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11 de novembro de 2017

Por Que Não Sou Um Conservador

Friedrich A. Hayek

Do livro Os Fundamentos da Liberdade.

“Em todos os tempos sempre foram raros os verdadeiros amigos da liberdade, e os triunfos desta se deveram a minorias que prevaleceram associando-se a grupos cujos objetivos frequentemente diferiam dos seus; e essa associação, que é sempre perigosa, algumas vezes se revelou desastrosa, ao propiciar aos adversários justos motivos de oposição.”

LORD ACTON


1. Conservadorismo Não Oferece Nenhum Objetivo Alternativo

Numa época em que a maioria dos movimentos considerados progressistas advoga uma invasão ainda maior da esfera da liberdade individual, aqueles que prezam a liberdade tendem a resistir a essa invasão com todas as suas energias. Ao fazê-lo, geralmente se encontram lado a lado com os que costumam resistir às mudanças. Em questões de política corrente, eles praticamente não têm outra escolha, hoje, senão apoiar os partidos conservadores. Contudo, embora a posição que tentei definir também seja muitas vezes tida como “conservadora”, é bem diferente daquela à qual tradicionalmente se costuma atribuir o termo.

Uma situação em que os defensores da liberdade se unem aos verdadeiros conservadores na oposição comum a mudanças que ameaçam igualmente seus ideais diferentes é muito perigosa. Por essa razão, é importante distinguir claramente a posição que tomamos aqui daquela que sempre foi conhecida – talvez com maior propriedade – como conservadora.

O verdadeiro conservadorismo é uma atitude legítima, provavelmente necessária, e com certeza bastante difundida, de oposição a mudanças drásticas. Desde a Revolução Francesa, representa um papel importante na política europeia. Até o surgimento do socialismo, o oposto do conservadorismo era o liberalismo. Este conflito não encontra equivalente na história dos Estados Unidos da América, porquanto o que na Europa se chamava “liberalismo” aqui representava a tradição comum, sobre a qual fora constituído o Estado americano: assim, o defensor da tradição americana era um liberal no sentido europeu.


A confusão piorou com a recente tentativa de transplantar para a América o tipo europeu de conservadorismo, que, por ser alheio à tradição americana, assumiu caráter de certo modo singular. E, além disso, os radicais e socialistas americanos já haviam começado a se denominar “liberais”. Não obstante, continuarei, por enquanto, a chamar de liberal a posição que defendo e que, acredito, difere tanto do verdadeiro conservadorismo quanto do socialismo. Contudo, devo esclarecer, desde já, que o faço com crescente apreensão e que mais tarde terei de considerar qual seria a denominação mais adequada para o partido da liberdade. Isto decorre não apenas de o termo “liberal” nos Estados Unidos ser, hoje, causa de constantes equívocos, como também de, na Europa, o tipo predominante de liberalismo racionalista há muito tempo abrir caminho para o socialismo.


Direi agora o que considero a objeção decisiva ao verdadeiro conservadorismo: por sua própria natureza, o conservadorismo não pode oferecer uma alternativa ao caminho que estamos seguindo. Por resistir às tendências atuais poderá frear desdobramentos indesejáveis, mas, como não indica outro caminho, não pode impedir sua evolução. Por esta razão, o destino do conservadorismo tem sido invariavelmente deixar-se arrastar por um caminho que não escolheu.

A luta pela supremacia entre conservadores e progressistas só afeta o ritmo, não o rumo dos acontecimentos contemporâneos, mas, embora seja necessário “frear o curso do progresso”, pessoalmente não posso limitar-me a ajudar a puxar o freio. Antes de mais nada, os liberais devem perguntar não a que velocidade estamos avançando, nem até onde iremos, mas para onde iremos. De fato, o liberal difere muito mais do coletivista radical dos nossos dias do que o conservador. Enquanto este geralmente representa uma versão moderada dos preconceitos de seu tempo, o liberal dos nossos dias deve opor-se, de maneira muito mais positiva, a alguns dos conceitos básicos que a maioria dos conservadores compartilha com os socialistas.

2. A Relação Triangular dos Partidos

O quadro geralmente apresentado da posição relativa dos três partidos contribui muito mais para confundir do que para esclarecer suas verdadeiras relações. Habitualmente a representação é a de posições diferentes numa linha imaginária, com os socialistas à esquerda, os conservadores à direita e os liberais mais ou menos ao centro. Nada mais errôneo. Se utilizássemos um diagrama, a figura mais apropriada seria a de um triângulo, com os conservadores ocupando um ângulo, os socialistas puxando para o segundo e os liberais para o terceiro. Contudo, como os socialistas há muito tempo exercem maior pressão, o que ocorreu foi que os conservadores tenderam a ser arrastados pelo polo socialista mais que pelo polo liberal e, sempre que lhes convinha, adotaram as ideias que a propaganda radical fazia parecer respeitáveis. Comumente foram os conservadores que fizeram mais concessões ao socialismo, chegando mesmo a empunhar suas bandeiras. Defensores da política de centro, e desprovidos de objetivos próprios, os conservadores sempre se pautaram pelo princípio de que a verdade está entre os extremos – e consequentemente mudam sua posição toda vez que um movimento mais radical surge em qualquer um dos lados.

A posição que em determinada época podemos definir corretamente como conservadora depende, portanto, do rumo das tendências existentes no momento. Como, nessas últimas décadas, a evolução tem seguido em geral o rumo do socialismo, pode parecer que tanto conservadores quanto liberais se tenham preocupado basicamente em freá-la. Contudo, a verdade é que, fundamentalmente, o liberalismo quer tomar outro caminho, e não permanecer parado. Embora hoje possa, às vezes, subsistir a impressão contrária, porque houve uma época em que o liberalismo era mais amplamente aceito e alguns de seus objetivos estavam mais próximos de ser alcançados, nunca foi uma doutrina retrógrada. Jamais existiu período em que os ideais liberais tivessem encontrado sua realização plena e em que o liberalismo não esperasse um aperfeiçoamento ainda maior das instituições. O liberalismo não é contrário à evolução e à mudança; e,nos casos em que transformações espontâneas são asfixiadas pelo controle governamental, advoga profundas reformas na política de governo. No que diz respeito à maioria das atividades governamentais, no mundo de hoje, os liberais não têm por que preservar a situação como está. Na verdade, o liberal acredita que o mais urgente e necessário em quase todo o mundo seja a eliminação completa dos obstáculos à evolução espontânea.

O fato de nos Estados Unidos ainda ser possível defender a liberdade individual defendendo as instituições mais antigas não nos deve impedir de perceber a diferença entre liberalismo e conservadorismo. Para o liberal estas instituições são preciosas não porque existem há muito tempo, ou porque são americanas, mas porque correspondem aos ideais que tanto preza.

3. A Diferença Básica entre Conservadorismo e Liberalismo

Antes de considerar os pontos principais nos quais a atitude liberal se opõe de maneira definitiva à atitude conservadora, devo salientar que os liberais poderiam ter aprendido e se beneficiado muito com as obras de alguns pensadores conservadores. Devemos ao seu dedicado e reverente estudo do valor de algumas instituições análises profundas (pelo menos fora da área econômica), que constituem verdadeiras contribuições à nossa compreensão de uma sociedade livre. Por mais reacionários que possam ter sido na política homens como Coleridge, Bonald, De Maistre, Justus Mõser ou Donoso Cortês, eles mostraram uma compreensão do significado das instituições que evoluíram espontaneamente, como por exemplo o idioma, o direito, a moral e as convenções, que antecipou as perspectivas científicas modernas, que poderia ter sido útil aos liberais. Mas a admiração dos conservadores pela evolução espontânea geralmente se aplica apenas ao passado. Em geral, falta-lhes a coragem de aceitar as mudanças não planejadas das quais surgirão novos instrumentos da realização humana.


Com isso, chegamos ao primeiro ponto no qual as atitudes liberais e conservadoras diferem radicalmente. Como muitas vezes os escritores conservadores reconheceram, uma das principais características da atitude conservadora é o medo da mudança, uma desconfiança tímida em relação ao novo enquanto tal, ao passo que a posição liberal se baseia na coragem e na confiança, na disposição de permitir que as transformações sigam seu curso, mesmo quando não podemos prever aonde nos levarão. Não haveria por que contestar os conservadores se eles simplesmente não gostassem de mudanças muito rápidas nas instituições e na política de governo; de fato, neste caso, justifica-se o cuidado e o lento progresso.

Mas os conservadores tendem a utilizar os poderes do governo para impedir as mudanças ou limitar seu âmbito àquilo que agrada às mentes mais tímidas. Ao contemplar o futuro, carecem de fé nas forças espontâneas de ajustamento, que levam os liberais a aceitar mudanças sem apreensão, mesmo sem saber como as adaptações necessárias se efetivarão. Com efeito, faz parte da atitude liberal supor que, especialmente no campo econômico, as forças autorreguladoras do mercado de alguma maneira gerarão os necessários ajustamentos às novas condições, embora ninguém possa prever como farão isso no caso particular. Talvez não exista um fator que contribui mais para as pessoas frequentemente se mostrarem relutantes em deixar que o mercado funcione do que sua incapacidade de conceber como, sem controle deliberado, pode surgir o equilíbrio necessário entre a oferta e a procura, entre as importações e as exportações, e assim por diante. O conservador só se sente seguro e satisfeito quando tem a garantia de que alguma sabedoria superior observa e supervisiona as mudanças, somente quando sabe que há uma autoridade encarregada de verificar que elas se deem dentro da “ordem”.


Esse temor em confiar em forças sociais incontroladas está intimamente ligado a duas outras características do conservadorismo: sua paixão pela autoridade e sua falta de compreensão das forças econômicas. Como não confia nem em teorias abstratas nem em princípios gerais, não compreende as forças espontâneas nas quais se baseia uma política de liberdade nem dispõe de bases para formular princípios de política de governo. Para os conservadores, a ordem aparece como o resultado da atenção contínua da autoridade, à qual, para tanto, se deve permitir tomar qualquer medida necessária em circunstâncias específicas, sem que precise ater-se a uma norma rígida.

A aceitação de princípios pressupõe uma compreensão das forças gerais que coordenam as ações humanas na sociedade; porém, é exatamente de tal teoria da sociedade e em especial da teoria do mecanismo econômico que o conservadorismo evidentemente carece. O conservadorismo foi completamente incapaz de elaborar um conceito geral sobre a maneira pela qual a ordem social consegue sustentar-se, e seus modernos defensores, ao tentar construir uma base teórica, quase sempre acabaram apelando quase exclusivamente para autores que se consideravam liberais. Macaulay, Tocqueville, Lord Acton e Lecky certamente se consideravam liberais, e com justiça; e mesmo Edmund Burke permaneceu um Whig da velha guarda até o fim e estremeceria à simples ideia de ser considerado um Tory.

Voltemos, porém, ao assunto principal, que é a característica complacência dos conservadores com os atos da autoridade estabelecida e sua preocupação primordial de que essa autoridade não seja enfraquecida e não de que seu poder seja mantido dentro de certos limites. Isto não se concilia com a preservação da liberdade.

Em termos gerais, poderíamos afirmar que o conservador não se opõe à coerção ou ao poder arbitrário, desde que utilizados para os fins que ele julga válidos. Ele acredita que, se o governo for confiado a homens probos, não deve ser limitado por normas demasiado rígidas. Como se trata de indivíduo essencialmente oportunista e desprovido de princípios, ele espera que os bons e os sábios governem, não meramente pelo exemplo, como todos queremos, mas por uma autoridade a eles conferida e por eles exercida. Como o socialista, o conservador preocupa-se menos com o problema de como deveriam ser limitados os poderes do governo do que com o de quem irá exercê-los; e, como o socialista, também se acha no direito de impor às outras pessoas os valores nos quais acredita.

Quando digo que o conservador carece de princípios, não quero com isso afirmar que ele careça de convicção moral. O conservador típico é, de fato, geralmente um homem de convicções morais muito fortes. O que quero dizer é que ele não tem princípios políticos que lhe permitam promover, junto com pessoas cujos valores morais divergem dos seus, uma ordem política na qual todos possam seguir suas convicções. É o reconhecimento desses princípios que possibilita a coexistência de diferentes sistemas de valores, a qual, por sua vez, permite construir uma sociedade pacífica, com um emprego mínimo da força.

Sua aceitação significa que podemos tolerar muitas situações com as quais não concordamos. Há muitos valores conservadores que me atraem mais do que muitos valores socialistas, porém a importância que um liberal atribui a objetivos específicos não lhe serve de justificativa suficiente para obrigar outros a submeter-se a eles. Não duvido que alguns de meus amigos conservadores ficarão chocados com as “concessões” às opiniões modernas que eu teria feito na Parte III deste livro. Contudo embora possa não gostar, tanto quanto eles, de algumas das medidas mencionadas e até votasse contra elas, não conheço nenhum princípio geral ao qual recorrer para persuadir os que têm opinião diferente de que tais medidas são inaceitáveis na sociedade que eu e eles desejamos. Para conviver com os outros é preciso muito mais do que fidelidade aos nossos objetivos concretos. É necessário um comprometimento intelectual com um tipo de ordem em que, até nas questões que um indivíduo considera fundamentais, os demais têm o direito de buscar objetivos diferentes.

É por esse motivo que para o liberal os ideais morais, bem como os ideais religiosos, não podem ser objeto de coerção, enquanto conservadores e socialistas não reconhecem esses limites. Às vezes, penso que o atributo mais marcante do liberalismo, que o distingue tanto do conservadorismo quanto do socialismo, é a ideia de que convicções morais quanto a questões de conduta, que não interferem diretamente com a esfera individual protegida pela lei, não justificam a coerção dos demais. Isso também pode explicar por que parece muito mais fácil para o socialista arrependido encontrar um novo lar espiritual entre os conservadores do que entre os liberais.

Em última análise, a posição conservadora baseia-se no princípio de que, em qualquer sociedade, há indivíduos reconhecidamente superiores, cujos valores, padrões e posições, sua herança espiritual, precisariam ser protegidos, e que deveriam exercer maior influência nos assuntos públicos do que os demais. Obviamente, o liberal não nega que existam pessoas superiores; ele não é um defensor do igualitarismo. O que ele nega é que qualquer um possa ter a autoridade de decidir quem são essas pessoas superiores. Enquanto os conservadores tendem a defender uma determinada hierarquia estabelecida e pretendem que a autoridade proteja o status daqueles que eles prezam, os liberais acreditam que não haja respeito por valores estabelecidos que justifique o recurso ao privilégio ou ao monopólio ou a qualquer poder coercitivo do Estado para proteger estas pessoas das forças da transformação econômica. Embora o liberal esteja plenamente cônscio do importante papel que as elites culturais e intelectuais representaram no avanço da civilização, também crê que essas elites devem dar provas da capacidade de manter sua posição obedecendo às mesmas normas aplicadas a todos os outros.*

Intimamente ligada a isso é a atitude comum dos conservadores em relação à democracia. Já deixei claro anteriormente que não considero o governo da maioria um fim em si mesmo, mas apenas um meio, ou talvez mesmo a menos nociva das formas de governo existentes. Mas penso que os conservadores enganam a si próprios quando atribuem à democracia todos os males de nosso tempo. O mal maior é o governo ilimitado, e ninguém tem o direito de fazer uso de um poder ilimitado. Os poderes de que a democracia moderna dispõe seriam ainda mais intoleráveis nas mãos de uma pequena elite.

Sem dúvida alguma, foi somente quando o poder passou para as mãos da maioria que se julgou desnecessário continuar limitando o poder do Estado. Nesse sentido, democracia e Estado com poderes ilimitados estão intimamente ligados. Inaceitável não é a democracia, e sim o Estado com poderes ilimitados, e não vejo por que os indivíduos não devam ter o direito de aprender a limitar o âmbito do governo da maioria, bem como o de qualquer outra forma de governo. Seja como for, as vantagens da democracia como método de mudança pacífica e de educação política parecem tão imensas, se comparadas com as de qualquer outro sistema, que não consigo simpatizar com a corrente antidemocrática do conservadorismo. Não é quem governa, mas o grau de poder do governo, que me parece ser o problema essencial.

Está claramente demonstrado na esfera econômica que a oposição dos conservadores a um exagerado controle governamental não constitui uma questão de princípio, mas visa aos objetivos específicos do governo. Os conservadores geralmente se opõem às medidas coletivistas e dirigistas na área industrial e, neste caso, os liberais frequentemente encontrarão neles aliados. Mas, ao mesmo tempo, os conservadores adotam comumente uma atitude protecionista e já, muitas vezes, apoiaram medidas socialistas na agricultura. De fato, embora as restrições hoje feitas à indústria e ao comércio sejam principalmente conseqüência de opiniões socialistas, as restrições igualmente importantes na área da agricultura foram em geral introduzidas pelos conservadores, em época anterior. E, em sua tentativa de desacreditar a livre iniciativa, muitos líderes conservadores rivalizaram com os socialistas.


4. A Fraqueza do Conservadorismo

Já me referi às diferenças entre conservadorismo e liberalismo no campo puramente intelectual; pretendo, porém, retomar o tema porque, nele, a típica atitude do conservadorismo não apenas constitui uma séria fraqueza como também tende a prejudicar qualquer movimento que a ele se alie. Os conservadores instintivamente acreditam que, mais do que qualquer outro fator, são as novas ideias que ocasionam as mudanças. Contudo, corretamente do seu ponto de vista, o conservadorismo teme novas ideias porque não dispõe de princípios próprios para opor a elas; e, por desconfiar da teoria e faltar-lhe imaginação quanto a qualquer conceito que a experiência ainda não tenha comprovado, o conservadorismo nega a si mesmo as armas necessárias à luta das ideias. Ao contrário do liberalismo e sua convicção fundamental no poder das ideias, o conservadorismo pauta seu comportamento pelo conjunto de ideias herdadas em dado momento. E, como realmente não acredita no poder do debate, seu último recurso é, em geral, alegar uma sabedoria superior, fundamentada em uma virtude elevada que ele próprio se atribui. 

Este contraste se manifesta mais claramente nas diferentes atitudes de ambas as tradições em relação ao avanço do conhecimento. Embora o liberal não considere toda mudança um progresso, ele encara o avanço do conhecimento como uma das metas principais do esforço humano e confia em que lhe proporcione uma solução gradual para os problemas e dificuldades que esperamos poder resolver. Sem preferir o novo apenas por ser novo, o liberal está consciente de que é da essência da realização humana produzir o novo; e está preparado para conviver com o novo conhecimento, goste ou não de seus efeitos imediatos.

Pessoalmente, acho que o aspecto mais reprovável da atitude conservadora é sua tendência a rejeitar novos conhecimentos, ainda que bem fundamentados, porque desaprova algumas das consequências que aparentemente decorrem deles – ou, mais francamente, seu obscurantismo. Não nego que os cientistas, como qualquer pessoa, são dados a modismos e excentricidades e que devemos ser cautelosos em aceitar as conclusões às quais os levam suas teorias mais recentes. Mas os motivos de nossa relutância precisam ser racionais e não devem ser condicionados pela consternação que sentimos quando as novas teorias abalam nossas mais caras convicções. Sou pouco paciente com os que se opõem, por exemplo, à teoria da evolução ou às chamadas explicações “mecanicistas” dos fenômenos da vida, simplesmente por causa de algumas consequências morais que, a princípio, parecem decorrer dessas teorias, e ainda menos paciente com os que consideram irreverente e ímpio indagar a respeito de certas questões. Ao recusar-se a enfrentar os fatos, o conservador contribui para enfraquecer sua própria posição. Frequentemente, as conclusões que a mentalidade racionalista tira das novas interpretações científicas de modo algum decorrem delas. Contudo, somente se tomarmos parte da avaliação das consequências das novas descobertas saberemos se elas se adaptam ou não à nossa visão de mundo, e, em caso afirmativo, como se adaptam. Caso se comprove que nossas convicções morais dependem de pressupostos factuais errados, não seria moral defender tais convicções recusando-nos a reconhecer os fatos.

Aliada à desconfiança dos conservadores em relação a tudo que é novo e incomum está sua hostilidade ao internacionalismo e sua tendência a um nacionalismo exagerado. Isto também contribui para enfraquecer sua posição na luta das ideias, e não pode alterar o fato de as concepções que estão modificando nossa civilização não respeitarem fronteiras. Entretanto, a recusa de estudar novas ideias acaba simplesmente privando o indivíduo do poder de opor-se efetivamente a elas quando necessário. A evolução das ideias é um processo universal e somente os que participam ativamente dos debates poderão exercer uma influência significativa. Não é válido argumentar que uma ideia é antiamericana, antibritânica ou antigermânica, tampouco um ideal errôneo ou perverso é melhor somente por ter sido concebido por um de nossos compatriotas.

Muito mais poderia dizer da estreita relação entre conservadorismo e nacionalismo, mas não me deterei na questão porque pode parecer que minha posição me impede de simpatizar com qualquer forma de nacionalismo. Acrescentarei apenas que normalmente é a tendência nacionalista que leva o conservadorismo a se aproximar do coletivismo: é muito pequena a distância que vai entre pensar em termos de “nossa” indústria ou “nossos” recursos e exigir que esse patrimônio nacional seja administrado de acordo com o interesse nacional. Contudo, quanto a este aspecto, o liberalismo do continente europeu derivado da Revolução Francesa praticamente não difere do conservadorismo. Não é necessário dizer que este tipo de nacionalismo é bem diferente do patriotismo e que a aversão ao nacionalismo é plenamente compatível com um profundo respeito pelas tradições nacionais. Porém, o fato de eu preferir e mesmo reverenciar algumas tradições de minha sociedade não precisa obrigar-me a ser hostil a tudo que seja incomum e diferente.

Somente à primeira vista parece paradoxal que o anti-internacionalismo conservador seja tão frequentemente associado ao imperialismo. Na verdade, quanto mais uma pessoa não gosta do que é diferente e julga superiores seus métodos, mais tenderá a considerar sua missão “civilizar” os demais, não pelas relações livres e voluntárias preferidas pelos liberais, mas proporcionando-lhes as graças de um governo eficiente. É significativo que nesse aspecto habitualmente encontremos os conservadores de mãos dadas com os socialistas, contra os liberais, não apenas na Inglaterra, onde os Webb e seus fabianos eram francamente favoráveis ao imperialismo, ou na Alemanha, onde o socialismo de Estado e o expansionismo colonial caminhavam lado a lado e encontravam o apoio do mesmo grupo de “socialistas de cátedra”, mas também nos Estados Unidos, onde, até durante o mandato de Theodore Roosevelt, se observou que “os jingoístas[Nota: nacionalismo exacerbado na forma de uma política externa agressiva. O termo surge no Reino Unido, nos anos 1870] e os reformadores sociais se uniram e formaram um partido político que ameaçou tomar o governo e utilizá-lo para seu programa de paternalismo cesarista, perigo que agora parece ter sido conjurado somente pelo fato de que os outros partidos adotaram seu programa abrandando seu conteúdo e forma”.


5. Racionalismo, Antirracionalismo e Irracionalismo

Há um aspecto, porém, em que podemos afirmar que o liberal ocupa uma posição de centro, a meio caminho entre o socialista e o conservador: ele está tão distante do racionalismo primitivo do socialista, que pretende reconstruir todas as instituições de acordo com um padrão prescrito por sua razão individual, quanto do misticismo ao qual o conservador frequentemente precisa recorrer. O que defini como a posição liberal, tem em comum com o conservadorismo uma desconfiança em relação à razão, na medida em que o liberal está muito consciente de que não sabemos todas as respostas e não tem certeza de que as respostas de que dispõe sejam de fato as certas ou mesmo se poderemos ter respostas para tudo. Além disso, o liberal não se recusa a buscar o apoio de quaisquer hábitos ou instituições não racionais que se revelaram válidos. O liberal difere do conservador na disposição de aceitar esta ignorância e de admitir que sabemos muito pouco, sem reivindicar uma autoridade de origem supranatural do conhecimento sempre que sua razão falhar. Deve-se admitir que o liberal, em alguns casos, é fundamentalmente um cético – mas aparentemente é necessário certo grau de desconfiança para deixar que os outros busquem sua felicidade à sua maneira e para defender com coerência esta tolerância, que é uma característica essencial do liberalismo.

Isto não significa necessariamente que um liberal não tenha uma convicção religiosa. Ao contrário do racionalismo da Revolução Francesa, o verdadeiro liberalismo não é contrário à religião, e apenas posso deplorar a militância antirreligiosa, essencialmente não liberal, que animou grande parte do liberalismo no continente europeu no século XIX. No entanto, tal característica não é essencial ao liberalismo, como o demonstram claramente seus ascendentes ingleses, os antigos Whigs, que, ao contrário, talvez simpatizassem demais com uma determinada crença religiosa. Nesse aspecto, o que distingue o liberal do conservador é que, por mais profundas que sejam suas convicções espirituais, ele nunca se considerará no direito de impô-las aos demais e o fato de, para ele, o espiritual e o temporal serem esferas distintas que não devem ser confundidas.


6. A Denominação do Partido da Liberdade

O que afirmei até agora deveria bastar para explicar por que não me considero um conservador. Muitos acharão, contudo, que essa posição dificilmente corresponde ao que costumavam chamar de “liberal”. Portanto, verificaremos agora se esta denominação ainda é adequada ao partido da liberdade. Já observei que, embora durante toda minha vida eu me tenha definido um liberal, nos últimos tempos tenho feito isto com crescente apreensão – não apenas porque nos Estados Unidos o termo liberal dá margem a constantes equívocos, mas também porque me venho tornando cada vez mais consciente da grande distância existente entre minha posição e a do liberalismo racionalista do continente europeu ou mesmo a do liberalismo inglês dos utilitaristas.

Ficaria extremamente orgulhoso de me definir um liberal, se liberalismo ainda tivesse o significado que lhe atribuiu um historiador inglês que, em 1827, falava da revolução de 1688 como “o triunfo dos princípios que, na linguagem de hoje, são chamados liberais ou constitucionais”, ou se ainda pudéssemos, com Lord Acton, classificar Burke, Macaulay e Gladstone como os três maiores liberais, ou se fosse ainda possível, com Harold Laski, considerar Tocqueville e Lord Acton “os liberais mais autênticos do século XIX”. Porém, por mais que me sinta tentado a julgar o liberalismo desses pensadores um verdadeiro liberalismo, devo reconhecer que os liberais do continente europeu, em sua maioria, defenderam ideias às quais aqueles pensadores se opuseram firmemente e que foram motivados mais pelo desejo de impor ao mundo um padrão racional preconcebido do que pela vontade de favorecer uma evolução espontânea. O mesmo ocorre com o movimento que se denominou liberalismo na Inglaterra, pelo menos desde os tempos de Lloyd George.

É, portanto, necessário reconhecer que o que chamei de “liberalismo” pouca relação tem com qualquer movimento político que hoje assim se denomina. Também se pode questionar se as associações históricas evocadas atualmente por este termo favorecem o êxito de qualquer movimento. É possível discordar quanto à conveniência de, em tais circunstâncias, tentarmos resgatar o termo daquilo que consideramos seu emprego incorreto. Pessoalmente, acredito cada vez mais que utilizá-lo sem longas explicações gera enorme confusão e que, como rótulo, se tomou mais um obstáculo do que uma força motriz.

Nos Estados Unidos, onde se tornou quase impossível usar o termo “liberal” no sentido em que o utilizei, emprega-se em seu lugar o termo “libertário”. Talvez esteja aí a resposta; no entanto, de minha parte, considero-a particularmente sem atrativo. Na minha opinião, tem um excessivo sabor artificial, de sucedâneo. Eu preferiria um termo que definisse o partido da vida, o partido que apoia o crescimento livre e a evolução espontânea. Mas, por mais que me esforçasse, não consegui encontrar um termo descritivo e confiável.


7. Recorrendo aos Velhos “Whigs”

Caberia recordar, entretanto, que, quando os ideais que venho tentando reafirmar se difundiram pela primeira vez no mundo ocidental, o partido que os representava tinha um nome famoso. Foram os ideais dos Whigs ingleses que inspiraram o que mais tarde ficou sendo conhecido em toda a Europa como o movimento liberal e deram origem aos conceitos que os colonizadores americanos levaram consigo e que os guiaram em sua luta pela independência e no estabelecimento de sua Constituição. De fato, até o momento em que o caráter desta tradição foi alterado pelas ideias oriundas da Revolução Francesa, com sua democracia totalitária e suas inclinações socialistas, o partido da liberdade era conhecido pelo nome Whig.

Esse termo morreu no país em que nasceu, em parte porque, durante algum tempo, os princípios que ele representava deixaram de ser distintivos de apenas um partido e, em parte, porque os homens que se denominavam Whigs não permaneceram fiéis a seus princípios. Os próprios partidos Whig do século XIX, tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos, acabaram fazendo cair em descrédito o nome do partido entre os radicais. Todavia, ainda é verdade que, como o liberalismo tomou o lugar do whiguismo somente depois que o movimento pela liberdade absorveu o racionalismo grosseiro e militante da Revolução Francesa, e como nossa tarefa em grande parte é libertar essa tradição das influências de um exagerado racionalismo, nacionalismo e socialismo que nela penetraram, whiguismo é historicamente o nome correto para designar as ideias nas quais acredito. Quanto mais aprendo a respeito da evolução das ideias, mais tenho consciência de que sou um impenitente Whig da velha guarda.

O fato de me confessar um velho Whig obviamente não significa que pretendo voltar à situação em que nos encontrávamos no fim do século XVII. Um dos propósitos deste livro foi mostrar que as doutrinas, formuladas pela primeira vez naquela época, continuaram a crescer e a se desenvolver até cerca de setenta ou oitenta anos atrás, embora já tivessem deixado de constituir o objetivo principal de um partido específico. Desde então, aprendemos muitas noções que nos deveriam permitir reafirmar aquelas doutrinas de maneira mais satisfatória e eficaz. Entretanto, embora exijam uma reformulação à luz de nosso conhecimento atual, os princípios básicos permanecem os mesmos dos velhos Whigs. Indubitavelmente, a história mais recente do partido com esta denominação levou alguns historiadores a se perguntar se de fato existiu um corpo de princípios Whig. Foi nas sociedades Whig que o jovem James Madison e John Adams desenvolveram seus ideais políticos (cf. E. M. Burns, James Madison [New Brunswick, N. J,: Rutgers University Press, 1938], página 4); foram os princípios Whig que, como Jefferson diz, orientaram todos os juristas que constituíam a grande maioria dos signatários da Declaração da Independência e dos membros da Comissão Constitucional (ver Writings of Thomas Jefferson [“Memorial ed.” (Washington, 1905)], XVI, 156). À defesa dos princípios Whig foi levada a tal ponto que mesmo os soldados de Washington se vestiam com o tradicional “azul e ocre”, as cores dos Whigs, assim como os foxites (N.T. – seguidores de Charles James Fox [1749 -1806], político britânico que se tornou um dos mais destacados membros do grupo Whig, liderado por Edmund Burke) do Parlamento britânico, que foram preservadas até nossos dias nas capas da Edinburgh Review. Se uma geração socialista fez do whiguismo seu alvo principal, esta é mais uma razão para os adversários do socialismo defenderem esta denominação, hoje a única que define corretamente os princípios dos liberais gladstonianos, dos homens da geração de Maitland, Acton e Bryce, a última geração cujo objetivo principal era a liberdade e a igualdade ou a democracia.

Lord Acton em que, embora alguns “patriarcas da doutrina gozassem de péssima fama, o conceito de uma lei superior, acima dos códigos municipais, com a qual se iniciou o whiguismo, constitui o feito supremo dos ingleses e seu grande legado para a nação”, e, podemos acrescentar, para o mundo. Trata-se da doutrina sobre a qual se assenta a tradição comum dos países anglo-saxônicos. É a doutrina da qual o liberalismo do continente europeu absorveu tudo que ela tem de mais valioso. É a doutrina em que se fundamenta o sistema americano de governo. Em sua mais pura forma, é representada nos Estados Unidos não pelo radicalismo de Jefferson, nem pelo conservadorismo de Hamilton ou mesmo de John Adams, mas pelas ideias de James Madison, o “pai da Constituição”.

Não sei se ressuscitar esse velho nome será uma medida prática. O fato de que para o povo, tanto nos países anglo-saxônicos, como nos demais, hoje, o termo não possui conotações definidas talvez seja mais uma vantagem do que uma desvantagem. Para as pessoas que conhecem a história das ideias, é certamente a única denominação que expressa o significado da tradição. E, se whiguismo define o que os verdadeiros conservadores e mais ainda os inúmeros socialistas que se tornaram conservadores mais cordialmente odeiam, isto revela um instinto sadio de sua parte. De fato, esta palavra define o único conjunto de ideais que sempre se opôs a todo poder arbitrário.


8. Princípios e Possibilidades Práticas

Pode-se indagar se o nome do partido da liberdade é realmente tão importante. Num país como os Estados Unidos, que de modo geral ainda tem instituições livres e onde, portanto, a defesa daquilo que existe é quase sempre a defesa da liberdade, talvez não seja prejudicial os defensores da liberdade se intitularem conservadores, embora, mesmo aqui, sua associação com indivíduos de natureza conservadora muitas vezes represente motivo de constrangimento. Até quando os indivíduos apoiam as mesmas medidas ou instituições, deve-se perguntar se eles as aprovam simplesmente porque existem ou porque são intrinsecamente boas. Não se deve permitir que sua resistência comum à tendência coletivista nos impeça de compreender que a crença na liberdade integral se baseia essencialmente numa ainda que corajosa aceitação do futuro e não em uma atitude nostálgica em relação ao passado, tampouco em uma admiração romântica por aquilo que foi.

É, porém, absolutamente imperativa a necessidade de uma distinção clara quando, como ocorre em vários países da Europa, os conservadores já aceitaram em grande parte o credo coletivista – que há tanto tempo domina a política, que muitas de suas instituições já são aceitas como um fato consumado, constituindo motivo de orgulho para os partidos “conservadores” que as criaram. Nesse caso, os que acreditam na liberdade não podem evitar o conflito com os conservadores e são obrigados a adotar uma atitude basicamente radical contra os preconceitos populares, as posições de poder estabelecidas e os privilégios profundamente arraigados. Tolices e abusos não mudam sua essência, apenas porque se tornaram princípios de política de governo consagrados pelo tempo.

Embora a máxima quieta non movere possa, em algumas ocasiões, conter muita sabedoria para o estadista, não pode satisfazer um filósofo político. O filósofo pode desejar que certa medida seja adotada com cautela, e não antes que a opinião pública esteja preparada a apoiá-la; mas não pode aceitar medidas apenas porque sancionadas pela opinião pública corrente. Num mundo em que a necessidade básica se tomou, como no início do século XIX, libertar o processo de crescimento espontâneo dos obstáculos e das dificuldades criados pela insensatez humana, as esperanças do filósofo político devem concentrar-se na persuasão e na obtenção do apoio daqueles que por natureza são “progressistas”, aqueles que, embora atualmente busquem mudanças na direção errada, pelo menos estão dispostos a examinar criticamente o que existe e a modificá-lo sempre que necessário.

Espero não ter levado o leitor a interpretar mal a palavra “partido”, que utilizei para designar grupos de pessoas que defendem um conjunto de princípios intelectuais e morais. Não foi objetivo deste livro tratar da política partidária de um país ou outro.

O filósofo político deverá deixar que o “animal astuto e traiçoeiro, vulgarmente chamado de estadista, ou político, cujas opiniões são fruto da momentânea flutuação dos fatos”,resolva a questão de como os princípios que tentei reconstituir juntando os fragmentos de uma tradição podem traduzir-se em um programa de atração popular. A tarefa do filósofo político é influenciar a opinião pública e não organizar o povo para a ação. E ele terá êxito somente se não se voltar para aquilo que é politicamente possível agora, mas defender com firmeza “os princípios gerais duradouros”.

Nesse sentido, duvido que possa existir uma filosofia política conservadora. O conservadorismo pode muitas vezes representar um conceito útil e prático, mas não nos proporciona nenhum princípio orientador capaz de influenciar a evolução futura.


6 de maio de 2014

Tobias Barreto - Discurso em mangas de camisa

Observação preliminar sobre o "Discurso em mangas de camisa" — Em Setembro de 1877, apareceu-me a ideia de organizar nesta cidade, e à semelhança de outros, já algures existentes, um pequeno Club Popular. Como todas as lembranças infelizes, que no nosso país têm a propriedade de germinar com a mesma rapidez do alho plantado em noite de S. João, segundo a crença vulgar — a minha ideia prontamente grelou; mas também, com a mesma prontidão, murchou e morreu. Foi esta ainda uma das muitas ilusões de que se tem alentado o meu espírito nesta bela terra onde aliás vim sepultar os dois mais caros objetos do meu coração e da minha fantasia: — minha Mãe e meu futuro!...

Foi ainda uma ilusão, sem dúvida, porém um pouco mais durável, um pouco menos enganadora do que, por exemplo, a realidade das flores, com a sua vida de um só dia: minha ilusão durou quinze.

Por ocasião e a propósito de realizar o meu plano, pronunciei o discurso que aí vai. Publicado logo depois no Jornal do Recife, não deixou de ser então, como era natural, agradável a uns, e displicente a outros. Mas ficou nisto.

Correram os dias, mudaram-se as coisas, e eu entendi que devia, para dar uma feição mais permanente aquele produto de outros tempos, publicá-lo em brochura, como agora o faço, acompanhado de notas, que servem de ilustração ao meu pensamento.

É o que tenho a dizer sobre a história do livrinho. Quanto ao mais, o leitor o julgue, como bom e justo lhe parecer.

Escada, 11 de Fevereiro de 1879.


MEUS senhores! Ainda uma vez, é a mim que incumbe vir expor-vos, e em traços mais visíveis a ideia que se propõe realizar o Club Popular da Escada. A primeira reunião que já fizemos, não foi, nem podia ser inteiramente satisfatória, sob este ponto de vista, porquanto, além da grave dificuldade, que há em falar-se, de modo, eficaz, a um auditório não preparado, acresce que seria então antecipar, sem vantagem para esta sociedade, a explanação detalhada do seu objeto e dos seus intuitos. Bem quer me parecer que semelhante reserva, da minha parte, podia dar direito a se supor que há no fundo deste meu tentame uma certa dose de mistério e intenção secreta, que só pouco a pouco é dado perceber. Mas isto seria errôneo e altamente injusto.

O pensamento que forma a base desta sociedade, como de outras de igual natureza, não se resume — é verdade — numa definição, nem se esgota em centenas de discursos. Só às crianças é lícito imaginar que poderiam conter na palma da mão qualquer estrelinha, que se lhes afigura do tamanho de uma moeda, e apta para um brinquedo. Do mesmo modo, somente aos parvos é permitido crer que o conceito inspirador e dirigente de uma corporação criada com fins humanitários, políticos e sociais, qualquer que seja o círculo de sua ação, é suscetível de abranger-se numa folha de papel, e pode se deixar ver em todos os seus aspectos e atitudes sedutoras, à luz mortiça de velhas frases consagradas ao culto aparatoso dos ídolos do dia.

Porém também é certo, senhores, que quando se evangeliza uma ideia nobre, por mais densa mesmo que seja a nuvem, em que ela venha envolvida, o gênio do povo se encarrega de penetrar-lhe no íntimo e conhecer, por instinto, o seu valor e o seu alcance. Nem eu quero dissimular que uma associação, à guisa da nossa, que tem por principal agente o espírito popular, o ímpeto democrático do século, encerra naturalmente alguma partícula de reação e protesto contra a tirania das coisas, algum germe de rebeldia contra a impudência dos deuses, e importa, como tal, uma gota de assa-fétida na taça de néctar dos poderosos da terra.


Mas isto não desfigura a placidez e serenidade do nosso intento, nem seria motivo suficiente para as chamadas autoridades constituídas nos pedirem contas, por tentativa de insurreição. Tranquilizem-se, pois: se há aqui algum segredo, esse segredo não é para vós; é para aqueles que têm a orelha longa e fina, que no simples ato da livre respiração, que na sístole e diástole do coração do povo percebem sempre um como fluxo e refluxo do mar, que vem engoli-los; é para aqueles, em cuja opinião o menor esforço para sair-se deste sono de abatimento e miséria, é um plano de amotinados, assim como o sangue, que borbulha e jorra impetuoso, pode ser também um revolucionário, na opinião do punhal; é para aqueles, enfim, que tendo boas razões de unirem-se a nós, de estarem conosco, não se dignam, todavia, de aparecer aqui, pelo receio que lhes inspira o contato dos lázaros políticos, quais somos todos nós, os homens do trabalho e não do emprego público, os deserdados da pátria, os excluídos do seu banquete, mas que, a despeito de tudo, guardamos ainda uma esperança no peito e uma seta na aljava!… É para esses, sim, que o exercício de um direito pode tomar as proporções de um fenômeno perigoso, de uma nuvem tenebrosa, que esconde no bojo alguma tempestade. Quanto a nós, porém, não nos incomodemos por isso; e quanto a eles, deixemo-los conjecturarem o que lhes aprouver; e prossigamos em nossa marcha.


Volto a tratar, senhores, do assunto capital do nosso entretenimento, que já foi em síntese indicado a primeira vez que aqui nos reunimos. Esforçar-me-ei, sobretudo, por ser claro. Não compareço entre vós, para fazer-me admirar, mas para fazer-me compreender. A musa que me inspira nesta ocasião é muito modesta, para que me obrigue a trajar a grande gala da linguagem bordada a ouro, e muito menos a ouro francês. Alguma coisa de familiar, alguma coisa de designável por um discurso em mangas de camisa, é o que vos venho apresentar. Se a viagem é curta e aprazível, se fui eu quem vos convidou para ela, não seria uma extravagância, adicionada de uma impolidez, que eu quisesse ir a cavalo, quando os demais vão a pé? Nada, pois, de formalidades, nem jeitos oratórios; nada de espartilho retórico: todo a cômodo, e com toda a calma, vou expor-vos o que nos interessa.


Disse uma vez o padre Lacordaire que a posição mais desfavorável ao orador é quando tem de falar a homens que comem; porém há outra, a meu ver, ainda mais desfavorável: é quando se fala a homens que têm fome, se não se trata dos meios de satisfazê-la, ou ao menos de moderá-la. Tal seria, por certo, a minha posição diante de vós, como iniciador da ideia de um Club Popular, se me viesse à mente a singular lembrança de ocupar-me em outros assuntos, que não fossem os males da nossa vida política, o estado de penúria, e a pior das penúrias, a penúria moral, em que laboramos, o desânimo dos espíritos, a surdez das consciências, em uma palavra, todos os sintomas da doença, que mata as nações, o abandono de si mesmo, o esquecimento de seus direitos, pela falta de justiça e liberdade, de que todos nós, sentimo-nos sequiosos e famintos. Não me compete, nem seria agora oportuno, lançar as vistas no país inteiro, depondo sobre a mesa das dissecações o grande corpo brasileiro, para sujeitar a uma análise rigorosa a totalidade dos seus órgãos. Não interessa mesmo, nem a mim nem a vós, dividindo o Estado em suas partes naturais, tomar a província por objeto de nossa apreciação. Limito-me, portanto, ao município, e ao município concreto, quero dizer, a este de quem somos habitantes. É um fragmento do monstruoso tremó; mas este pedacinho reflete tão bem a nossa face, o nosso caráter nacional, como todo o espelho.



O que mais salta aos olhos, o que mais fere as vistas do observador, o fenômeno mais saliente da vida municipal, que bem se pode chamar o expoente da vida geral do país, é a falta de coesão social, o desagregamento dos indivíduos, alguma coisa que os reduz ao estado de isolamento absoluto, de átomos inorgânicos, quase podia dizer, de poeira impalpável e estéril. Entre nós, o que há de organizado é o Estado, não é a Nação; é o governo, é a administração, por seus altos funcionários na corte, por seus sub-rogados nas províncias, por seus ínfimos caudatários nos municípios; não é o povo, o qual permanece amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser a comunhão da língua, dos maus costumes e do servilismo.

Os cidadãos não podem, ou melhor não querem combinar a sua ação.


Nenhuma nobre aspiração os prende uns aos outros; eles não têm, nem força defensiva contra os assaltos do poder, nem força intelectual e moral para viverem por si; tal é o fato mais notável que a observação estabelece em geral, porém, que me parece não se manifestar em lugar algum tão carregado de más consequências, como na Escada. Aqui de certo, os habitantes do município, máxime os da cidade, fazem a impressão de viajantes, que se reuniram à noite em uma mesma casa de rancho mas logo que amanheça, cada um tomará o seu caminho, quase sem probabilidade de outra vez se encontrarem. Deste modo de viver à parte, de sentir e pensar à parte, resulta a indiferença, com que olha cada um para aquilo que pessoalmente não lhe diz respeito, e enquanto não chega o seu dia, contempla impassível os tormentos alheios, sem saber que, como disse o poeta:


A todos cabe o mal da humanidade,
De lágrimas e dor fatal convívio,
E aquilo que um tomou sobre seus ombros
É para os outros verdadeiro alívio.



Não fica aí. Essa impassibilidade, que acabo de assinalar, não se revela somente por uma certa ausência de sincero amor e caridade, nas relações puramente humanas, mas também pela falta de patriotismo, nas relações nacionais, pela ausência de senso político e dignidade pessoal, nos negócios locais. É a esta doença moral de que padece o povo da Escada, que o nosso Club propõe-se aplicar um remédio, senão de todo eficaz, ao menos paliativo.


E importa advertir: o Club Popular Escadense não toma por princípio diretor nenhum dos estribilhos da moda, menos que tudo a célebre trilogia: liberdade, igualdade e fraternidade, três palavras que se espantam de se acharem unidas, porque significam tres coisas reciprocamente estranhas e contraditórias, principalmente as duas primeiras. E para que não se me acuse de paradoxia, permiti-me, por um pouco, tratar de demonstrá-lo; o que tanto mais interessa, quanto é certo que não temos por nós nenhuma das três pessoas dessa trindade revolucionária, e por isso muito importa sabermos, se delas uma só nos basta, ou se de todas necessitamos, bem como se é possível à sua consecução.


Mas antes de tudo — que a liberdade e a igualdade são contraditórias e repelem-se mutuamente, não milita dúvida. A liberdade é um direito, que tende a traduzir-se no fato, um princípio de vida, uma condição de progresso e desenvolvimento; a igualdade, porém, não é um fato, nem um direito, nem um princípio, nem uma condição: é, quando muito, um postulado da razão, ou antes, do sentimento. A liberdade é alguma coisa de que o homem pode dizer: eu sou!…; a igualdade alguma coisa de que ele somente diz: quem me dera ser !… A liberdade entregue a si mesma, à sua própria ação, produz naturalmente a desigualdade, da mesma forma que a igualdade, tomada como princípio prático, naturalmente produz a escravidão. A liberdade é aquele estado no qual o homem pode empregar, tanto as suas próprias, como as forças da natureza ambiente, nos limites da possibilidade, para atingir um alvo, que ele mesmo escolhe. Onde, pois, o indivíduo é perturbado no uso de suas forças, e a respeito das ações que não se opõem à liberdade dos outros, nem às necessidades sociais, é sujeito a uma tutela, aí não existe liberdade, nem civil, nem política, nem de outra qualquer espécie. A igualdade é aquele estado da vida pública, no qual não se confere ao indivíduo predicado algum particular, como não se lhe confere particular encargo. Igual independência de todos, ou igual sujeição de todos. O mais alto grau imaginável da igualdade — o comunismo — porque ele pressupõe a opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau da servidão. A realização da liberdade satisfaz ao mais nobre impulso do coração e da consciência humana; a realização da igualdade só pode satisfazer ao mais baixo dos sentimentos: a inveja. Que uma e outra não se harmonizam, que são exclusivas e repugnantes entre si, prova-o de sobra a revolução francesa, que tendo começado em nome da liberdade, degenerou no fanatismo da igualdade, e reduziu-se ao absurdo nas mãos de um déspota. O povo francês assemelhou-se então a uma cidade que se submerge, só ficando de pé uma torre enorme, no meio do lago imenso: a figura de Napoleão! Estava assim, da melhor forma, o ideal de Mirabeau: — la monarchie sur la surface égale. Os indivíduos, ou os povos, que esquecem a liberdade por amor da igualdade, são semelhantes ao cão da fábula, que larga o pedaço de carne que tem na boca, pela sombra que vê na água do rio.


Não falo da classe econômica propriamente dita, porque a sua vida se limita a uma luta pelo capital, e nada tem que ver com as nossas lutas pelo direito. Após então vem o povo, o povo triste e sofredor, em cuja fronte, não poucas vezes, junto ao estigma da infelicidade, por cúmulo de miséria, a sorte imprime também o estigma da ingratidão; o povo que é o número, mas um número abstrato, um número que não é a força; perseguido, humilhado, abatido, a ponto de sobre ele os grandes disputarem e lançarem os dados, para ver quem o possui, como os judeus sortearam a túnica inconsútil do mártir do Calvário.


Não exagero, senhores, é a verdade. O povo brasileiro, ou muito restritamente, o povo da Escada, é tido na conta de uma coisa apropriável, se já não apropriada. Quereis uma prova entre muitas? Eu vos dou. Reparai bem: o ano passado, quando se tratava da qualificação dos votantes desta paróquia, nessa época de baixeza e picardia, que hoje porém, já não me espanta, porque depois disso tenho aqui mesmo testemunhado mais negras misérias, haveis de estar lembrados que os dois partidos em contenda, para mostrar qual deles tinha por si a maioria, levaram à imprensa, com uma ingenuidade infantil, somente a apreciação do número dos engenhos! … — “Há mais engenhos do lado dos liberais”, — diziam estes.— “Nem tantos, como alegam” — diziam os conservadores, e acrescentavam: — “Se os liberais têm alguns engenhos a mais, os dos conservadores, em compensação, são mais extensos, mais povoados, mais ricos…” — Eis aí.


Quereis melhor? Se isto não era uma questão de fábrica, isto é, de maior número de bois, cavalos e escravos, inclusive os cidadãos votantes, já sei que as palavras perderam o seu sentido, ou eu perdi o uso da razão. É pois evidente que, pela própria confissão das partes, está criada na Escada uma açucarocracia, a qual se julga com direito à posse de todos aqueles que vieram tarde e não encontraram um pouco de terra para chamarem sua, e dentro desse domínio manejarem sem piedade o bastão da prepotência.


Tudo isto, repito, senhores, é de uma clareza solar; de tudo isto estamos inteirados por amarga experiência. Porém, é certo que não devemos desanimar. O processo da ação do povo, se me é lícito assim expressar-me, para adquirir a posição perdida, é sumário: uma espécie de interdito unde vi, em matéria política. Ainda não passou ano e dia para intentá-lo, se é que o povo não prefere usar do meio que as leis permitem aos esbulhados da posse de coisas materiais, e que seria absurdo não permitir igualmente aos esbulhados de coisas mais sagradas que uma jeira de terreno, se é que já não chegamos aquele estado de vilania e transtorno dos conceitos morais, em que a vida é preferível à honra, e a propriedade preferível à vida. Esta linguagem eriça cabelos; a mais de um amigo da ordem pode ela parecer o cúmulo da extravagância; e todavia senhores, este meu vinho tem água, não é dele que se costuma beber nos festins da democracia. Seja, porém, como for, não hesito em declará-lo: o povo da Escada, a quem ora me dirijo, deve pôr-se fora da tutela. Tomando conta de si mesmo, e contestando aos poderosos a faculdade de disporem desta cidade, como de uma filial das suas fazendas, cumpre-lhe erguer-se à altura de um poder, com que eles devem contar, em bem ou em mal, e não continuar a ser um algarismo mínimo, um milésimo de força, cujo erro não lhe perturba os cálculos. Ao povo da Escada importa convencer-se que ele não tem para quem apelar, senão para o seu próprio gênio, que não é o da resignação e da humildade. Importa convencer-se que ninguém se lembra dele, ninguém por ele se interessa. Os magnatas do município, por mais que finjam o contrário, não escapam à censura de serem todos acordes no tratar com desprezo a esta localidade. Sirva de prova o fato extraordinário de não haver um só proprietário do termo, qualquer que seja o seu grau de riqueza, que possua dentro da cidade um prédio, digno de si, relativo à sua posição e à influência que por ventura queira ter. Não há um único sequer, que tenha aqui edificado, nem em grande nem em pequena escala. Muitos até existem, que contam nos dedos de uma só das mãos as vezes que têm vindo à sede do município, e ainda fica dedo desocupado para uma pitada de rapé.

Este fenômeno singular e significativo, creio eu, não se repete em outro lugar, pelo menos, com tão claro propósito de desdém votado à população da cidade. Seria fútil e desprezível a objeção que me fizessem, alegando que as despesas da edificação da nova matriz correram quase todas por conta desses mesmos proprietários. Nenhuma dúvida; porém, o que importa? Uma questão de bigotismo, senão antes de alardo pecuniário, ou de simples consideração ao burel de um capuchinho.


Não vos iludais, senhores. Em assunto de popularidade, de homens dedicados à causa popular, a experiência está feita; e sou tentado a dizer-vos, como o francês H. Beyle: — j´invite á se méfier de tout le monde, même de moi… — Aconselho-vos que desconfieis de todo mundo, até de mim mesmo. Confiai somente em vós, que releva levantardes a fronte, nos vossos esforços, que é mister multiplicar, no vosso próprio caráter, que é preciso reformar.


O município da Escada, e como ele, a província, e como a província, o país inteiro, anseia pela vinda de qualquer grande acontecimento. Não sei qual ele seja, mas ele há de vir.


Não sou judeu para crer no Messias, nem tenho a ingenuidade dos primitivos cristãos para acreditar na parousia; mas sou filósofo em confiar nas leis da história, que regulam o destino dos povos; e essas hão de também cumprir-se entre nós. Os cometas não percorrem uma mesma órbita, e as nações não seguem um mesmo caminho. Do país em geral se ergue como que um sussurro de imprecações e lamentos, é o naufrágio que se aproxima. Nada de bater nos peitos, nem de pedir misericórdia. Ninguém nos socorrerá, se o socorro não vier de nós mesmos. Abramos mão de nossos prejuízos, de nossas reservas, de nossos temores, e sejamos um povo livre.


Sim, meus senhores, é a liberdade que nos falta: não aquela que se exerce em falar, bradar, cuspir e macular o próximo, porque esta temo-la de sobra, mas aquela que se traduz em atos dignos e meritórios. Informa-nos escritor competente que no pórtico da nova casa do parlamento alemão existe, entre outros, o retrato de um célebre deputado liberal, Carlos Mathy, debaixo do qual se leem as seguintes palavras suas: A liberdade é o preço da vitória que adquirimos sobre nós mesmos. É esta, senhores, que deve provocar os nossos anhelos, é desta que carecemos: o preço da vitória adquirida, não tanto sobre um governo maléfico e execrável, como antes sobre nós mesmos, sobre os nossos desvarios, e a nossa facilidade em deixarmo-nos intimidar, ou seduzir, pela tentação dos seus demônios.


Entretanto, eu tenho, neste sentido, sombrias apreensões. Talvez já seja tarde, para consegui-lo. Notai bem: tarde, e não cedo. Não pertenço a escola dos teoréticos pacientes, que julgam o povo ainda não maduro para a liberdade. Como se fosse possível aprender a nadar sem meter-se dentro d´água, ou aprender a equitação sem montar a cavalo! Dislates iguais aos dos que querem que o povo passe por um tirocínio da liberdade, sem aliás exercê-la.


O que me causa apreensões, é o contrário disto. Receio que conosco suceda o que se deu com a mais robusta encarnação do bizantinismo moderno: o império de Napoleão III.


Este infeliz regime teve duas fases: uma de marcha em linha reta, na senda do despotismo, sem transigir, nem tergiversar — foi a época da ascensão ao seu apogeu; outra de decadência e enfraquecimento — foi a época das concessões e tentativas liberais, que durou até a queda final do império e o desastre da nação.


De 1852 a novembro de 1860, que é a data do primeiro decreto, onde o despotismo dignou-se de encurtar o diâmetro, e daí, de concessão em concessão, isto é, de fraqueza em fraqueza até 1870, quero dizer até Sedan !… Semelhante fato, senhores, confirma a seguinte verdade: — que qualquer governo corre o risco de cair, quando mente aos seus princípios e torna-se incoerente — assim como, que uma nação, por força do absolutismo, pode chegar ao estado de incapacidade para um regime livre. Desconfio que o nosso Libertas quae sera tamen… será de todo inútil. O Brasil já faz a impressão de um menino de cabelos brancos. Estamos estragados. Quando aprouver ao imperador conceder-nos um pouco mais de ar, não será fora de tempo, não estará já tudo perdido, até mesmo a honra? Tenho medo!… Nem há razão para estranhardes o paralelo. Se existe alguma diferença, é só de desvantagens para o nosso lado. Poucos anos antes da queda do segundo império, dizia dele um pensador político da Alemanha, que sem embargo da constituição, sem embargo de um senado e corpo legislativo, o que tudo não passava de maquinismo burocrático, o governo napoleônico não era mais do que um puro absolutismo, temperado pelo temor das bombas de Orsini.


Muito bem. O escritor disse a verdade, não, porém, toda a verdade. Não era somente o temor das bombas de Orsini que temperava o governo de Napoleão, o qual se pudera chamar de o socialismo no trono. Era também o amor das classes necessitadas, a continua atenção prestada aos interesses do quarto estado, ponto este que sempre constituiu o pensamento diretor do novo bonapartismo.


Sim, o governo absoluto de Napoleão era ainda temperado pelas sociétés de secours mutuels, pelas cités ouvriéres, pela société industrielle de Mulhouse; era ainda temperado pelos fourneaux do príncipe imperial, que forneciam comida aos trabalhadores por baratíssimo preço, pelos banhos gratuitos da capital; pelo Grand Cafe Parisien, levantado à porta de S. Martin, confinando com os quarteirões dos operários, no qual o homem pobre, por poucos soldos, à luz de candelabros e num divã de veludo, podia tomar o seu petit verre. Entretanto, nós outros o que é que temos? Também um puro absolutismo, apenas, porém, temperado… pela batalha de Avahy, pela Fosca, pela bancarrota do Estado, pela corrupção dos ministros, pela miséria do povo e as viagens do rei. Ou será que vós ao menos vós, cidadãos da Escada, tendes motivos de vos julgardes felizes? Vós que dificilmente adquiris o pão quotidiano, com o suor do vosso rosto, vós a quem é aplicável, bem como à maioria do país, o que uma vez disse Gladstone da sua Inglaterra: — Em nove casos de dez, a vida não é mais do que um combate pela existência?! E que combate! Um combate com a natureza, que não raro se vos mostra cruel; um combate com a sociedade, que se vos opõe não menos madrasta; um combate com o capital, que vos olha desconfiado, e não se digna de animar-vos; um combate com o Estado, que multiplica os impostos, aumenta as dificuldades, toma as vistas do futuro; e desta quádrupla luta é que tem de sair os meios de viver e educar os vossos filhos!… Eu não sou socialista: não encaro o número dos que cuidam poder, com um traço de pena, extinguir os males humanos, quase irremediáveis. Mas também não faço coro com a escola de Manchester; não penso que a pobreza é sempre o castigo da preguiça econômica, e que, como tal, qualquer medida de socorro ou alívio para ela, importa premiar os inertes e preguiçosos. Alto e bom som se diz que a Escada é riquíssima, que é um dos mais ricos municípios da província. Quero crer que seja assim. Porém não é estranhável que sendo o município tão abastado, ofereçam aliás os habitantes da cidade, por este lado, aspecto pouco lisonjeiro? Para as vinte mil cabeças da população do termo, esta cidade contribui com três mil, pouco mais ou menos. Sobre estas três mil almas, ou melhor, sobre estes três mil ventres, é probabilíssimo o seguinte cálculo:


90 por cento de necessitados, quase indigentes.

8 por cento dos que vivem sofrivelmente.

1 1/2 por cento dos que vivem bem.

1/2 por cento de ricos em relação.

Semelhante quadro, que pode pecar por excesso de cor de rosa, não é todavia apto para dar do nosso estado econômico outra ideia, senão a de um pauperismo medonho, quando muito, moderado pela esperança de uma sorte de loteria. Nesta triste conjuntura, o que faz o Estado, o que faz a província, o que faz a comuna, em favor da população, para diminuir-lhe os obstáculos e facilitar-lhe o trabalho? Nada mais nem menos do que sobre o costado da besta, já caída de fadiga, arrumar mais alguns quilos, afim de ajudá-la a erguer-se. O Estado e a Província sugam anualmente deste Município, sem falar de outros canais, e só do que corre pelas duas coletorias, de 25 a 30 contos de réis. Eis o que vai no refluxo. Vejamos agora o que vem no fluxo: 10 porcento dessa quantia, que se gasta com a magra instrução pública; 15 porcento, com a justiça e seus apêndices; 20 porcento, com a polícia; 1 a 2 porcento, com o artigo religião; e o resto, a saber, mais da metade, vai perder-se em outras plagas, sendo ainda para notar que as despesas com a polícia local são as únicas que trazem um resultado prático e sensível, pois que o cidadão, em muitas ocasiões, recebe no lombo a benéfica pancada do refle. Por sua vez a Municipalidade exercita, com o mesmo zelo, as suas funções exaurientes, e não se sabe, em última análise, em que se emprega a sua receita. Por toda parte, pois, e sob todos os pontos de vista, os mesmos sintomas mórbidos, as mesmas ânsias, a mesma angústia. As consciências como que perderam o centro de gravidade moral, e balançam-se inquietas em busca de um apoio. A instrução é quase nula, à medida que também é nulo o gosto de instruir-se; e temos em casa o exemplo. Acabais de ouvir que o dispêndio feito com as escolas desta cidade é muito inferior ao que se faz com a polícia: sinal evidente de atraso intelectual. Não limita-se a isso. Segundo a opinião de competentes, a proporção regular entre o número de habitantes de um lugar e o das pessoas que devem frequentar a escola, é de 12 a 15 porcento, se esse lugar quer ter o título de adiantado. Ora, dos três mil espíritos, que dissemos haver aqui dentro, 4 por cento e alguns quebrados é que se encontra realmente de frequência em cinco casas de instrução que existem, sendo somente 7 por cento o número dos matriculados !… Vê-se pois, que ainda entre nós há uma certa má suspeita contra a arte diabólica de ler e escrever, para servir-me da irônica expressão do italiano Aristides Gabelli.


Juntai esse aos demais fenômenos da nossa decadência.


O Club Popular Escadense, meus senhores, não nutre a pretensão, que seria ridícu1a, de vir levantar um dique de resistência contra a corrente de tantos males, cujo ligeiro esboço acabo de fazer; mas tem o intuito de incutir no povo desta localidade um mais vivo sentimento do seu valor, de despertar-lhe a indignação contra os opressores, e o entusiasmo pelos oprimidos. E há momentos, já disse com razão alguém, há momentos, em que o entusiasmo também tem o direito de resolver questões…


Tenho concluído.






20 de novembro de 2012

Vargas Llosa: El Elefante y la Cultura

Cuenta el historiador chileno Claudio Véliz que, a la llegada de los españoles, los indios mapuches tenían un sistema de creencias que ignoraba los conceptos de envejecimiento y de muerte natural. Para ellos, el hombre era joven y eterno. La decadencia física y la muerte sólo podían resultar de la magia, las malas artes o las armas de los adversarios. Esta convicción, sencilla y cómoda, ayudó a los mapuches a ser los feroces guerreros que fueron. No los ayudó, en cambio, a forjar una civilización original.

La actitud de los viejos mapuches está lejos de ser un caso extravagante. En realidad, se trata de un extendido fenómeno. Atribuir la causa de nuestros infortunios o defectos a los demás ― al 'otro' ― es un recurso que ha permitido a innumerables sociedades e individuos, si no a librarse de sus males, por lo menos a soportarlos y a vivir con la conciencia tranquila. Enmascarada detrás de sutiles razonamientos, oculta bajo frondosas retóricas, esta actitud es la raíz, el fundamento secreto, de una remota aberración a la que el siglo XIX volvió respetable: el nacionalismo. Dos guerras mundiales y la perspectiva de una tercera y última, que acabaría con la humanidad, no nos han librado de él, sino, más bien, parecen haberlo robustecido.

¿En qué consiste el nacionalismo en el ámbito de la cultura? Básicamente, en considerar lo propio un valor absoluto e incuestionable y lo extranjero un desvalor, algo que amenaza, socava, empobrece o degenera la personalidad espiritual de un país. Aunque semejante tesis difícilmente resiste el más somero análisis y es fácil mostrar lo prejuiciado e ingenuo de sus argumentos, y la irrealidad de su pretensión ― la autarquía cultural ―, la historia nos muestra que arraiga con facilidad y que ni siquiera los países de antigua y sólida civilización están vacunados contra ella. Sin ir muy lejos, la Alemania de Hitler, la Italia de Mussolini, la Unión Soviética de Stalin, la España de Franco, la China de Mao practicaron el "nacionalismo cultural", intentando crear una cultura incomunicada, y defendida de los odiados agentes corruptores ― el extranjerismo, el cosmopolitismo ― mediante dogmas y censuras. Pero en nuestros días es sobre todo en el Tercer Mundo, en los países subdesarrollados, donde el nacionalismo cultural se predica con más estridencia y tiene más adeptos. Sus defensores parten de un supuesto falaz; que la cultura de un país es, como las riquezas naturales y las materias primas que alberga su suelo, algo que debe ser protegido contra la codicia voraz del imperialismo, y mantenido estable, intacto e impoluto pues su contaminación con lo foráneo lo adulteraría y envilecería. Luchar por la 'independencia cultural', emanciparse de la 'dependencia cultural extranjera' a fin de 'desarrollar nuestra propia cultura' son fórmulas habituales en la boca de los llamados progresistas del Tercer Mundo. Que tales muletillas sean tan huecas como cacofónicas, verdaderos galimatías conceptuales, no es obstáculo para que resulten seductoras a mucha gente, por el airecillo patriótico que parece envolverlas. (Y en el dominio del patriotismo, ha escrito Borges, los pueblos sólo toleran afirmaciones). Se dejan persuadir por ellas, incluso, medios que se sienten invulnerables a las ideologías autoritarias que las promueven. Personas que dicen creer en el pluralismo político y en la libertad económica, ser hostiles a las verdades únicas y a los estados omnipotentes o omniscientes, suscriben, sin embargo, sin examinar lo que ellas significan, las tesis del nacionalismo cultural. La razón es muy simple: el nacionalismo es la cultura de los incultos y éstos son legión.


Hay que combatir resueltamente estas tesis a las que, la ignorancia de un lado y la demagogia de otro, han dado carta de ciudadanía, pues ellas son un tropiezo mayor para el desarrollo cultural de países como el nuestro. Si ellas prosperan jamás tendremos una vida espiritual rica, creativa y moderna, que nos exprese en toda nuestra diversidad y nos revele lo que somos nosotros mismos y ante los otros pueblos de la tierra. Si los propagadores del nacionalismo cultural ganan la partida y sus teorías se convierten en política oficial del 'ogro filantrópico' ― como ha llamado Octavio Paz al Estado de nuestros días ― el resultado es previsible: nuestro estancamiento intelectual y científico y nuestra asfixia artística, eternizarnos en una minoría de edad cultural y representar, dentro del concierto de las culturas de nuestro tiempo, el anacronismo pintoresco, la excepción folklórica, a la que los civilizados se acercan con despectiva benevolencia Sólo por sed de exotismo o nostalgias de la edad bárbara.

En realidad no existen culturas 'dependientes' y 'emancipadas' ni nada que se les parezca. Existen culturas pobres y ricas, arcaicas y modernas, débiles y poderosas. Dependientes lo son todas inevitablemente. Lo fueron siempre, pero lo son más ahora, en que el extraordinario adelanto de las comunicaciones ha volatizado las barreras entre las naciones y hecho a todos los pueblos copartícipes inmediatos y simultáneos de la actualidad. Ninguna cultura se ha gestado, desenvuelto y llegado a la plenitud sin nutrirse de otras y sin, a su vez, alimentar a las demás, en un continuo proceso de préstamos y donativos, influencias recíprocas y mestizajes, en el que sería dificilísimo averiguar qué corresponde a cada cual. Las nociones de 'lo propio' y 'lo ajeno' son dudosas, por no decir absurdas, en el dominio cultural. En el único campo en el que tienen asidero ― el de la lengua ― ellas se resquebrajan si tratamos de identificarlas con las fronteras geográficas y políticas de un país y convertirlas en sustento del nacionalismo cultural. Por ejemplo ¿es 'propio' o es 'ajeno' para los peruanos el español que hablamos junto con otros trescientos millones de personas en el mundo? Y, entre los quechua hablantes de Perú, Bolivia y Ecuador ¿quiénes son los legítimos propietarios de la lengua y la tradición quechua y quienes los 'colonizados' y 'dependientes' que 'deberían emanciparse de ellas? A idéntica perplejidad llegaríamos si quisiéramos averiguar a qué nación corresponde patentar como aborigen el monólogo interior, ese recurso clave de la narrativa moderna. ¿A Francia, por Edouard Dujardiez, el mediocre novelista que fue el primero en usarlo? ¿A Irlanda, por el célebre monólogo de Molly Bloom en el Ulises de Joyce que lo entronizó en el ámbito literario? ¿O a Estados Unidos donde, gracias a la hechicería de un Faulkner, adquirió flexibilidad y suntuosidad insospechadas? Por este camino ― el del nacionalismo ― se llega en el campo de la cultura, tarde o temprano, a la confusión y al disparate.

Lo cierto es que en este dominio, aunque parezca extraño, lo propio y lo ajeno se confunden y la originalidad no está reñida con las influencias y aun con la imitación y hasta el plagio y que el único modo en que una cultura puede florecer es en estrecha interdependencia con las otras. Quien trata de impedirlo no salva la 'cultura nacional': la mata.

Unos ejemplos de lo que digo, tomados del quehacer que me es más afín: el literario. No es difícil mostrar que los escritores latinoamericanos que han dado a nuestras letras un sello más personal fueron, en todos los casos, aquellos que mostraron menos complejos de inferioridad frente a los valores culturales forasteros y se sirvieron de ellos a sus anchas y sin el menor escrúpulo a la hora de crear. Si la poesía hispanoamericana moderna tiene una partida de nacimiento y un padre, ellos son el modernismo y su fundador: Rubén Darío ¿Es posible concebir un poeta más 'dependiente' y más 'colonizado' por modelos extranjeros que este nicaragüense universal? Su amor desmedido y casi patético por los simbolistas y parnasianos franceses, su cosmopolitismo vital, esa beatería enternecedora con que leyó, admiró y se empeñó en aclimatar a las modas literarias del momento su propia poesía, no hicieron de ésta un simple epígono, una 'poesía subdesarrollada y dependiente'. Todo lo contrario. Utilizando con soberbia libertad, dentro del arsenal de la cultura de su tiempo, todo lo que sedujo su imaginación, sus sentimientos y su instinto, combinando con formidable irreverencia esas fuentes disímiles en las que se mezclaban la Grecia de los filósofos y los trágicos con la Francia licenciosa y cortesana del siglo XVIII y con la España del Siglo de Oro y con su experiencia americana, Rubén Darío llevó a cabo la más profunda revolución experimentada por la poesía española desde los tiempos de Góngora y Quevedo, rescatándola del academicismo en que languidecía e instalándola de nuevo, como cuando los poetas españoles del XVI y el XVII, a la vanguardia de la modernidad.

El caso de Darío es el de casi todos los grandes artistas y escritores; es el de Machado de Assis, en el Brasil, que jamás hubiera escrito su hermosa comedia humana sin haber leído antes la de Balzac; el de Vallejo en el Perú, cuya poesía .aprovechó todos los' ismos' que agitaron la vida literaria en América Latina y en Europa entre las dos guerras mundiales, y es, en nuestros días, el caso de un Octavio Paz en México y el de un Borges en Argentina. Detengámonos un segundo en este último. Sus cuentos, ensayos y poemas son, seguramente, los que mayor impacto han causado en otras lenguas de autor contemporáneo de nuestro idioma y su influencia se advierte en escritores de los países más diversos. Nadie como él ha contribuido tanto a que nuestra literatura sea respetada como creadora de ideas y formas originales. Pues bien: ¿hubiera sido posible la obra de Borges sin 'dependencias' extranjeras? ¿Nos llevaría el estudio de sus influencias por una variopinta y fantástica geografía cultural a través de los continentes, las lenguas y las épocas históricas? Borges es un diáfano ejemplo de cómo la mejor manera de enriquecer con una obra original la cultura de la nación en que uno ha nacido y el idioma en el que escribe es siendo, culturalmente, un ciudadano del mundo.


II

La manera como un país fortalece y desarrolla su cultura es abriendo sus puertas y ventanas, de par en par, a todas las corrientes intelectuales, científicas y artísticas, estimulando la libre circulación de las ideas, vengan de donde vengan, de manera que la tradición y la experiencia propias se vean constantemente puestas a prueba, y sean corregidas, completadas y enriquecidas por las de quienes, en otros territorios y con otras lenguas, y diferentes circunstancias, comparten con nosotros las miserias y las grandezas de la aventura humana. Sólo así, sometida a ese reto continuo, será nuestra cultura auténtica, contemporánea y creativa, la mejor herramienta de nuestro progreso económico y social.

Condenar el 'nacionalismo cultural' como una atrofia para la vida espiritual de un país no significa, por supuesto, desdeñar en lo más mínimo las tradiciones y modos de comportamiento nacionales o regionales ni objetar que ellos sirvan, incluso de manera primordial, a pensadores, artistas, técnicos e investigadores del país para su propio trabajo. Significa, únicamente, reclamar, en el ámbito de la cultura, la misma libertad y el mismo pluralismo que deben reinar en lo político y en lo económico en una sociedad democrática. La vida cultural es más rica mientras es más diversa y mientras más libre e intenso es el intercambio y la rivalidad de ideas en su seno.

Los peruanos estamos en una situación de privilegio para saberlo, pues nuestro país es un mosaico cultural en el que coexisten o se mezclan 'todas las sangres', como escribió Arguedas: las culturas prehispánicas y España y todo el occidente que vino a nosotros con la lengua y la historia española; la presencia africana, tan viva en nuestra música; las inmigraciones asiáticas y ese haz de comunidades amazónicas con sus idiomas, leyendas y tradiciones. Esas voces múltiples expresan por igual al Perú, 'país plural, y ninguna tiene más derecho que otra a atribuirse mayor representatividad. En nuestra literatura advertimos parecida abundancia. Tan peruano es Martín Adán, cuya poesía no parece tener otro asiento ni ambición que el lenguaje, como José María Eguren, que creía en las hadas y resucitaba en su casita de Barranco a personajes de los mitos nórdicos, o como José María Arguedas que transfiguró el mundo de los Andes en sus novelas, o como César Moro que escribió sus más bellos poemas en francés. Extranjerizante a veces y a veces folklórica, tradicional con algunos y vanguardista con otros, costeña, serrana o selvática, realista y norteamericanizada, en su contradictoria factura ella expresa esa compleja y múltiple verdad que somos. Y la expresa porque nuestra literatura ha tenido la fortuna de desenvolverse con una libertad de la que no hemos disfrutado siempre los peruanos de carne y hueso. Nuestros dictadores eran incultos que privaban de la libertad a los hombres, rara vez a los libros. Pero eso pertenece al pasado. Las dictaduras de ahora son ideológicas y quieren dominar también los espíritus. Para eso se valen de pretextos, como el de que la cultura nacional debe ser protegida contra la infiltración foránea. No lo admitamos. No admitamos que, con el argumento de defender la' cultura contra el peligro de 'desnacionalización', los gobiernos establezcan sistemas de control del pensamiento y la palabra que, en verdad, no persiguen otro objetivo que impedir las críticas. No admitamos que, con el cuento de preservar la pureza o la salud ideológica de la cultura, el Estado se atribuya una función rectora y carcelera del trabajo intelectual y artístico de un país. Cuando esto ocurre, la vida cultural queda atrapada en la camisa de fuerza de una burocracia y se anquilosa [paralisa] sumiendo a la sociedad en el letargo espiritual.

Para asegurar la libertad y el pluralismo cultural es preciso fijar claramente la función del Estado en este campo. Esta función sólo puede ser la de crear las condiciones más propicias para la vida cultural y la de inmiscuirse lo menos posible en ella. El Estado debe garantizar la libertad de expresión y libre tránsito de las ideas, fomentar la investigación y las artes, garantizar el acceso a la educación y a la información de todos, pero no imponer ni privilegiar doctrinas, teorías o ideologías, sino permitir que éstas florezcan y compitan libremente. Ya sé que es difícil y casi utópico conseguir esa neutralidad frente a la vida cultural del Estado de nuestros días, ese elefante tan grande y tan torpe que con sólo moverse causa estragos. Pero si no conseguimos controlar sus movimientos y reducirlos al mínimo indispensable acabará pisoteándonos y devorándonos.

No repitamos, en nuestros días, el error de los indios mapuches, combatiendo supuestos enemigos extranjeros sin advertir que los principales obstáculos que tenemos que vencer están entre o dentro de nosotros mismos. Los desafíos que debemos enfrentar, en el campo de la cultura, son demasiado reales y grandes para, además, inventarnos dificultades imaginarias como las de potencias forasteras empeñadas en agredimos culturalmente y en envilecer nuestra cultura. No sucumbamos ante esos delirios de persecución ni ante la demagogia de los politicastros incultos, convencidos de que todo vale en su lucha por el poder y que, si llegaran a ocuparlo, no vacilarían, en lo que concierne a la cultura, en rodearla de censuras y asfixiarla con dogmas para, como el Calígula de Albert Camus, acabar con los contradictores y las contradicciones. Quienes proponen esas tesis se llaman a sí mismos, por una de esas vertiginosas sustituciones mágicas de la semántica de nuestro tiempo, 'progresistas'. En realidad, son los retrógrados y oscurantistas contemporáneos, los continuadores de esa sombría dinastía de carceleros del espíritu, como los llamó Nietzsche, cuyo origen se pierde en la noche de la intolerancia humana, y en la que destacan, idénticos y funestos a través de los tiempos, los inquisidores medievales, los celadores de la ortodoxia religiosa, los censores políticos y los comisarios culturales fascistas y estalinistas.

Además del dogmatismo y la falta de libertad, de las intrusiones burocráticas y los prejuicios ideológicos, otro peligro ronda el desarrollo de la cultura en cualquier sociedad contemporánea: la sustitución del producto cultural genuino por el producto seudo-cultural que es impuesto masivamente en el mercado a través de los grandes medios de comunicación. Esta es una amenaza cierta y gravísima y sería insensato restarle importancia. La verdad es que estos productos seudo-culturales son ávidamente consumidos y ofrecen a una enorme masa de hombres y mujeres un simulacro de vida intelectual, embotándoles la sensibilidad, extraviándoles el sentido de los valores artísticos y anulándoles para la verdadera cultura. Es imposible que un lector cuyo gusto literario se ha establecido leyendo a Corín Tellado aprecie a Cervantes o a Cortázar, o que otro que ha aprendido todo lo que cabe en el Reader's Digest, haga el esfuerzo necesario para profundizar en un área cualquiera del conocimiento, y que mentes condicionadas por la publicidad se atrevan a pensar por cuenta propia. La chabacanería [grosseria] y el conformismo, la chatura intelectual y la indigencia artística, la miseria formal y moral de estos productos seudo-culturales afectan profundamente la vida espiritual de un país. Pero es falso que este sea un problema infligido a los países subdesarrollados por los desarrollados. Es un problema que unos y otros compartimos, que resulta del adelanto tecnológico de las comunicaciones y del desarrollo de la industria cultural, y al que ningún país del mundo, rico o pobre, adelantado o atrasado, ha dado aún solución. En la culta Inglaterra el escritor más leído no es Antony Burgess ni Graham Green sino Bárbara Cartland y las telenovelas que hacen las delicias del público francés son tan ruines como las mexicanas o norteamericanas. La solución de este problema no consiste, por supuesto en establecer censuras que prohíban los productos seudo-culturales y den luz verde a los culturales. La censura no es nunca una solución, o, mejor dicho, es la peor solución, la que siempre acarrea males peores que los que quiere resolver. Las culturas "protegidas ", se tiñen [tingem] de oficialismo y terminan adoptando formas más caricaturales y degradadas que las que surgen, junto con los auténticos productos culturales, en las sociedades libres.

Ocurre que la libertad, que en este campo es también, siempre, la mejor opción, tiene un precio que hay que resignarse a pagar. El extraordinario desarrollo de los medios de comunicación ha hecho posible, en nuestra época, que la cultura, que en el pasado fue, por lo menos en sus formas más ricas y elevadas, patrimonio de una minoría, se democratice y esté en condiciones de llegar, por primera vez en la historia, a la inmensa mayoría. Esta es una posibilidad que debe entusiasmamos. Por primera vez existen las condiciones técnicas para que la cultura sea de verdad popular. Es, paradójicamente, esta maravillosa posibilidad la que ha favorecido la aparición y el éxito de la industria masiva de productos semi-culturales. Pero no confundamos el efecto con la causa. Los medios de comunicación masivos no son culpables del uso mediocre o equivocado que se haga de ellos. Nuestra obligación es conquistarlos para la verdadera cultura, elevando mediante la educación y la información el nivel del público, volviendo a éste cada vez más riguroso, más inquieto y más crítico, y exigiendo sin tregua a quienes controlan estos medios ― el Estado y las empresas particulares ― una mayor responsabilidad y un criterio más ético en el empleo que les dan. Pero es, sobre todo, a los intelectuales, técnicos, artistas y científicos, a los productores culturales de todo orden, a quienes les incumbe una tarea audaz y formidable: asumir nuestro tiempo, comprender que la vida cultural no puede ser hoy, como ayer, una actividad de catacumbas, de clérigos encerrados en conventos o academias, sino algo a lo que puede y debe tener acceso el mayor número. Esto exige una reconversión de todo el sistema cultural, que abarque desde un cambio de psicología en el productor individual, y de sus métodos de trabajo, hasta la reforma radical de los canales de difusión y medios de promoción de los productos culturales, una revolución, en suma de consecuencias difíciles de prever. La batalla será larga y difícil, sin duda, pero la perspectiva de lo que significaría el triunfo debería damos fuerza moral y coraje para librarla; es decir, la posibilidad de un mundo en el que, como quería Lautreamont para la poesía, la cultura sea por fin de todos, hecha por todos y para todos.

Publicado em Vuelta nr. 70 de setembro de 1982.

13 de novembro de 2012

Paz: Dostoievsky

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Dostoievski: el diablo y el ideólogo

Octavio Paz

Hace un siglo, el 28 de enero de 1881, murió Fedor Dostoievski. Desde entonces su influencia no ha cesado de crecer y extenderse; primero en su patria ― ya había alcanzado en vida la celebridad ―, después en Europa, América y Asia. Esta influencia no ha sido exclusivamente literaria sino espiritual y vital: varias generaciones han leído sus novelas no como ficciones sino como estudios sobre el alma humana y cientos de miles de lectores en todo el mundo han conversado y discutido silenciosamente con sus personajes, como si fuesen viejos conocidos. Su obra ha marcado a espíritus tan diversos como Nietzsche y Gide. Faulkner y Camus; en México dos escritores lo leyeron con pasión, sin duda porque pertenecían a su misma familia intelectual y se reconocían en muchas de sus ideas y obsesiones: Vasconcelos y Revueltas. Es (o fue) un autor preferido por los jóvenes: todavía recuerdo las conversaciones interminables que sostenía, al finalizar el bachillerato, con algunos compañeros de clase, en caminatas que comenzaban al anochecer en San Ildefonso y terminaban, pasada la medianoche, en Santa María o en la Avenida de los Insurgentes, en busca del último tranvía. Iván y Dimitri Karamazov peleaban en cada uno de nosotros.

Nada más natural que aquel fervor: a pesar del siglo que nos separa, Dostoievski es nuestro gran contemporáneo. Muy pocos escritores del pasado poseen su actualidad: leer sus novelas es leer una crónica del siglo XX. Pero su actualidad no es la de la novedad intelectual o literaria. Por sus gustos y sus preocupaciones estéticas es un escritor de otra edad; es prolijo y, si no fuese por su humor, extrañamente moderno, muchas de sus páginas serían tediosas. Su mundo histórico no es el nuestro. El Diario de un escritor tiene muchas páginas que me repugnan por su esclavismo y antisemitismo. Sus tiradas antieuropeas me recuerdan, aunque son más inspiradas, los desahogos y resentimientos del nacionalismo mexicano e hispanoamericano. Su visión de la historia a veces es profunda pero también confusa: carece de esa comprensión del acontecimiento, a un tiempo rápida y aguda, que nos deleita, por ejemplo, en un Stendhal. Tampoco tuvo la mirada de un Tocqueville, que traspasa la superficie de una sociedad y de una época. No fue, como Tolstoy, un cronista épico. No nos cuenta lo que pasa sino que nos obliga a descender al subsuelo para que veamos qué es lo que está pasando realmente: nos obliga a vernos a nosotros mismos. Dostoievski es nuestro contemporáneo porque adivinó cuáles iban a ser los dramas y conflictos de nuestra época. Y lo adivinó no porque tuviese el don de la doble vista o fuese capaz de prever los sucesos futuros sino porque tuvo la facultad de penetrar en el interior de las almas.

Fue uno de los primeros ― tal vez el primero ― que se dio cuenta del nihilismo moderno. Nos ha dejado descripciones de ese fenómeno espiritual que son inolvidables y que, todavía, nos estremecen por su penetración y su misteriosa exactitud. El nihilismo de la Antigüedad estaba emparentado con el escepticismo y el epicureísmo; su ideal era una noble serenidad: alcanzar la ecuanimidad ante los accidentes de la fortuna. El nihilismo de la India antigua, que tanto impresionó a Alejandro y a sus acompañantes, según cuenta Plutarco, era una actitud filosófica no sin analogía con el pirronismo y que terminaba en la contemplación de la vacuidad. El nihilismo era, para Nagarjuna y sus seguidores, la antesala de la religión. Pero el nihilismo moderno, aunque también nace de una convicción intelectual, no desemboca ni en la impasibilidad filosófica ni en la beatitud de la ataraxia; más bien es una incapacidad para creer y afirmar algo, una falla espiritual más que una filosofía.

Nietzsche imaginó el advenimiento de un "nihilista completo", encarnado en la figura del Superhombre, que juega, danza y ríe en los giros del Eterno Retorno. La danza del Superhombre celebra la insignificancia universal, la evaporación del sentido y la subversión de los valores. Pero el verdadero nihilista, como lo vio con mayor realismo Dostoievski, no danza ni ríe: va de aquí para allá ― alrededor de su cuarto o, es igual para él, alrededor del mundo ― sin poder jamás descansar pero también sin poder hacer nada. Está condenado a dar vueltas, hablando con sus fantasmas. Su mal, como el de los libertinos de Sade o la acidia de los monjes medievales, atacados por el demonio de mediodía, es una continua insatisfacción, un no poder amar a nadie ni a nada, una agitación sin objeto, un disgusto ante sí mismo ― y un amor por sí mismo. El nihilista moderno, Narciso desdichado, mira en el fondo del agua su imagen rota en pedazos. La visión de su caída lo fascina: siente náuseas ante sí mismo y no puede apartar los ojos de sí. Quevedo adivinó su estado en dos líneas difíciles de olvidar:

las aguas del abismo
donde me enamoraba de mí mismo.

Stavrogin, el héroe de Demonios (aunque sea menos literal, la antigua traducción: Los poseídos, era más exacta), escribe a Daria Pavlovna, que lo amaba: "He puesto a prueba, en todas partes, mi fuerza ... Durante esas pruebas, ante mí mismo o ante los otros, esa fuerza se ha revelado siempre sin límites. Pero ¿a qué aplicarla? Esto es lo que nunca supe y lo que continúo sin saber, a pesar de todo el ánimo que quieres darme ... Puedo sentir el deseo de realizar una buena acción y esto me da placer; sin embargo, experimento el mismo placer ante el deseo de cometer una maldad ... Mis sentimientos son mezquinos, nunca fuertes ... Me lancé al libertinaje ... pero no amo ni me gusta el libertinaje... ¿ Crees, porque me amas, que podrás darle algún propósito a mi existencia? No seas imprudente: mi amor es tan mezquino como yo ... Tu hermano me dijo un día que aquel que ya no tiene lazos con la tierra, pierde inmediatamente a sus dioses, es decir, a sus designios. Se puede discutir de todo indefinidamente pero yo sólo puedo negar, negar sin la menor grandeza de alma, sin fuerza. En mí, la negación misma es mezquina. Todo es fofo, blanduzco mole. El generoso Kirilov no pudo soportar su idea y se voló la tapa de los sesos estourou os miolos ... Yo nunca podría perder la razón ni creer en una idea, como él ... Yo nunca, nunca, podría darme un tiro en la sien." ¿Cómo definir a esta situación? Desánimo, falta de ánima. Stavrogin: el desalmado.

Sin embargo, después de haber escrito esa carta, Stavrogin se ahorca en el desván. Ultima paradoja: el cordón era de seda y el suicida, previa y cuidadosamente, lo había untado de jabón. La grandeza del nihilista no reside ni en su actitud ni en sus ideas sino en su lucidez. Su claridad lo redime de lo que Stavrogin llamaba su bajeza o mezquindad. ¿O el suicidio, lejos de ser una respuesta, es otra prueba? Si es así, es una prueba insuficiente. No importa: el nihilista es un héroe intelectual pues se atreve a penetrar en su alma dividida, a sabiendas de que se trata de una exploración sin esperanza. Nietzsche diría que Stavrogin es un "nihilista incompleto": le falta el saber del Eterno Retorno. Pero quizá sea más exacto decir que el personaje de Dostoievski, como tantos de nuestros contemporáneos, es un cristiano incompleto. Ha dejado de creer pero no ha podido substituir las antiguas certidumbres por otras ni vivir a la intemperie, sin ideas que justifiquen o den sentido a su existencia. Dios ha desaparecido, no el mal. La pérdida de las referencias ultraterrenas no extinguen al pecado: al contrario, le dan una suerte de inmortalidad. El nihilista está más cerca del pesimismo gnóstico que del optimismo cristiano y su esperanza en la salvación. Si no hay Dios no hay redención de los pecados pero tampoco hay abolición del mal: el pecado deja de ser un accidente, un estado y se transforma en la condición permanente de los hombres. Es un agustinismo al revés: el mal es ser. El utopista quisiera traer el cielo a la tierra, hacernos dioses; el nihilista se sabe condenado de nacimiento: la tierra ya es el infierno.

El retrato del nihilista, ¿es un autorretrato? Si y no: Dostoievski quiere escapar del nihilismo no por el suicidio y la negación sino por la afirmación y la alegría. La respuesta al nihilismo, enfermedad de intelectuales, es la simplicidad vital de Dimitri Karamazov o la alegría sobrenatural de Aliocha. De una y otra manera, la respuesta no está en la filosofía y las ideas sino en la vida. La refutación al nihilismo es la inocencia de los simples. El mundo de Dostoievski está poblado de hombres, mujeres y niños a un tiempo cotidianos y prodigiosos. Unos san angustiados y otros sensuales, unos cantan en la abyección y otros se desesperan en la prosperidad. Hay santos y criminales, idiotas y genios, mujeres piadosas como un vaso de agua y niños que son ángeles atormentados por sus padres. (¡Qué opuestas visiones de la niñez la de Dostoievski y la de Freud! Mundo de criminales y justos: para unos y otros están abiertas las puertas del reino de los cielos. Todos pueden salvarse o perderse. El cadáver del padre Zósima despide un tufo exala um cheiro de corrupción, revelador de que, a pesar de su piedad, no murió en olor de santidad; en cambio, al recordar a los bandidos y criminales que fueron sus compañeros de prisión en Siberia, Dostoievski dice: "allá el hombre, de pronto, escapa a toda medida". El hombre, "criatura improbable", puede salvarse en cualquier momento. En esto el cristianismo de Dostoievski está cerca de las ideas sobre la libertad y la gracia de Calderón, Tirso y Mira de Amescua.

Para nosotros, los santos y las prostitutas, los criminales y los justos de Dostoievski poseen una realidad casi sobrehumana; quiero decir, son seres insólitos y de otro tiempo. Un tiempo en vías de extinción: pertenecen a la era preindustrial. En este sentido Marx fue más lúcido pues previó la disgregación de los vínculos tradicionales y la erosión de las antiguas formas de vida por la doble acción del mercado capitalista y la industria. Pero Marx no adivinó el surgimiento de un nuevo tipo de hombres que, aunque llamándose sus herederos, consumarían en el siglo XX la ruina de los sueños y aspiraciones socialistas. Dostoievski fue el primero en describir esta clase de hombres. Nosotros los conocemos muy bien pues en nuestros días se han convertido en legión: son los sectarios y los fanáticos de la ideología, los prosélitos de los Stavrogin y los Iván. Su prototipo es Smerdiakov, el parricida, discípulo de Iván.

Los sectarios no han heredado de los nihilistas la lucidez sino la incredulidad. Mejor dicho, han convertido a la incredulidad en una nueva y más baja superstición. Dostoievski los llama endemoniados aunque, a diferencia de lván y de Stavrogin, no tienen conciencia de que están poseídos por los diablos. Por eso los compara con los cerdos del Evangelio (San Lucas, VII, 32-36). Al perder su antigua fe, veneran ídolos falsamente racionales: el progreso, las utopías sociales y revolucionarias. Han abjurado de la religión de sus padres, no de la religión: en lugar de Cristo y la Virgen adoran dos o tres ideas de manual. Son los antepasados de nuestros terroristas. El mundo de Dostoievski es el de una sociedad enferma de esa corrupción de la religión que llamamos ideología. Su mundo es la prefiguración del nuestro.

Dostoievski fue revolucionario en su juventud. Por sus actividades fue encarcelado. condenado a muerte y después perdonado. Pasó varios años en Siberia ― los campos de concentración de la Rusia actual son una herencia perfeccionada y amplificada del sistema de represión zarista ― y a su regreso rompió con su pasado radical. Fue conservador, cristiano, monárquico y nacionalista. Sin embargo, sería un error reducir su obra a una definición ideológica. No fue un ideólogo ― aunque las ideas tengan una importancia cardinal en sus novelas ― sino un novelista. Uno de sus héroes, Dimitri Karamazov, dice: Debemos amar más a la vida que al sentido de la vida. Dimitri es una respuesta a Iván, pero no es la respuesta: Dostoievski no opone una idea a otra sino una realidad humana a otra. A diferencia de Flaubert, James o Proust, las ideas son reales para él, pero no en sí mismas sino como una dimensión religiosa de la existencia. Las únicas ideas que le interesaron fueron las ideas encarnadas. Algunas vienen de Dios, es decir, de la profundidad del corazón; otras, las más, vienen del diablo, es decir, del cerebro. Como el alma de los clérigos medievales, la conciencia del intelectual moderno es un teatro de batalla. Las novelas de Dostoievski, desde esta perspectiva, son parábolas religiosas y su arte está más cerca de San Pablo, San Agustín y Pascal que el realismo moderno. Al mismo tiempo, por el rigor de sus análisis psicológicos, su obra anticipa a Freud y, en cierto modo, lo trasciende.

Debemos a Dostoievski el diagnóstico más profundo y completo de la enfermedad moderna: la escisión psíquica, la conciencia dividida. Su descripción es, simultáneamente, psicológica y religiosa. Stavrogin e Iván padecen visiones: ven y hablan con espectros que son demonios. Al mismo tiempo, como ambos son modernos, atribuyen esas apariciones a trastornos psíquicos: son proyecciones de su alma perturbada. Pero ninguno de los dos está muy seguro de esa explicación. Una y otra vez, en sus conversaciones con sus espectrales visitantes, se ven constreñidos a aceptar, con desesperación, su realidad: en verdad hablan con el diablo. La conciencia de la escisión es diabólica: estar poseído significa saber que el yo se ha roto y que hay un extraño que usurpa nuestra voz. ¿Ese extraño es el diablo o nosotros mismos? Cualquiera que sea nuestra respuesta, la identidad de la persona se escinde. Estos pasajes son alucinantes: las conversaciones de Iván con sus demonios están relatadas con gran realismo y como si se tratase de sucesos cotidianos. Abundan las situaciones absurdas y las reflexiones irónicas. Alternativamente el miedo nos hace reír y nos hiela la sangre. Experimentamos una fascinación ambigua: la descripción psicológica se transforma insensiblemente en especulación metafísica, esta en visión religiosa y, en fin, la visión en cuento que mezcla de modo inextricable lo sobrenatural y lo cotidiano, lo grotesco y lo abismal.

Los diablos de Dostoievski poseen una veracidad única en la literatura moderna. Desde el siglo XVIII los fantasmas de nuestros poemas y novelas son poco convincentes. Son personajes de comedia y la afectación de su lenguaje y de sus actitudes es, a un tiempo, pomposa e insoportable. Los de Goethe y Valéry son plausibles por su mismo carácter extremadamente intelectual y simbólico; también son aceptables los que de manera deliberada e irónica se presentan como ficciones fantásticas: el diablo de La mano encantada de Nerval o el delicioso Diablo enamorado de Cazotte. Pero los diablos modernos hacen todo lo posible por hacernos saber que vienen de allá, del mundo subterráneo. Son los parvenus de lo sobrenatural. Aunque los diablos de Dostoievski también son modernos y no se parecen a los antiguos demonios medievales y barrocos ― lascivos, astutos y un poco estúpidos ― no son literarios. Tienen una realidad clínica, por decirlo así. En esto reside, quizá, su gran descubrimiento: vio el parentesco oculto entre el mal y la enfermedad, entre la posesión y la reflexión. Son diablos que razonan y que, como si fuesen psicoanalistas, se empeñan en probar su inexistencia, su naturaleza imaginaria. Triunfan gracias a esos razonamientos irrefutables; Iván y Savrogin, dos intelectuales, no tienen más remedio que creerles: son verdaderamente el diablo pues solamente el diablo puede razonar así. Pero también estarían poseídos por el diablo si se aferrasen a la creencia de que se trata de meras alucinaciones de una mente enferma. En uno y otro caso, los dos están poseídos por la negación, esencia del demonio. Así se cumple el pensamiento que aterra a Iván: para creer en el diablo no es necesario creer en Dios.

Hay una especie inmune a la seducción del diablo: el ideólogo. Es el hombre que ha extirpado la dualidad. No conversa: demuestra, adoctrina, refuta, convence, condena. Llama a los otros camaradas pero jamás habla con ellos: habla con su idea. Tampoco habla con el otro que todos llevamos dentro. Ni siquiera sospecha que existe: el otro es una fantasía idealista, una superstición pequeño-burguesa. El ideólogo es el mutilado del espíritu: le falta la mitad de sí mismo. Dostoievski amaba a los pobres y a los simples, a los humillados y ofendidos pero nunca ocultó su antipatía hacia los que se decían sus salvadores. Le parecía absurda su "pretensión de querer liberar al hombre de la carga de la libertad". Carga terrible y preciosa. Los ideólogos han correspondido a su antipatía con otra no menos intensa. En una carta a su amiga Inés Armand, Lenin lo llama "el archimediocre Dostoievski". En otra ocasión dijo: "no pierdo el tiempo con esa basura". En la época de Stalin fue un autor casi prohibido y todavía hoy, en los círculos oficiales, es visto como reaccionario y un enemigo. A pesar de la hostilidad gubernamental, sus libros son los más leídos en Rusia, sobre todo entre los estudiantes, los intelectuales y, claro, los detenidos en los campos de concentración.

El tirano es arbitrario y caprichoso; contra los excesos de locos y desequilibrados como Nerón o Calígula, el remedio tradicional ha sido el puñal del regicida. Es un recurso inutilizable contra el despotismo ideológico, que es sistemático e impersonal: no se puede asesinar a una abstracción. Pero la ideología, que es inmune a las balas, no lo es a la crítica. De allí que el déspota ideológico no conozca, como forma de expresión, sino el monólogo y el discurso. La tiranía del ideólogo es el soliloquio de un profesor sádico y pedante, empeñado en hacer de la sociedad un cuadrado y de cada hombre un triángulo. Por esto, aparte de la permanente fascinación que sentimos ante su obra, Dostoievski es actual. Su actualidad es moral y política: nos enseña que la sociedad no es un pizarrón quadro-negro y que el hombre, criatura imprevisible, escapa a todas las definiciones y prisiones, incluso a las del tirano convertido en geómetra.


Publicado em Revista Vuelta nr. 52, março de 1981.