam reis, não damos fé do deplorável estado em que nos debatemos.

Este sistema de iludir e consolar é, consciente ou inconscientemente, mantido pelos poderosos desfrutadores da política e do trabalho do povo brasileiro.

Não lhes convém que a nação abra os olhos; porque, no dia em que ela tiver a vista clara de sua deplorável situação, a vista clara produzida, não por essa instrução palavrosa, superficial, falsa, cheia de mentiras, aleatória de toda a masculinização e dignificação da vontade que se inocula sistematicamente nas gerações novas, mas por uma educação em que se incuta na alma dos moços que o caráter é a primeira força social, porque nesse dia ruirá por terra a infamante politicagem bloquista que nos avilta.

Não haverá mister de derramar sangue: basta que alguns milhares de homens, em dia de eleição, saiam à rua decididos a exercer com firmeza, coragem, verdade, o seu direito de voto, no intuito de expulsar das altas posições executivas e parlamentares os nulos, os prevaricadores, os traficantes.

Mas assim como para fazer uma fritada são indispensáveis os ovos, para fazer uma boa eleição são de primeira necessidade — quem vote e em quem se vote. É o que não temos, nunca tivemos e não teremos tão cedo no Brasil: porque nós não temos tido até agora, e não a teremos facilmente uma disciplina deliberada do caráter nacional, e a consciência iniludível de uma função histórica a desempenhar.

Temos estado nas condições descritas pelo poeta, de:

— Sermos um povo rebanho
Sem aprisco e sem pastor.

O que disse da política, desvirtuada entre nós por nossa fatuidade de querermos passar por um grande povo, estando ainda muito longe de sê-lo, o que importa dizer que deixamos de curar de nossos males, correndo atrás de aventuras, o que disse da política se repete, mutatis mutandis, de tudo o mais. É a esse vezo que, na ordem social, em vez de cuidar de arrancar da barbárie as populações do interior, de espalhar o ensino e fortalecer a educação, tratamos apenas de embelezar a capital, principalmente para com isso iludir o estrangeiro.

É a esse vezo que devemos a importação de um socialismo espúrio que ainda nos há de trazer dias aflitíssimos. Pelo que toca ao direito e legislação, é a esse desvario que devemos o não estudar as necessidades práticas de nossas gentes e entrarmos a copiar atabalhoadamente as leis estrangeiras, sem a menor adaptação a nosso atrasadíssimo estado de cultura, além de outros disparates ainda maiores.

No que se refere ao ensino público, é a nossas ilusórias fumaças de possuirmos enormes talentos, eminentíssimas capacidades, proficientíssimos mestres, que havemos de atribuir o desprezível estado de abatimento em que ele tem caído.

Para a mais elementar instrução primária, como para a mais elevada e superior, passando pela secundária e pelas aplicações técnicas, há muito deveriam os governos ter contratado no estrangeiro mestres de verdade. É principalmente o que nos falta. Disto havemos mister muito mais do que de fortes e poderosos couraçados.

Na literatura é a mania de tão bom como tão bom — que leva toda a gente a desprezar os assuntos nacionais, nossas tradições, nossos costumes, todos os aspectos em suma, d'alma do povo em todas as classes para andar a sonhar com os eslavos de Tolstói os escandinavos de Ibsen, os germanos de Nietzsche...

O mais elementar bom senso está a indicar que desses grandes mestres o que nos aproveita é o próprio exemplo, isto é, estudar a alma de nossas gentes, como eles estudaram as de seus patrícios.

No que se refere a finanças, basta mostrar que é onde a fátua pretensão que venho apontando tem acumulado maiores destroços. Todas essas loucuras de impostos sobre impostos, lançados às populações já exaustas; todos esses empréstimos sobre empréstimos, malbaratados em obras de luxo; essas exposições fantásticas e mentirosas; essas embaixadas de ouro; essas encomendas de formidandos navios de guerra, iguais ou maiores que os da Inglaterra, dos Estados Unidos e da Alemanha, não tem outra origem: aparentarmos o que não somos, — custe o que custar... É o cúmulo da insânia.

Quanto à vida econômica geral da nação, os desastres acumulados pela fatal moléstia são terribilíssimos. Desacostumou-se, com o sistema dum protecionismo criminoso, o povo do exercício natural das suas atividades econômicas conforme as zonas do país: numas o pastoreio, noutras a pesca, nestas a mineração; naquelas a lavoura do café ou do algodão, ou do tabaco, ou da cana, ou dos cereais; aqui os frutos arborescentes, além as plantas extrativas, etc. etc.

Em lugar disto, teima-se em criar uma indústria de estufa, que só serve para pagarmos caríssimo os mais grosseiros artefatos. São os nossos progressos...

Claro é que todas estas teses poderiam ser largamente esplanadas. Meu fito foi apenas formular, de leve, a lista dos prejuízos que sobre nós desencadeia a mais fatal de nossas moléstias, o nosso maior mal: a mania de passar pelo que não somos.


Janeiro de 1908.


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6 de agosto de 2013

O Sagrado e o Profano no século XVII

Juana Inés de La Cruz e Gregório de Matos: o sagrado e o profano no século XVII

Carlos U Pozzobon
  • Octavio Paz: Sóror Juana Inés de la Cruz – As armadilhas da fé –– Ed. Mandarim, 700 p. 1998.
  • Pedro Calmon: A vida espantosa de Gregório de Matos –– Ed. José Olympio, 1983.
  • Gregório de Matos – Obras Completas – Ed. Cultura, 1945 – 2ª edição
  • Obras de GM na Internet

Duas sumidades latino-americanas do século XVII, contemporâneas e opostas, que merecem muito mais do que um artigo comparativo, e que portanto não deveriam ficar esquecidas neste mundo de tantos títulos acadêmicos de doutorado em literatura comparada.

Juana Inés nasceu em 1648, na cidade do México; Gregório de Matos em 1636, em Salvador, Bahia. Morreram no mesmo ano de 1695. Ambos leram Quevedo (1580-1645), Calderon (1600-1681), Gôngora (1567-1627) e Cervantes (1547-1616) entre tantos escritores de seu tempo. Escreveram os mesmos tipos de poesia, mas Matos jamais publicou seus poemas e provavelmente nunca tenha ouvido falar de Juana Inés. Matos era filho de uma família rica da Bahia e se formou em advocacia em Portugal, mas não teve uma vida literária integrada, ao contrário, a poesia para ele não tinha nenhuma relação com as instituições.

Octavio Paz, em seu monumental trabalho de interpretação da obra de Juana Inés, desconhece totalmente Gregório de Matos. Para um intelectual do porte de Octavio Paz, a quem as comparações brilhantes e contundentes perfazem todos os seus artigos e ensaios, foi realmente uma ausência lamentável não conhecer Gregório de Matos. Mas o mesmo aconteceu no século XVII e se repete em nossos dias. Não seria abusivo supor que a Internet veio para produzir mais esquecimentos e perdas do que achados. Obras realmente dignas de figurar no panteão dos clássicos estão condenadas a ficarem no descuido dos blogs, dos sites e das indicações sem cliques das redes sociais pela impossibilidade de serem detectadas na avalanche de informações triviais.

Considerada a maior poetisa do século XVII, Juana Inés tornou-se a representação do gênio maldito condenado à renúncia e ao silêncio em uma época em que o totalitarismo tinha o estigma do poder associado à religião, em uma sociedade que recusava o Iluminismo nascente e vivia do dogma e do controle social pela ortodoxia da Contrarreforma.


Sobre Juana Inés

Juana Inês é um exemplo de pessoa incomum para sua época: a opção pela vida intelectual ainda jovem a inclinou para a vida religiosa — a única opção para uma mulher sem dotes econômicos na Nova Espanha. Abandonando a vida mundana, dedica-se inteiramente à combinação dos deveres monásticos com a vida intelectual. Poetisa, preparava os textos para os eventos públicos das festas religiosas, escrevia peças de teatro e mantinha intensa correspondência com os principais escritores espanhóis de seu tempo. Seu confessor, o jesuíta Antonio Nuñez de Miranda, disse sobre ela: “havendo conhecido (...) sua erudição singular com sua não pouca formosura, atrativos para a curiosidade de muitos que desejariam conhecê-la e seriam felizes cortejando-a, costumava eu dizer que não podia Deus enviar calamidade maior a este reino que permitir que Juana Inés se tornasse a personalidade do século”. (p. 15)

Inicialmente, Octavio Paz expõe a questão insolúvel entre a vida e a obra de um escritor: as lacunas, diferenças, e ao mesmo tempo a metafísica desse escritor representar o espírito de sua época. Se existem dificuldades para se conhecer a história pela obra literária, pois ambas são independentes, por outro lado é a obra literária que termina dando sentido à história. E a crítica de Octavio Paz sempre foi extremamente sensível a essas contradições. Toda obra literária está alicerçada em suas predecessoras. Ao mesmo tempo, todo escritor tem vínculos com seus contemporâneos. Paz enfatiza a correlação entre obras que são suas inspiradoras e ao mesmo tempo rivais. Uma obra tem também relação com seus leitores. Vendo por outro ângulo: são os leitores que interpretam a obra e que lhe dão sentido. Por outro lado, os leitores desempenham o papel de censores. “Em toda a sociedade funciona um sistema de proibições e autorizações — o terreno do que se pode ou não fazer. Há outra esfera, geralmente mais ampla, dividida também em duas zonas: o que se pode ou não dizer. As autorizações e as proibições abrangem uma vasta gama de matizes muito rica e que varia de sociedade para sociedade. Contudo, umas e outras podem dividir-se em duas grandes categorias: as expressas e as implícitas. A proibição implícita é a mais poderosa; é o que ‘por sabido se cala’, ao que se obedece automaticamente e sem refletir. O sistema de repressões vigente em cada sociedade repousa sobre esse conjunto de inibições que nem sequer exige a aprovação de nossa consciência”. (p. 18)

Um autor não lido sofre o pior tipo de censura de uma sociedade: a indiferença. Por isso, Paz acha que na sociedade moderna a luta contra a indiferença faz da poesia um ato de rebelião, uma vez que a arte e a poesia não se inserem na sociedade como valores racionais. A rebelião é assim conatural ao artista. Ele busca superar a indiferença, a pior de todas as censuras. “A poesia não é um gênero moderno; sua natureza profunda é hostil ou indiferente aos dogmas da modernidade: o progresso e a supervalorização do futuro... A poesia é, por natureza, extemporânea”.


Sobre Gregório de Matos

Por sua vez, Gregório de Matos era poeta nato, instintivo e culto. A população do recôncavo baiano no final do século XVII era de 35 mil pessoas, sendo que 20 mil eram escravos. Havia mais de cem engenhos de açúcar na região. Tanto Gregório como o padre Vieira tiveram irmãos que foram secretários de estado em Salvador em períodos diferentes.

Indo estudar em Coimbra (1652-1660) e vivendo em Portugal por 30 anos, retorna ao Brasil como versejador sem obra publicada devido mais à sua personalidade do que à impossibilidade de fazer isso em Portugal. Seus poemas eram presenteados a amigos na forma de manuscritos. Escrevia versos de encomenda e para presentear amigos, para celebrar nascimentos, falecimentos, casamentos e até ocorrências cotidianas. Sabemos que na Espanha de Gôngora, os poemas que acompanhavam os músicos eram chamados de ‘Cancioneiros’ porque eram escritos na forma pela qual hoje chamamos de ‘songbooks’, e circulavam como manuscritos. Sua fase mais profícua ocorre na Bahia (a partir de 1682), um local que não tinha imprensa por decisão da corte portuguesa, e onde a impressão de livros só veio a ocorrer depois da Proclamação da República. O que se conhece de sua obra foi salvo pelo último governador da Bahia (enquanto Matos ainda estava vivo), D. João de Lencastre, que sendo seu admirador, guardava seus versos. Depois da morte de Matos, o governador colocou um aviso solicitando uma doação de todos aqueles que o haviam conhecido em vida, ou que haviam sido presenteados com seus poemas. Diversos manuscritos foram doados anonimamente, principalmente porque muitos eram eróticos e licenciosos. Contudo, não se sabe se todos os poemas eram de fato de Gregório, ou se foram incluídos em seu repertório de sabujices. Por exemplo, a edição de 1945 de suas “obras completas” (tomo 1, p. 145, Edições Cultura) tem um poema em homenagem à morte do Padre Vieira (1608-1697), uma impossibilidade cronológica, pois o padre Vieira morreu dois anos depois de Matos. E a primeira reunião dos manuscritos só ocorreu em 1711, 16 anos depois de sua morte. Isso comprova que muitos versos apócrifos foram inseridos na sua coleção.

Gregório era o típico representante da boemia da colônia. Não tinha disposição para a burocracia do poder imperial. Era advogado, mas não se adaptava ao mundo jurídico e suas filigranas processuais. Seu mundo íntimo era a poesia. Acompanhado de uma viola a qual tangia com seus versos, como os repentistas de hoje, usava a poesia como forma de convívio, desafio, entretenimento, conquista amorosa e inspiração. Seu trato social não estava reservado à nobreza, da qual era parte por nascimento, mas às camadas populares. Mulherengo, festeiro, despojado e vivaz, obtinha pela palavra afiada o respeito que não conseguia na profissão de advogado. Por isso foi chamado de Boca do Inferno. Conta Pedro Calmon que já em Coimbra, onde ficou oito anos (1652-1660), “optara cedo pela sátira e pela audácia, as Musas bailando ao compasso da lira no seu palco vadio”. (p. 19)

Mancebo sem dinheiro, bom barrete,
medíocre vestido, bom sapato,
meias velhas, calção esfola-gato,
cabelo penteado, bom topete.
Presumir de dançar, cantar falsete,
jogo de fidalguia, bem barato,
tirar falsídia ao moço do seu trato,
furtar a carne à ama, que promete,
A putinha aldeã achada em feira
eterno murmurar de alheias famas,
soneto infame, sátira elegante,
Cartinhas de trocado para freira,
comer boi, ser Quixote com as damas,
pouco estudo, isto é, ser estudante.

Rimando barrete (não só o chapéu, como também em Portugal significando artifício para enganar, embuste) com esfola-gato, que não é senão a mesma coisa, já confessa no soneto sua personalidade de estudante boêmio.

Foi acusado de plagiar Gôngora por pura maldade, posto que seu maneirismo tinha ares do espanhol celebrado. Quem tem talento não precisa dos outros senão para estudo, mas já as más línguas da época destilavam sua infâmia movidas pelo ciúme provocado pelo gênio. Incontido, cortejando as freiras nos muros dos conventos nas noites sem lua, “fugindo dos quadrilheiros nos labirinto dos palácios confusos” (p. 24), acabou sendo preso e cumpriu pena em sua casa. Era um existencialista “avant la lettre”, uma personalidade que somente seria entendida e correspondida com a liberdade do século XX.

Bacharelou-se e deixou Coimbra, maldizendo em versos a cidade, para voltar a Lisboa e casar 4 meses depois de formado (agosto de 1661). Naquela época, havia um curioso ritual de casamento. Primeiro, era preciso testemunhas de solteiro. Depois, um atestado cartorial que comprovasse a limpeza de sangue como garantia de súdito da corte. Por limpeza de sangue se entendia a análise do parentesco até os avós, para determinar se havia sangue judeu ou mouro ou africano. Somente então era concedida a licença de casamento. Um procedimento que os nazistas haveriam de imitar 300 anos depois. Comprovado que noivo e noiva tinham “sangue cristão dos quatro costados”, a autorização era emitida. Com o casamento, segue-se a nomeação para o cargo de juiz de fora em uma vila alentejana. Era o início de carreira que o levaria logo depois a juiz de cível em Lisboa.

Sua carreira não foi fácil, e logo o espírito inadaptado às funções jurídicas iria pesar sobre seus ombros de forma irremediável. Com a notícia na Bahia de seu desempenho, a Câmara Municipal houve por bem nomeá-lo procurador na corte, cargo que aceitou pelo ordenado, mas logo com o cargo vieram os encargos, e a burocracia política lhe causava tal transtorno que não foi capaz de fazer qualquer coisa para atender aos reclamos da Bahia: foi demitido.

Ficou viúvo aos 42 anos (havia casado com 25 anos), e perdeu o jeito de juiz grave, mandou às urtigas a circunspeção e “desmandou-se, na decadência prematura que o faria miserável, entre os mais desafortunados, e invejado entre os maiores poetas” (João Calmon, p. 37).

Sua fama veio rápida pela agilidade como repentista. No século XVII, “glosar motes” significava dizer uma estrofe como motivo da obra cujo conteúdo desenvolve a ideia sugerida pela estrofe. Um testemunho de sua perícia escreveu: “Conhecemos aqui em Lisboa um homem que glosava motes (por dificultosos e paradoxais que fossem), sem deter-se mais do que quando corria a mão pelo bigode, torcendo-o na ponta”. Por exemplo, um marquês propôs o seguinte mote: “A mais formosa que Deus”. O que fez o Boca do Inferno?

Com duas donzelas vim
ontem de uma romaria;
uma feia parecia,
outra era um serafim.
E vendo-as eu assim
sós, sem os amantes seus,
perguntei-lhes: anjos meus
quem vos pôs em tal estado?
Disse a feia, que o pecado,
a mais formosa, que Deus.

Em Portugal, o Boca do Inferno terminou “queimando a fita”. Para se livrar dele, a corte propõe que vá ao Rio de Janeiro resolver um caso cabeludo de desmando comandado pelo régulo local. Recusou a empreitada temerária, pois tinha aversão ao poder real e terminou sendo deportado de volta para a Bahia, com um cargo recentemente criado de desembargador da eclesia da arquidiocese. Seus dois irmãos tinham funções na corte e não recusaram ir em seu auxílio.


Breve retrato da Nova Espanha (México)

Em sociedades fechadas com valores hostis à liberdade, a força da censura vem dos leitores atentos a qualquer transgressão. No México do século XVII, então chamado de Nova Espanha, a censura era a Inquisição. Em um de seus manuscritos Juana Inés deixa claro: “Não quero problemas com a Inquisição” (p. 19). Sua obra era assim rodeada de silêncios: aquilo que não podia dizer. “A palavra de Juana Inés constrói-se frente a uma proibição, que se sustenta numa ortodoxia, encarnada em uma burocracia de prelados e juízes” (OP, p. 19). Paz compara a atmosfera da Inquisição com os conhecidos totalitarismos do século XX. Trata-se de uma ponte importante: de um lado a ortodoxia católica, de outro, a ortodoxia soviética. Ambas desconfiavam do talento, criavam censuras e cortes.

O México é um país cuja história começa como asteca, é conquistado e se transforma em Nova Espanha, e depois, em 1821, na Independência se redescobre México outra vez. Para Paz a história é uma obsessão entre a grandeza e o esquecimento. Os povos têm uma relação com a história como a mente humana com a censura psíquica: ambos usam o esquecimento para evitar os fatos desagradáveis de seu passado. Para os mexicanos, a Nova Espanha é um período negro do México que se “reconquista” na Independência, isto é, na restauração. Isto acontece porque a Idade Moderna foi a negação das crenças que inspiraram a Nova Espanha. Se no passado colonial a crítica era tolhida pela ortodoxia, na modernidade ela foi a sua fundadora. A crítica tem um significado que vai mais além do que simplesmente imaginamos: é a liberdade de pensar, a liberdade de agir e paradoxalmente, uma religião da mudança. Em outras palavras, a crítica da religião transforma-se em uma religião da crítica, o período inaugurado pelo marxismo. Da Contrarreforma ao marxismo temos um período que se coagula com uma ideologia feita para barrar as mudanças, para deter a história, impedir o novo, até a insurgência permanente em busca desse novo na forma de uma nova sociedade e não no aperfeiçoamento da antiga, levando ao seu desmoronamento e retorno ao passado de opressão e silêncio. Por isso a sensibilidade de Octavio Paz em tratar o século XVII com o legado do totalitarismo do século XX.

Para analisar o contexto da época de Inés de La Cruz, Paz reconstrói as vertentes intelectuais, os poetas e escritores, analisa e compara o barroco com o romantismo, o transplante da cultura espanhola e europeia para a nova terra.

Uma comparação entre as duas obras revela um espetáculo de semelhanças. Tanto Gregório como Juana Inés escreviam o tipo de poesia da época: redondilhas (estrofe de 4 versos, o primeiro rimando com o último e o segundo com o terceiro); endeixas (composição de 4 versos de 5 sílabas); décimas, oitavas, silvas (versos de dez sílabas alternados com seis sílabas), e sonetos. Embora tenha ficado famoso por sua poesia erótica e crítica, Gregório de Matos também tem uma obra sacra e lírica. Mas suas vidas não se cruzaram intelectualmente. A única ponte entre ambos foi o Padre Vieira, mas apenas em seus sermões.

Juana Inés viveu a vida conventual. Correspondia-se com “meia Espanha”, mas não sabemos se teve contato com algum poema apócrifo de Matos. Sabemos que teve correspondentes em Portugal, e também sabemos que Matos cultivou admiradores justamente na fase em que Juana Inés despontava como talento.

O desconhecimento de Gregório de Matos sempre intrigou a minúscula elite literária brasileira que o homenageou. Augusto de Campos em um artigo lamenta que Borges não o tenha conhecido. Mas Borges também não conhecia a obra de Paz, segundo confessou em entrevista a Selden Rodman (The Tongue of The Faling Angels, 1972) até os anos 70. Por que deveríamos supor que Gregório teria conhecimento de Juana Inés se Borges não leu Paz? Aliás, Borges desconhecia a literatura latino-americana e brasileira. Seu universo literário era bem mais restrito do que se imagina, segundo nos conta Estela Canto (Borges à Contraluz, Iluminuras, 1991). O inverso, entretanto, não é verdadeiro, pois Paz, admirador da obra de Borges, afastou-se depois que Borges publicou um poema, como palestrante convidado de uma Universidade do Texas, em que homenageava a separação do Texas do México, um episódio até hoje dolorido para os mexicanos.

Tanto quanto no século XX, os escritores se relacionavam indiretamente lendo os mesmos autores, que serviam de inspiração às suas obras. No século XVII, as pontes eram Cervantes, Gôngora, Quevedo, Calderon e diversos autores comuns, além dos antigos, extremamente estudados e citados em suas obras, pois o século tinha uma deferência especial com o passado greco-romano, a filosofia tomista e o neoplatonismo. Paz diz que da língua portuguesa, Juana Inés, além de Vieira, teria lido Camões, Francisco Manuel de Melo (1606-1666) e alguns outros. Não se sabe quem seriam esses “alguns outros”, mas ela tinha uma correspondente em Lisboa.


Biografia de Juana Inés

Esta tarde, mi bien, cuando te hablaba,
como en tu rostro y tus acciones vía
que con palabras no te persuadía,
que el corazón me vieses deseaba;

y Amor, que mis intentos ayudaba,
venció lo que imposible parecía:
pues entre el llanto, que el dolor vertía,
el corazón deshecho destilaba.

Baste ya de rigores, mi bien, baste;
no te atormenten más celos tiranos,
ni el vil recelo tu quietud contraste

con sombras necias, con indicios vanos,
pues ya en líquido humor viste y tocaste
mi corazón deshecho entre tus manos.

Juana Inés de La Cruz nasceu Juana Ramirez ou Juana Ramirez de Asbaje, provavelmente em 2 de dezembro de 1648 em um pequeno povoado no interior do México. Era filha natural de Pedro Asbaje, de quem nunca ouviu falar. Razões misteriosas levaram sua mãe a desposar o capitão Diego Ruiz Lozano quando ela era uma menina. Especula-se que o pai teria abandonado o lar, e esse traumatismo seria a principal razão para Juana Inés lançar-se no caminho das letras. Em 1656 é enviada para viver com parentes na Cidade do México depois da morte do avô. Sua mãe já constituíra nova família e Juana Inés começou a conviver com seus co-irmãos.

Vivendo os primeiros anos com a mãe e o avô, Juana Inês aprendeu a ler e escrever em casa, como era o costume da época, e foi fortemente influenciada pela paixão do avô pelos livros. Mas esse mundo era um mundo masculino, mundo de clérigos e letrados. A função dos livros era uma compensação pela dupla falta original: a do nascimento ilegítimo e a ausência do pai; substituição da presença dominante do intruso padrasto e, sobretudo, a sublimação que resolve seu conflito interior.

“O mundo dos livros é composto de eleitos no qual os obstáculos materiais e as contingências cotidianas se afinam até evaporarem quase que totalmente. A verdadeira realidade, dizem os livros, são as ideias e as palavras que lhes dão significado: a realidade é a linguagem. Juana Inés habita a casa da linguagem. Essa casa não está povoada por homens e mulheres, mas por umas criaturas mais reais, duradouras e mais consistentes que todas as realidades e todos os seres de carne e osso: as ideias. A casa das ideias é estável, segura, sólida. Nesse mundo cambiante e feroz, existe um lugar inexpugnável: a biblioteca. Nela, Juana Inés encontra não só um refúgio como um espaço que substitui a realidade da casa com seus conflitos e fantasmas. A decisão de vestir o hábito, anos mais tarde, fica mais compreensível se pensarmos nesse descobrimento infantil. O convento é o equivalente da biblioteca.... A cela-biblioteca é a concha materna e nela se fechar é voltar ao mundo de origem. O autoerotismo infantil é o sucedâneo da situação pré-natal paradisíaca na qual não existe distinção entre o sujeito e o objeto. A leitura toma o lugar do autoerotismo: a confusão entre o sujeito e objeto revive, transmutada na passividade da leitura. Nela, o sujeito pode por fim se estender e se balançar como um objeto; na leitura, o sujeito alternadamente se contempla e esquece de si próprio, se olha e é olhado pelo que lê. Tempo rítmico da cela e da biblioteca, tempo que revive o berço ninado pela maré do existir”. (OP, p. 125)

Em 1669 ingressa no Convento São Jerônimo, aos vinte e um anos de idade, depois de 12 anos sozinha na casa de parentes. Dessa fase pouco se sabe, apenas que cresceu, brilhou nas tertúlias pelo conhecimento adquirido, e se transformou em uma adulta bela e culta. Apresentada à corte dos novos vice-reis do México, logo caiu nas graças da marquesa de Mancera, vice-rainha com nome de batismo de Leonor Carreto. Em pouco tempo tornaram-se amigas e a influência de Juana Inés nunca mais deixou de crescer junto à marquesa. “Juana Inês era uma companhia agradável, serviçal e discreta; a essas considerações utilitárias e mundanas somavam-se o assombro diante de um prodígio de inteligência e saber; e ao assombro juntava-se a piedade que inspira uma jovem sozinha no mundo”. (p. 138)

No soy yo la que pensáis,
sino es que allá me habéis dado
otro ser en vuestras plumas
y otro aliento en vuestros labios.

Em um poema, aos 18 anos de idade, chamado ‘Empeños de una casa’, retrata-se com as seguintes palavras:

Inclinéme a los estúdios
Desde mis primeros años
Com tan ardientes desvelos,
Con tan ansiosos cuidados
Que reduje a tiempo breve
Fatigas de mucho espacio.
Conmuté el tiempo, industriosa,
A lo intenso del trabajo,
De modo que em breve tiempo
Era El admirable Blanco
De todas las atenciones,
De tal modo, que llegaron
A venerar como infuso
Lo que fue adquirido Lauro.
Era de mi pátria toda
El objeto venerado
De aquellas adoraciones
Que forma el común aplauso;
Y como lo que decía,
Fuese bueno o fuese malo,
Ni el rostro lo deslucía,
Ni lo desairaba el garbo,
Llegó la superstición
Popular a empeño tanto,
Que ya adoraban deidad
El ídolo que formaron.
Voló la Fama parlera,
Discurrió reinos extrãnos,
Y en la distancia segura
Acreditó informes falsos.
La pasión se puso anteojos,
De tan egañosos grados,
Que a mis moderadas prendas
Agrandaban los tamaños. (OP, p. 147)

O grande mistério de entrar para um convento alguém já reconhecida por suas qualidades intelectuais, nunca foi suficientemente compreendido. Falta de dote, rejeição à vida de casada, conflitos pessoais, etc., nunca foram suficientes para a compreensão de sua atitude. Principalmente quando se descobriu que Juana Inés inicialmente entrou para a Ordem das Carmelitas como noviça, de onde saiu três meses depois arrependida do rigor das regras. Retorna um ano depois para o convento de São Jerônimo para nunca mais sair. Havia conflitos externos que seguramente pesaram fortemente na renúncia.

“A maioria dos críticos católicos pensa que Juana Inés escolheu a vida religiosa por autêntica vocação, quer dizer, porque ouviu o chamado de Deus. É evidente que Juana Inés era uma católica sincera. Não está em jogo sua ortodoxia, mas esquecer que nessa época a vida religiosa era uma ocupação como as outras seria esquecer muito. Os conventos estavam cheios de mulheres que haviam vestido o hábito não por responder a um chamado divino, mas só por considerações e necessidades mundanas; seu caso não era distinto dos das jovens que hoje procuram uma carreira que ao mesmo tempo lhes dê sustento econômico e respeitabilidade social. A vida religiosa no século XVII era uma profissão... As mulheres vestiam os hábitos porque, seja por acertos familiares, falta de fortuna ou por qualquer outra razão não podiam casar-se; também as que estavam sozinhas no mundo e sem um apoio masculino”. (OP, p. 156-157)

Em viagem que fiz ao sul do Brasil de carro em 2009/2010, presenciei 3 conventos de freiras que fecharam por inadequação das ordens religiosas ao mundo tecnológico: o primeiro em Ascurra, na região de Pomerode (SC); o segundo em Nova Veneza, na região de Criciúma (SC); e o terceiro em Arroio Grande, distrito de Santa Maria (RS). Como colégios situados em locais pequenos, entraram em declínio e fecharam as portas porque as famílias migraram para centros maiores, e porque já não possuíam o mesmo tipo de atividade econômica dos séculos XIX-XX.


A cidade do México no século XVII

No final do século XVII, havia na cidade do México 29 conventos de frades e 22 de freiras. A população da cidade era de uns 20 mil espanhóis e criollos, e uns 8 mil índios, mestiços e mulatos. Era, portanto, um século religioso, pois um convento era uma entidade econômica: servia de colégio, hotel, local de estudo de música, teatro, artes e ofícios como a costura, o bordado, e restaurante com cozinha. Dispunha de criação de animais, horta, cultivo de frutíferas, biblioteca e capela. As ordens religiosas possuíam grandes propriedades de terras que arrendavam. Aceitavam investimentos e pagavam uma taxa de 5% de juro anual. Eram instituições ricas, embora os frades e freiras fossem proibidos da ostentação da corte.

As freiras levavam para o convento suas empregadas e escravas. Na média havia 3 criadas para cada freira. As celas individuais eram tão grandes que poderiam abrigar uma família inteira. Era um pequeno apartamento para os dias de hoje. No São Jerônimo, havia um segundo andar, como se fosse um loft. Uma cela podia ser vendida ou alugada. A adesão a um convento implicava no pagamento de um dote. A administração era escolhida por eleição a cada 3 anos. “A autoridade máxima era a prioresa ou abadessa, assistida por uma vigária, uma ou várias professoras de noviças, uma porteira mais velha, duas ou mais ‘corretoras’ (vigilantes), uma procuradora (economista), algumas ‘definidoras’ que resolviam casos duvidosos, uma contadora (tesoureira), uma arquivista e, em alguns conventos, uma bibliotecária. Os cargos eram rotativos, mas havia reeleição” (OP, p. 178). Sóror Juana foi arquivista e contadora durante 9 anos.

Havia rivalidades, intrigas, associações para finalidades específicas, querelas, antipatias e até rebeliões. Muitos problemas eram tratados com a intervenção de autoridades eclesiásticas externas. A violência tinha lugar, pois castigos e até punições severas eram praticados. As freiras não saíam, mas recebiam visitas desde a alta corte até as figuras distintas do clero e da sociedade. Em geral, depois dos rituais religiosos, as freiras recebiam os participantes nos locutórios, locais onde se travavam grandes tertúlias. Além disso, havia eventos não religiosos, como cantos, bailes, teatros.

A rotina de um convento começava com as rezas da ‘prima’ às seis da manhã. Na fase anterior à medição do tempo por relógios, as horas tinham esses nomes estranhos. Às sete horas havia a missa com os coros; às oito, o café da manhã: pão, ovos, leite, manteiga. Às nove, as rezas da ‘terça’ (terceira hora depois das seis da manhã). Então começavam a trabalhar, seja na sala comum dos trabalhos, como em suas próprias celas, dependendo dos critérios e licenças da direção. Ao meio-dia as rezas da ‘sexta’, depois o almoço. Às 3 da tarde correspondia à ‘nona’, mais rezas e um intervalo de descanso seguido de um lanche. Às sete vinham as ‘vésperas’ seguidas de um jantar, um intervalo de recreação, e terminam nas ‘completas’, novamente rezas antecedendo o dormir. Havia os jejuns da Igreja, e às sextas-feiras havia o ‘capítulo’, uma reunião para discutir assuntos disciplinares e as penitências impostas às faltantes. Havia castigos que variavam de rezas até a prisão perpétua no convento. Evidentemente que as penas eram em geral leves. Mas surpreendentemente as comunhões não eram obrigatórias, salvos nas grandes festas, o que significa que a confissão não deveria ser tão recorrente.

Com tal monotonia de vida, Paz observa que não era “extraordinário o fato de algumas freiras se abandonarem a piedosas e cruéis excentricidades, mas de não terem enlouquecido. Para certas naturezas pouco resistentes, o tédio e as longas horas de ócio fomentavam delírios mórbidos, visões fantasmagóricas, e não poucas vezes pesar e horror por suas irmãs e por elas próprias”.

“Para a maioria das freiras a vida conventual era terreno propício às fofocas, intrigas e conjurações – todas as variedades da paixão cabalista, como chamava Fourier a esse amor pelo poder que nos leva a formar camarilhas e bandos. Esta paixão, diz o grande utopista, ‘é um entusiasmo calculador’. A união de cálculo e ambição é o veneno secreto que, conjuntamente, anima e corrompe a vida das associações fechadas – a Corte, a Igreja, a Milícia, a Universidade, o Partido, a Academia. A paixão cabalista, aliança entre a ambição e inveja, sobretudo em sua forma vulgar, a politicagem, busca para se satisfazer, a cumplicidade dos demais. O preço é alto: para se servir dos outros, o ambicioso não tem mais remédio a não ser servi-los. Juana Inés queixou-se muito das intrigas e invejas de suas irmãs: é quase certo que sua renúncia às letras tenha sido o resultado de uma cabala clerical contra ela. Mas ela também dominou esta arte feita de talento, dissimulação, paciência e sangue frio. Sobreviveu a mais de vinte anos de vida conventual e intrigas eclesiásticas e palacianas, não só graças às suas qualidades morais e intelectuais, como por sua habilidade. Suas relações com o palácio vice-reinal revelam um tino político nada comum. Como as outras mulheres de sua família, Juana Inés tinha uma natureza elástica e flexível, teimosa e sinuosa, deferente mas obstinada” (OP, p. 185-186).


A obra de Juana Inés

Este amoroso tormento
que en mi corazón se ve,
sé que lo siento, y no sé
la causa porque lo siento. (...)

Siento mal del mismo bien
con receloso temor,
y me obliga el mismo amor
tal vez a mostrar desdén.

Ya sufrida, ya irritada,
con contrarias penas lucho:
que por él sufriré mucho,
y con él sufriré nada.

No sé en qué lógica cabe
el que tal cuestión se pruebe:
que por él lo grave es leve,

y con él lo leve es grave. (...)
Si acaso me contradigo
en este confuso error, (...)
aquél que tuviere amor
entenderá lo que digo.

A obra de Juana Inés de la Cruz é conhecida apenas parcialmente, e sabe-se que uma parte muito pequena foi resumida em teatro (Los empeños de uma casa, Amor es mas labirinto); a lírica (Poesia Amorosa, Primer Sueño). Sua correspondência era intensa com “metade” da Espanha. Ela era uma escritora compulsiva. O padre Calleja, com quem se correspondeu por mais de 20 anos, dizia que era impossível vencê-la nos versos e nas construções alegóricas. Sua obra conhecida é Neptuno Alegórico, Fama y obras Póstumas, e A Carta Atenagórica.

Neptuno Alegórico refere-se à preparação da chegada dos vice-reis ao México. Trata-se de uma obra que envolvia desde a saudação, a leitura de poemas e vilancicos (tipo de composição festiva), a concepção arquitetônica do arco do triunfo (um costume da renascença especialmente cultuado na imponência espanhola), e discursos de apresentação.

Na Carta Atenagórica, Sóror Juana escreve uma crítica ao padre Antonio Vieira, de quem lera os sermões. É uma homenagem à sabedoria de Ateneia. Ateneia de Athena, a deusa grega da sabedoria. Vieira nunca soube da crítica de Juana Inés, que apareceu nos últimos dias de novembro de 1690 quando Vieira já estava exilado em Salvador. O Sermão do Mandato era predicado na quinta-feira, na cerimônia do lavatório, cujo tema era “amai-vos uns aos outros”, um versículo de São João. Vieira escreveu 3 ou 4 sermões em ocasiões diferentes. O tema do amor era natural na poesia, mas na prosa revela-se uma crítica à interpretação do evangelho. O que ocorreu com Juana Inés foi ser o alvo da disputa pelo poder entre prelados, algo que somente podemos avaliar comparando com a ortodoxia marxista do século XX e o destino de diversos revolucionários caídos em desgraça sob a acusação de revisionismo, reformismo, dogmatismo, sectarismo ou qualquer outro desvio ideológico usado como instrumento de luta pelo poder.

A Carta Atenagórica foi a perdição de Juana Inés. A crítica não era perdoada naquela época; somente podia exercê-la quem estivesse protegido pelo poder. Os acontecimentos que vieram a se precipitar sobre Juana Inés foram turbinados pela inveja de seu talento, um veneno que permanece atuando até hoje nos círculos artísticos.

Detente, sombra de mi bien esquivo,
imagen del hechizo que más quiero,
bella ilusión por quien alegre muero,
dulce ficción por quien penosa vivo.

Si al imán de tus gracias, atractivo,
sirve mi pecho de obediente acero,
¿para qué me enamoras lisonjero
si has de burlarme luego fugitivo?

Mas blasonar no puedes, satisfecho,
de que triunfa de mí tu tiranía:
que aunque dejas burlado el lazo estrecho

que tu forma fantástica ceñía,
poco importa burlar brazos y pecho
si te labra prisión mi fantasía.

Exemplo de soneto em que se acusou Juana Inés de licenciosidade:

Esta tarde, mi bien, cuando te hablaba,
como en tu rostro y tus acciones vía
que con palabras no te persuadía,
que el corazón me vieses deseaba;

y Amor, que mis intentos ayudaba,
venció lo que imposible parecía:
pues entre el llanto, que el dolor vertía,
el corazón deshecho destilaba.

Baste ya de rigores, mi bien, baste;
no te atormenten más celos tiranos,
ni el vil recelo tu quietud contraste
con sombras necias, con indicios vanos,
pues ya en líquido humor viste y tocaste
mi corazón deshecho entre tus manos.


O Padre Vieira

Curiosamente o padre Antonio Vieira conheceu Gregório de Matos. Mas não sabemos se tiveram tertúlias em comum, pois eram personalidades diferentes. Vieira não era literato, nem mesmo poeta, e muito menos boêmio, como Gregório de Matos.

O Padre Vieira (1608-1697) nasceu em Lisboa e morreu em Salvador. Veio para o Brasil ainda criança, com o pai enviado de Portugal. Com a invasão holandesa de Salvador em 1624, refugiou-se no interior do recôncavo, passando a conviver com os índios. Logo aprendeu o Tupi e se interessou pelos povos indígenas. Teve uma vida cosmopolita, privilegiada pelo seu intelecto e capacidade de oratória. Mas suas ideias se chocavam com sua época, da mesma forma que Juana Inés e Gregório. Vieira defendeu a entrega de Pernambuco aos holandeses quando da segunda invasão (1630-1654) porque a manutenção do esforço de expulsão custava dez vezes mais do que os benefícios de colonizar a região. Era uma posição inaceitável para Portugal. Vieira também defendia os cristãos novos, no caso os judeus convertidos, contra a sanha da Inquisição que só conferia títulos e empregos de primeira linha para os que demonstrassem a pureza de sangue. Isso lhe colocou na mira da Inquisição. Vieira se defendia pelos altos contatos que tinha na corte portuguesa, estratégia usada também por Juana Inés. Mas seu brilho intelectual produzia ciúmes entre seus pares do clero. Além disso, contornava o poder eclesiástico solicitando favores diretamente ao rei.

Vieira ordenou-se sacerdote em Olinda em 1634, em plena ocupação holandesa. Com a restauração da independência de Portugal do domínio da Espanha em 1640, vai para Lisboa e ingressa na carreira diplomática. Conquistou a confiança de D. João IV, rei de Portugal, por sua personalidade vivaz e brilhante retórica. Isto lhe permitiu contornar suas dificuldades com as patrulhas ideológicas de seu tempo, especialmente quando defendia os índios contra os colonos escravagistas, a quem acusava de maus tratos e comportamento arrogante e truculento, especialmente quando esteve pregando no Maranhão, entre 1652 e 1661. Era hostilizado pelos dominicanos (Vieira era da ordem dos jesuítas), que eram os membros do Santo Ofício. Ao defender abertamente os índios contra a exploração, foi expulso pelo vice-rei do Grão-Pará, retornando a Lisboa. O Brasil já demonstrava, desde o descobrimento, sua dualidade social e sua total incapacidade de coesão e inclusão social que permanece até hoje. O índio era diferente e não se integrava ao império, pois era visto apenas como escravo no sentido econômico e objeto sexual, na moralidade relapsa do amancebamento generalizado até mesmo de missionários que, isolados, abandonavam os votos de castidade em troca de um sem número de concubinas índias, deixando-se conduzir por uma vida de preguiça e luxúria, tal qual os índios. Era nessa atmosfera de lassidão moral que missionários do tipo Manoel da Nóbrega, Anchieta e, um século mais tarde, Vieira tinham de trabalhar.

Vieira caiu em desgraça com a ascensão de D. Afonso VI ao trono de Portugal. Defendendo a teoria do quinto império (depois do Mesopotâmico, Persa, Grego e Romano), Vieira dizia que estava reservado a Portugal o grande destino de dominar o mundo. Vieira foi novamente hostilizado e refugiou-se em Roma onde permaneceu por seis anos. Sua oratória mais uma vez o tornou capaz de cativar altas personalidades, como a rainha Cristina da Suécia, exilada em Roma, e até o papa. Vendo sua influência ascender, denunciou os múltiplos abusos da Inquisição portuguesa ao papa, fazendo com que este proibisse a ação do Santo Ofício entre 1675 e 1681. Regressou a Lisboa e, incompatibilizado com a corte, decidiu regressar ao Brasil em 1681, onde passou a dedicar-se a reunir seus sermões e mais de 500 cartas, que coligiu escrevendo aos destinatários. Como Gregório de Matos, que voltou para o Brasil um ano depois, em 1682, em fase altamente poética e mundana, não sabemos quantas vezes se encontraram em eventos oficiais, pois não tinham afinidades, mas estiveram juntos na mesma cidade até a expulsão de Gregório de Matos de Salvador.


A fase final de Gregório de Matos

Na Bahia, veio acompanhado de seu fiel seguidor, Tomas Pinto Brandão, companheiro de trovas e libertinagem. Salvador era um fervilhar de mazombos (filhos de portugueses), mulatos, mamelucos e brancos. Gregório achava os mulatos uns mal-educados, mas tinha predileção especial em sua verve poética pelas mulatinhas. Sua alegoria da miscigenação racial pode ser vista neste poema:

Quais são seus doces objetos? .... Pretos.
Tem outros bens mais maciços? ... Mestiços.
Quais desses lhe são mais gratos? .... Mulatos.
Dou ao Demo os insensatos,
dou ao Demo o povo asnal,
que estima por cabedal,
pretos, mestiços, mulatos.

Compare com os versos semelhantes (pelo período histórico, mas completamente diferentes pelo objeto lírico) de Juana Inés:

Y com sus ecos suaves,
                    las Aves;
y com sus dulces corrientes,
                     las Fuentes;
y com cláusulas de olores,
                     las Flores;
y com sus verdes gargantas,
                     las Plantas...

Juana Inés fazia poesia do divino, do sensível, enquanto Gregório era um crítico social e mundano. A poesia obscena de Gregório tem uma extraordinária importância, pois permite uma análise dos costumes, do erotismo, dos desejos e, numa sociedade piedosa, das aberrações sexuais da época. Seu anticlericalismo fornece os elementos para o entendimento da hipocrisia social comprovada na transgressão dos votos de castidade dos clérigos, da obsessão sexual pela mulata. Sua poesia é obscena e complexa, com construções que nem sempre se entendem nos dias atuais. Sua obra satírica abrange um volume inteiro. Escreveu dezenas de poemas para celebrar cornos e putas, seduções e conquistas, pornografia e masoquismo, como, por exemplo, o soneto à mulata Vicência que amava três sujeitos ao mesmo tempo:

Com vossos três amantes me confundo,
mas vendo-os com todos cuidadosa,
entendo que de amor e amorosa
podeis vender amor a todo mundo.
Se do amor vosso peito é tão fecundo,
E tendes esta entranha tão piedosa,
Vendei-me de afeição uma ventosa,
que é pouco mais que um selamin sem fundo.
Se tal compro, e nas cartas há verdade,
Eu terei, quando menos, trinta damas,
que infunde vosso amor pluralidade.
E dirá, quem me vir com tantas chamas,
que Vicência me fez a caridade,
porque o leite mamei das suas mamas.

Selamin é palavra inexistente em nosso léxico atual, mas em Portugal foi uma medida de 1,725 litros, utilizada para cereais e secos. Mas o selamin sem fundo era uma quarta (isto é uma bandeja que se mediam 3,4 litros de um cereal, que com o fundo virava metade do volume, um selamin, sendo por isso uma expressão para trapaça, para alguma coisa que vale só a metade. Gregório é mais complexo do que se imagina. Entender sua poesia requer dedicação através da pesquisa nem sempre contemplada. E deixo ao leitor a interpretação de “vendei-me de afeição uma ventosa”.

Sua decadência ocorre com a chegada de uma triste figura em Salvador: o jovem filho do governador da Bahia, chamado Câmara Coutinho, de quem Gregório não gostava escarnecendo-o frequentemente em versos. O governador é substituído em 25/3/1694 por João Lencastre, considerado amigo de Gregório. Mas o filho do ex-governador logo se investe em disputas poéticas com o Boca do Inferno. E deve ter levado uma surra lírica. Além disso, houve ciúmes de mulheres que devem ter provocado ainda mais a ferocidade fescenina de ambos. Neste ponto, Pedro Calmon esboça sua tese muito discutível: a disputa evoluiu para uma conspiração contra a vida de Gregório. O governador soube da contenda e o mandou esconder-se. Gregório não só desdenhava seu rival, como ignorava a trama que se urdia contra ele. João Lencastre não deixou por menos: para salvar a vida do amigo, mandou prendê-lo e desterrá-lo em Angola.

A hipótese não convence, e procura por um caminho contemporizador: achar uma solução que preserve a vida de um condenado com sua expulsão da Bahia. Tudo indica que seu desterro foi uma medida política para se livrar de um inconveniente. Recém-empossado, João Lencastre poderia colocar em risco seu cargo se a sociedade protegesse o Boca do Inferno. Ou até mesmo desprestigiá-lo por ter de julgar um homem de letras com base na coleta de poemas apócrifos e facilmente rechaçáveis pelo acusado, provocando embaraços e reprovações da elite de quem ele dependia para seu projeto de poder. Se o seu caso fosse entregue à Inquisição, o Padre Vieira – um ex-indiciado – poderia interceder em favor do amigo e complicar ainda mais o resultado.

Como Juana Inés, que contornou a Inquisição pela abjuração, Gregório de Matos foi expulso da Bahia e mandado em degredo para a África depois de ficar detido à espera de um navio. Escreveu um poema que serviria para Juana Inés e reflete o estilo da época barroca:

Que falta nesta cidade? ..... Verdade
Que mais por sua desonra? ..... Honra.
Falta mais que se lhe ponha? .... Vergonha.
O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,
numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha

Passou pouco tempo na África, por se envolver na intermediação de uma rebelião local de soldados logrados com a promessa de soldo pelo governador de Luanda. Conseguiu o perdão do degredo e retornou ao Brasil, porém foi obrigado a se estabelecer em Recife, longe da Bahia. Ali, acometido por uma doença, faleceu poucos meses depois em novembro de 1695.

O legado de Gregório de Matos continua a ser explorado. Algumas correntes literárias classificam-no como a primeira brasileirização de nossas letras. O Boca do Inferno seria o nosso ponto de partida do idioma nacional. Exatamente pela sua personalidade avessa ao poder, desconfiada das instituições coloniais, repulsiva à hipocrisia e privilégios da Corte, ele usou em seus poemas os termos africanos e indígenas que circulavam nas vias públicas da Bahia.

“Quem intrometeu o linguajar caboclo na fala poética, quem arrebanhou na senzala as mulatas, quem introduziu na cantiga o cotidiano, quem fez de sua arte o protesto, não do europeu que se revolta, mas do brasileiro que se reconhece, quem pediu e vociferou, senão ele, por sua terra e sua gente?

“Escutaram-no os eruditos, que lhe guardam os apógrafos – como antes da imprensa se conservavam os cartapácios nas estantes monacais, e os estudantes acabaram reproduzindo-lhe a chocarrice, esquecendo o autor. Reviveu pela memória coletiva – revelada pelas variantes joviais de sua produção caudalosa” (Pedro Calmon, p. 209-210).

Excetuando a Europa, e especialmente a Espanha barroca, nas Américas Gregório só teve concorrente em Juana Inês no México. Foram os dois grandes gênios poéticos do segundo século após o descobrimento.