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10 de julho de 2015

A mente petista

Carlos U Pozzobon

“Se a única esperança do niilismo reside no pensamento de que milhões de escravos possam um dia constituir uma humanidade que seria livre para sempre, então a história não é mais do que um sonho desesperado. O pensamento histórico foi libertar o homem de uma submissão para um paraíso; mas esta libertação demandava dele a mais absoluta sujeição à evolução histórica. O homem se refugia na permanência do partido da mesma forma que ele antigamente se prostrava perante o altar. Por isso que a Era que ousa clamar ser a mais rebelde que jamais existiu apenas oferece uma opção entre os vários tipos de conformismo. A paixão real do século vinte é a servidão”. (Albert Camus, L'Homme Revolté, p. 234).


Existem três fatores interligados que compõem o universo da mente petista. Discorrer sobre eles se torna um imperativo para o entendimento do Brasil em sua crise mais profunda desde a tomada do poder em 2002 pelo PT.

  • Negativismo
  • Niilismo
  • Negação da riqueza

Como se pode explicar o somatório de fatores negativos que nos cercam? A vida social do homem se forma com o aprendizado para lidar com os fatos negativos que lhe ocorrem necessariamente como uma condição de estar no mundo . Os perigos do meio, a violência social ou da natureza, os maus tratos, a falta de solidariedade e de oportunidade, a rejeição social, as humilhações, as dificuldades impostas por serviços públicos degradados, a insensibilidade, e tantas pequenas coisas que nos levam cotidianamente a detestar os outros, vão se acumulando no espírito e servem de substrato para moldar uma psicologia específica.

Se em nossa biografia, o entendimento da sociedade implica em uma série infindável de fatos negativos que vão decantando um acumulado de decepções proporcionais às dificuldades do meio em que estamos inseridos, o repertório mais popular e abrangente de crítica social capaz de abraçar os fatos negativos se chama marxismo.


Marxismo como contraponto ao Negativismo

O marxismo oferece uma explicação para os males sociais e uma solução profética para a sua superação. Para que o negativismo não seja conduzido para um fim escatológico em que presente e futuro se confundam, torna-se imperativo que ele seja contrabalançado por uma visão otimista do futuro. Este é o segundo elemento importante oferecido pelo marxismo: um antídoto para o suicídio individual cultivado na certeza de uma esperança profética, de uma libertação vindoura.

No profetismo marxista, sabemos que os males do capitalismo serão superados pelo advento de uma nova sociedade que libertará os homens oprimidos pelo egoísmo e crueldade de seus semelhantes. Para que o negativismo não se transforme em um pessimismo autodestruidor, ele precisa ser equilibrado com um futuro promissor, e só o marxismo consegue oferecer esta esperança por ser construído como uma plataforma de ideias edificantes. Isto lhe confere um enorme poder de expansão e penetração.


Niilismo

No entendimento da sociedade capitalista, chama-se niilismo a combinação de negativismo associado ao futurismo doutrinário moralizador reivindicado para uma nova sociedade, com outros ingredientes, entre os quais o sectarismo e o dogmatismo. O longo percurso da prática política vai absorvendo muito mais elementos para que setores sociais possam repeti-los sempre com o mesmo padrão.

O niilismo não é um sentimento novo. Afonso Arinos de Melo Franco em "Um Estadista na República", fala sobre o meio intelectual de seu pai, Afrânio, ainda no final do Império:

“Quando ingressou na Faculdade de São Paulo, distantes estavam os tempos da boemia literária, quando Álvares de Azevedo simbolizava aquela espécie de niilismo juvenil, atitude de frenético desespero em que homens de vinte anos se compraziam nos ambientes byronianos, envenenando o corpo com álcool e a alma com furiosas abstrações sobre o amor e a morte.

A geração estudantina da abolição e da República estava mais interessada pelo desabamento de velhos edifícios jurídicos e sociais e pela construção dos novos, que os deviam substituir. Naturalmente que tinham também os seus boêmios literários, como Bilac ou Raimundo Correia. Mas mesmo neles a boemia tomava um aspecto diferente, ligava-se ardorosamente às lutas do tempo, à vida real que em volta fervilhava.

Quando esta vida real apresenta interesse afetivo e dramático, como no tempo deles e no nosso, os melhores espíritos são atraídos para ela. O pélago dos dramas subjetivos, das especulações abstratas, dos sofrimentos morais gerados pelos movimentos espontâneos da alma, e não pela ação do mundo exterior, são consequências dos períodos de estabilidade social e política, de cristalização conservadora.

No advento da República os estudantes eram espíritos mais políticos e jurídicos que literários. A tradição político-jurídica do Império, e principalmente a admirável influência pessoal do imperador, no sentido de basear tanto quanto possível o Estado brasileiro num governo de opinião, facilitavam o desenvolvimento da vocação daqueles rapazes sem grandes obstáculos nem reações.

A vida de Afrânio é um exemplo disto. Foi naturalmente, sem nunca lutar com o meio, que ele pôde expandir seus dotes de jurista político. Coisa que a larga fase da ditadura republicana vedou aos moços da geração de 1930.

A geração de estudantes de hoje (1944) foi também chamada ao realismo porque o Brasil atravessa novamente uma fase aguda de possibilidades e experiências. Mas, ao contrário da de Afrânio, suas inclinações naturais pela vida pública são entravadas pela mais formidável reação que conheceu o país. Isto poderá dar aos seus componentes um caráter violento e revolucionário, que não conheceram os bacharéis da República, cujo espírito construtivo não se afastou nunca da prudência e da moderação.

A tendência dos moços para a violência de ideias e atitudes depende da reação que seja oposta à evolução natural do seu pensamento. Neste ponto o exemplo do tzarismo russo é demonstrativo. A fúria da sua reação formou, mais que qualquer outra causa, a mocidade revolucionária da geração bolchevista.

Inutilmente se procuraria fenômeno semelhante na Inglaterra ou nos Estados Unidos contemporâneos. Eis por que nos parece pesada a responsabilidade que assume no Brasil o poder que, neste ano de 1944, procura conter a evolução natural do pensamento político dos moços. Talvez os transforme numa geração de violentos revolucionários”. (p. 174)

O revolucionarismo de que fala o autor surge com a própria dinâmica das mudanças impostas pela revolução industrial do primeiro capitalismo e seus desdobramentos sobre as comunidades humanas. As transformações criadas pelas estradas de ferro, telégrafo e bens de consumo industriais produziram uma mudança qualitativa do ser humano que continua até hoje.

O futuro se torna ocupado pelo evolucionismo fundado em descobertas que não podemos prever, mas que sabemos que mudarão a sociedade e, com isso, abrem as consciências para a aceitação de novas ideias, muitas das quais extremamente pessimistas sobre o presente e altamente positivas sobre o futuro, consolidando assim a consciência niilista.

O pessimismo tem suas razões de existir quando o próprio mundo nos fornece dados comparativos sobre as assimetrias de desenvolvimento entre as nações e a incapacidade das sociedades atrasadas de se colocarem em marcha rumo ao crescimento pelo deteriorado modelo político que abrigam e o extraordinário quadro de rapacidade social dos modelos estatais no consumo da poupança nacional.


Perseguição à riqueza

Um terceiro fator, no entanto, tem sua origem no mundo ibérico e sua particularidade guarda uma importância capital na constituição do niilismo latino-americano: trata-se da visão da riqueza como pertencente, de direito e moral, a entes coletivos que a distribuem para toda a sociedade. A riqueza pertencente aos entes coletivos seria o valor moral primitivo mais renitente em nossa formação social, no passado conhecidos como o Império, a Igreja, empresas públicas e uns poucos cidadãos delegados por ordem expressa do imperador.

Na moral medieval, a Igreja seria o instrumento social destinado a coroar o ascetismo e a virtude como valores fundamentais ao espírito humano, e a riqueza uma necessidade de todas as ordens religiosas para custear os encargos administrativos de sua imensa máquina de condução das almas nas comunidades humanas.

Por esta moral, a riqueza em mãos privadas corria o risco de subverter esses valores e conduzir os homens à dissipação, à luxúria, à ostentação petulante, ao comportamento arrogante e à soberba. Contendo-se a riqueza individual, acreditava-se controlar os vícios humanos.

Os evangelhos já pregavam a hostilidade aos ricos, e quando estes foram identificados com os judeus, o estigma permaneceu ao longo dos séculos. Para evitar a perda dos valores religiosos produzidos pela riqueza, criou-se a Inquisição na forma de tribunal pelo qual somente o socialismo real viria a utilizar os mesmos métodos de obtenção da "verdade".

No livro Inquisição e Cristãos Novos, Antonio José Saraiva nos dá uma ideia do anticapitalismo tricentenário que moldou a consciência brasileira:

“De todas as ocupações da vida, quase nenhuma é tão condenável – se a observarmos segundo as regras da religião – como a mais comum, quero dizer a das pessoas que trabalham para ganhar dinheiro quer pelo negócio quer por outros meios honestos. Os meios mais legítimos, humanamente falando, de enriquecer, são contrários não só ao espírito do Evangelho, mas também às interdições literais de Jesus Cristo e de seus apóstolos” (p. 207).

A importância do papel da riqueza na formação da mente petista tem sido negligenciada: no passado colonial, os excedentes da exploração açucareira eram postos em circulação através de empréstimos, mas a aplicação de juros para remunerar o capital era vista como o pecado da usura, e o combate e perseguição aos financistas judeus ou cristãos-novos era uma forma de saldar dívidas para os devedores e de apropriação de bens por parte da Igreja. A fúria contra o capital financeiro existe até hoje e encontra raízes profundas na mente petista provinda desse passado reacionário.

Antonio Paim, historiador que tentou decifrar a nossa história através dos valores que se opuseram ao capitalismo, mostra como a perseguição à riqueza privada foi capaz de colocar em declínio nossa superioridade mundial na produção de açúcar no século XVIII. Em seu livro, Momentos Decisivos da História do Brasil, ele traz à luz os valores de nosso passado obscuro:

“A ação da Contra-Reforma se completa pela chamada pregação dos moralistas do século XVIII, que se incumbem de difundir no seio da elite a mais rigorosa condenação da riqueza. E assim se completa a nossa opção pela pobreza, que irá consistir numa das mais sólidas tradições da cultura brasileira” (p. 69).

Por esse passado nada altruístico podemos ver como a Teologia da Libertação tem suas raízes na negação da riqueza produzida pelo empreendimento individual, e na defesa intransigente de todas as iniciativas que sejam mantenedoras da pobreza. A pobreza da população era conservada como relicário do exemplo da vida cristã autêntica e do desapego material, e sua similaridade com o socialismo real não poderia ser escondida, razão pela qual este segmento atrasado da Igreja tem ligações emocionais e identidades práticas com o socialismo.

Qualquer empreendimento suspeito de prosperidade logo arregimenta os doutrinadores da fé com os apóstolos do ateísmo em frente única. Nas eleições de 2010, o candidato do PSOL, Plínio de Arruda Sampaio, disse abertamente na TV que era contra a transposição do rio São Francisco porque a chegada de água no nordeste iria alterar as condições de vida da população miserável, tornando suas terras invejadas pelo agronegócio que logo iria comprá-las e tornar os miseráveis atuais em trabalhadores agrícolas. A igreja da teologia da libertação formou fileiras em sua causa com bispos liderando a mobilização contra a ameaça de abundância no nordeste.

Este terceiro fator – a noção de riqueza – se casou com os outros dois de forma a cristalizar os valores de nossa nacionalidade e sua enorme resistência à modernidade. Em todo o processo social, os valores nascem da herança cultural, e depois se internalizam nas preferências dos indivíduos, para mais tarde se materializarem nas suas escolhas.

A vitória eleitoral e a popularidade do PT na conquista do poder tinham os fatores combinados: crítica social impiedosa do passado, responsabilizando todos os males às pessoas identificadas como elites e não às instituições; grande esperança no futuro, atribuída aos poderes messiânicos do novo presidente e sua equipe, combinando crítica negativista com utopia voluntarista, e uma promessa de superar todos os males pela correção dos vícios do estado comandado por uma fração preparada com iniciativas qualificadas de “vontade política”, criando uma narrativa que iria construir a mais espetacular crise social de todos os tempos: a inversão dos valores éticos e morais como jamais se viu em momento algum no Brasil.

Como provar que a riqueza entendida como um ente coletivo que deve ser distribuída para a sociedade faz parte de nossos valores primitivos que vão formular as preferências e depois as escolhas individuais?

Basta se observar os fatores ligados ao imaginário do brasileiro no tocante a riqueza: quase todo o brasileiro acha que o país é extremamente rico, mas, ao mesmo tempo, extremamente explorado por grupos gananciosos que fazem a riqueza desaparecer para o exterior misteriosamente por contrabando ou por esperteza, sendo a causa de nossa miséria.

Neste imaginário botocudo, a riqueza é um bem estático, que se acomoda em arcas cheias de ouro e que poderia servir a todos e não aos malditos capitalistas que a exploram. A visão da riqueza como uma montanha dourada transparece nos discursos das pessoas magnetizadas pelos metais raros como o nióbio e o petróleo. Não se entende a riqueza como um bem em circulação, mas algo de que se deseja apoderar por um ato de pirataria política, isto é, obtenção de um privilégio de exploração por meio de monopólio. O monopólio é visto como representante da nacionalidade e da moral pública do bem comum, não como um obstáculo à geração de riqueza.

Nem mesmo a água é vista como um bem em circulação. Depois que se criou a Agência Nacional de Águas no ano 2000 por iniciativa do Congresso, os integrantes desta agência começaram a espalhar a ideia de que a água iria acabar no mundo todo e, especialmente no Brasil, onde a extração do subsolo deveria ser acompanhada do pagamento de um imposto para que o estado estivesse suficientemente preparado para intervir quando de sua escassez. Que alguém possa acreditar neste bizantinismo pode parecer estupefaciente, no entanto está no discurso de seus membros. E a crise hídrica em SP permitiu avaliar que na opinião de muita gente estava estampada a noção de que a água pode se esgotar para sempre na natureza.

Agindo apenas pelos instintos do nosso arcaísmo histórico, as pessoas acham melhor guardar uma riqueza para o futuro do que explorá-la no presente por encargo de empresas privadas, mesmo sabendo que quase a metade voltaria para o estado na forma de impostos: o horror ao lucro e o ódio ao empreendimento privado são mais fortes do que a obtenção de recursos através dos impostos e empregos gerados pela produção.

Quando se argumenta que a nossa riqueza petrolífera poderia gerar uma exportação diária de uns 5 milhões de barris, e um “government take” de uns 150 bilhões de dólares anuais, as pessoas começam a suar frio e o pânico se instala em suas mentes com a imagem de um país transformado em cemitério pela exaustão de seus tesouros naturais.

As novas ideias de perseguição da riqueza estão presentes na moral ecológica, onde se coloca o interesse de conservação da natureza em sua forma primitiva como mais importante e autêntica do que a utilização desta mesma natureza para o enriquecimento de particulares. O meio ambiente, o ambientalismo petista, é a fonte mais importante da geração de ideias perseguidoras da riqueza como uma manifestação reacionária do passado colonial.

Trata-se do princípio de que um particular não gera outro particular e que o coletivo não é formado pelo agregado de particulares, mas por outra instância que está acima e além dos seres individuais: o estado onipotente. Por esta mentalidade, somente o estado pode ser essa agregação orgânica de indivíduos, e este sentimento arcaico ensinado nas escolas foi o responsável pela propagação e triunfo do niilismo petista.


Estado dentro do Estado: um exemplo

Qual a prova que correlaciona a riqueza com os valores sociais anticapitalistas?

Considere o sistema tributário brasileiro. Seu funcionamento talvez explique por que somos um povo atrasado e sem vias de se modernizar. O sistema tributário brasileiro constitui uma ditadura dentro do país, exercido por uma elite profissional que se encarrega da arrecadação de recursos para as várias instâncias das administrações em caráter absolutista.

As decisões tributárias são feitas pelas comunidades de secretários estaduais, pelas secretarias municipais da fazenda e pelo complexo de entidades em volta da Receita Federal. Os tributos não são mediados pelo sistema legislativo e tampouco contidos pelo sistema judicial.

Portarias, normas, instruções e decretos são emitidos por estes órgãos apenas sob consenso da autoridade política executiva, e sua obediência tem caráter de lei. Os impostos, taxas e contribuições não são elimináveis a menos que se possa declará-los inconstitucionais, e, uma vez em vigor, o judiciário não tem autoridade para questioná-los.

Quem define os crimes tributários são os próprios órgãos tributários, a quem se deve apelar e pelo qual se é julgado. Um imposto que foi declarado inconstitucional, como a taxa de lixo em São Paulo, nunca foi devolvido aos contribuintes. E quem estava em débito permanece na dívida ativa do município.

Trata-se do mesmo procedimento da Inquisição e dos processos de Moscou: no sistema soviético os procuradores acusavam, julgavam e executavam a sentença. Não havia a mediação de organismos separados.

A questão tributária não se limita ao recolhimento de tributos. Ela vai muito além da mera arrecadação. Seu papel principal consiste na certificação, na autorização e licenciamento, todos enfeixados em uma lógica de pureza que se comprova com um troca-troca de certidões em que um órgão demanda uma informação de outro órgão pelo qual o requerente deve ser o intermediário da transação e para cuja finalidade não existe nenhuma obrigatoriedade cronológica do órgão fornecedor, que dispõe de liberdade para requisitar quaisquer recursos que achar pertinente à consecução do interesse privado. E, naturalmente, estes recursos terminam na realidade do mundo subdesenvolvido: a indústria da propina.

A tão conhecida burocracia brasileira mereceria prêmios para universitários sequiosos por diplomas de doutorado. Explicar as motivações por trás de procedimentos que não existem em países adiantados poderia fornecer um entendimento muito mais acurado de nossa natureza social do que as centenas de teses acadêmicas pífias que são produzidas anualmente em nossas universidades. Ao longo dos últimos cinquenta anos, até ministérios foram criados para desburocratizar o país, mas seu resultado tem sido muito pequeno e circunscrito à obtenção de documentos pessoais.

Esta incrustação do mundo colonial na organização da sociedade brasileira tem implicações tremendas na formação do país. Funciona como um tribunal de exceção para industriais, pequenos empreendedores, comerciantes e proprietários rurais.

Pelo sistema tributário podemos entender como um modelo político se molda em uma sociedade onde toda a carreira política implica em patrimonialismo e no costume de colocar os interesses do estado acima dos cidadãos no discurso, e o estado a serviço dos seus apropriadores na prática. Que importância tem a gastança irresponsável dentro das casas legislativas se existe uma estrutura estatal que tem poderes especiais para resolver estes excessos?

O poder discricionário de um órgão arrecadador de estado implica em assumir a responsabilidade pela manutenção do próprio estado, e os organismos fazendários são incumbidos de resolver déficits, obter empréstimos e negociar dívidas, desde que não tenham o poder de dissolução do que possam entender como além e excedente do próprio estado, que neste caso está a cargo do sistema político.

O poder tributário como entidade autônoma dentro do estado brasileiro forma um dos itens da cesta dos fatores que fazem nosso PIB representar apenas 1/5 quando comparado a um país que passou pelo desenvolvimento capitalista independente. A musculatura deste poder está contida dentro de uma burocracia que funciona como uma estrutura asfixiante de toda atividade produtiva legal.

Os órgãos tributários agem como tribunais amparados por uma complexa legislação que obriga as empresas a um contingente enorme de funcionários e advogados para manter a ordem na contabilidade, e, mesmo assim, são frequentemente chantageadas por quadrilhas de fiscais com a capacidade de dissolução do aparelho comercial ou industrial criado a duras penas pelos empreendedores privados.

Como estes 'raids' burocráticos sedimentados ao longo das décadas não passam para os livros de história, o saldo de destruição que se pode apurar consiste na verdade inescondível dos números da renda per capita. Nenhum país do mundo tem tantas micro, pequenas e médias empresas frustradas em poucos meses de vida: o empreendedor que inicia um negócio logo aprende que não está trabalhando para a sua atividade fim. Sua energia fica canalizada para ser um mandalete de órgãos burocráticos cujas exigências parecem ter sido inventadas para ser resolvidas nas propinas.

Existe uma relação entre a Inquisição e a Fiscalização que deveria ser explorada por nossos historiadores de ideias, ao estilo dos seguidores de Antonio Paim. Estas duas instâncias históricas da brasilidade estão sedimentadas na consciência niilista.

Como se pode desconfiar, trata-se de um sistema que não mantém relações com o capitalismo, já que não lhe serve de apoio, mas vive de sua própria rapacidade, e cuja estrutura se concilia com a dos regimes do socialismo real.

E, falando em socialismo real, considere este texto do século XVIII, escrito por D. Luis de Souza em carta ao rei de Portugal, em uma época ainda insuspeita de socialismo:

“... que os corregedores e juízes do crime fossem obrigados a dar ao presidente do paço e ao regedor das justiças todos os meses uma exata lista das pessoas que moram nos seus bairros, e de que vivem, e como vivem, das companhias que frequentam, e dos que de novo nele vêm habitar para não consentir neles nem ociosos, nem vagabundos, porque são os que matam e roubam por não serem conhecidos.

E como as mulheres públicas são pela maior parte a causa destes desatinos, não as sofrerão nas suas jurisdições, de maneira que o regedor das justiças lhes fará culpa das desordens, que nelas acontecerem. Da mesma sorte tomarão conhecimento dos pobres, para lhes não permitir que peçam esmola senão os que absolutamente, e de nenhuma sorte não puderem trabalhar. Isto se pratica em Holanda, onde não se vê um só pobre, nem às portas das igrejas, nem nas ruas, que embaraçam os que vão à missa, e os que por eles passam. A caridade é muito louvável, e o Evangelho a recomenda, mas não para que contribua para a ociosidade, de que resulta toda a espécie de vício”.

Controlar as pessoas em seus bairros passou do mundo medieval para o socialismo real incólume, e não espanta que esta moral seja defendida por marxistas e padres da teologia da libertação. E o que dizer da noção de bolsa família quando correlacionada com a caridade?


A crença no estado salvador

A mente petista, sendo herdeira dessas tradições reacionárias, ainda precisa ser nutrida de novos elementos para se cristalizar em seu niilismo devastador da razão. O outro elemento consiste na forma de entendimento do estado como uma crença de que é a única estrutura social pela qual todos os problemas humanos podem ser resolvidos. Basta apenas que ele se molde de maneira a realizá-las. Se o estado deixar de ser apropriado pela classe dominante e se transformar em prestador de serviços para os despossuídos, a sociedade vai se curar de todos os seus males. E toda a atividade política se reduz à luta da pureza dos representantes estatais contra a impureza dos agentes sociais privados.

Esta foi a base moral do medievalismo, e, no entanto, está vivíssima na esquerda brasileira. Basta lermos os jornais diariamente para acompanhar o desfile de transgressões efetuadas contra as normas estabelecidas pelo estado condutor. Existem épocas em que o gosto popular se especializa em difamar a classe política, mas o produto que elabora, as normas e leis, são vistas como algo sagrado a que se deve obediência e respeito, nunca faltando uma dose de hostilidade moral a todos os seus transgressores.

O estado tem sido o aporte por onde se realiza o patrimonialismo e a carreira mais segura para ascensão social em um país assoberbado por crises periódicas. Na medida em que o petismo se transforma em ideologia do estado, ele tem o papel de difundir para a sociedade uma narrativa moral idealizada na questão dos direitos humanos, nas relações trabalhistas e nas obrigações sociais que são conduzidas de forma Inquisitória pela responsabilização solidária de todas as empresas privadas no ciclo de produção.

Tais valores contaminaram a ciência jurídica, onde diariamente se veem exemplos destas aberrações: um fabricante doméstico de camisas que tenha irregularidades em suas relações trabalhistas e tributárias, arrasta para o representante e distribuidor da marca o peso de sua culpabilidade.

A combinação de niilismo e estatismo tem mais efeitos arrasadores. A consciência petista funciona como construtora de narrativas apropriadas ao uso das circunstâncias, e recusa toda e qualquer experiência prática ou ponderação fora de sua lógica artificial. E quanto maior se torna a ruptura entre as evidências da realidade e os argumentos de sua narrativa, mais entorpecedores se tornam os argumentos.

O desprezo para com o mérito é o caso mais eloquente. Já se disse no século XIX que os povos que desdenham do mérito são aqueles que nunca se sentiram ameaçados.

O altruísmo embevecido pela justiça social cria uma rede de solidariedade que não existe em pessoas com ideias independentes. Parece que a mente niilista exige demonstrações reiteradas de solidariedade para se sentir autenticada em cada conjuntura adversa. São as únicas pessoas que, quando criticadas pessoalmente, recorrem a abaixo-assinados de apoio e desagravo. Trata-se de um psiquismo coletivo do vitimismo.

Certas florações psicossociais são próprias do niilismo: a questão da imigração é uma delas. Todo o niilista acha natural que um país rico seja invadido por imigrantes, na maioria das vezes sem qualificação para o mercado tecnológico, pelo simples motivo de que a solidariedade humana se alia ao propósito de subversão da ordem social, uma vez que uma sociedade rica contendo uma parcela muito pequena de pobres, ao aumentar seu contingente de pobres invasores, cria uma base de apoio para grupos radicais.


Niilismo x Tecnologia

Um dos elementos mais comuns do niilismo consiste em ser completamente insensível à tecnologia. Parece que se trata de uma síndrome secundária do estatismo. Todos os anos temos melhores automóveis, celulares, fármacos, bens de consumo, etc, mas isso não os comove a achar que o mundo capitalista esteja melhorando.

Todos querem os benefícios, mas não as condições que organizam a sociedade tecnológica e fazem com que contingentes inteiros de profissionais se dediquem ao esforço tecnológico de fazer a vida melhor para a humanidade. Parece paradoxal que frente a todas as demonstrações de progresso seguidas pelos países asiáticos, com diferentes empuxos ideológicos, tal esforço não seja sequer discutido entre os integrantes de uma agremiação que controla o poder no Brasil há mais de 12 anos. A confissão de que são consciências preparadas apenas para parasitar o estado pode ser vista pela relação que eles mantêm com o embalo das revoluções tecnológicas sucessivas que vamos acumulando década após década.

Um indivíduo niilista é capaz de ser salvo da morte em um hospital por um medicamento israelense de última geração e na semana seguinte estar nas ruas defendendo uma manifestação do Hamas pretensamente representativa dos palestinos. Esta capacidade de ser incoerente se explica pela rejeição ao individualismo sem tutelas.

Os filósofos e demais humanistas niilistas não só mantêm um desdém para com a tecnologia, como acham que ela não existe para melhorar as práticas da vida produtiva. Ao contrário, elas são desenvolvidas para as empresas ganharem dinheiro, sendo, evidentemente, esta postura altamente condenável porque acreditam que o estado pode fazer a mesma coisa desinteressadamente. É um momento em que se fundem os valores medievais com o socialismo latino-americano.

Como o capitalismo produz e distribui itens que exigem dinheiro, a mente niilista aspira a obtenção de todos os bens pelo simples direito de cidadania. E este benefício não sendo possível para todos, só pode ser concedido pelo estado que pratique a discriminação pelo uso de um critério elitista, onde uma nomenklatura tenha estes benefícios pelo direito autoatribuído de representar a classe proletária, o que explica subsidiariamente a rapacidade de tais agremiações políticas quando no poder.

De um lado, o desprezo pela meritocracia da sociedade tecnológica capitalista: de outro, a entronização do mérito como submetido à posição do indivíduo na estrutura política do partido. A consolidação do estado como uma crença provém de uma distorção dos princípios básicos de economia social e da impotência frente à diversidade do mundo científico e tecnológico, quando não da inadequação ao conhecimento gerada nos primeiros anos de uma escola calamitosa que deformou as novas gerações para qualquer possibilidade de abstração intelectual. Por trás de um niilista existe um histórico de frustrações que somente uma utopia futurista pode compensar.


Sectarismo

O resultado de tudo isso na mente humana consiste na criação de um dos fenômenos mais notórios dos nossos tempos: o sectarismo político. O sectarismo se consolida na consciência como uma forma de pensar extremamente hostil às ideias que estão fora da bitola das pregações políticas e que pertencem em geral a adversários odiados.

O pensamento alheio é sentido com hostilidade, como um perigo que é preciso esconjurar com as narrativas de demonização preparadas para servir de alívio às próprias contradições e bode expiatório para ocultação dos fracassos. Não existem escrúpulos com a verdade. As pessoas são tomadas de prejulgamentos preparados por publicistas partidários e perdem a capacidade de investigação independente.

O sectarismo atua como uma aversão totalizante representada em um conjunto de ideias identificáveis com uma ideologia, em um partido político, ou em uma organização social.

O sectarismo funciona na articulação de narrativas adequadas ao enfrentamento das contradições. Por exemplo: como as notícias dos jornais são frequentemente contrárias às opiniões de um grupo político, este precisa desqualificá-las em bloco, sem que necessite responder a cada caso. Para isso, usa o argumento de que se trata de uma imprensa burguesa que atua em consonância com a classe dominante. Tudo se passa como se a burguesia possuísse um comitê central que deliberasse as “verdades” que passariam a circular pelos jornais sob seu domínio. Trata-se de uma projeção de seu próprio comportamento como grupo para o resto da sociedade.

A desqualificação generalizada dispensa a necessidade de enfrentar cada argumento em separado e, ao mesmo tempo, estreita os laços de coesão de um grupo com sua doutrina, onde os eventos são tratados como necessariamente enquadrados nas constantes reiterações de suas premissas: a luta de classes, os interesses das classes dominantes, a corrupção dos empresários, a indiferença do capitalismo pela pobreza, etc.


A crítica da sociedade como projeção de si mesmo

O descontentamento dos adversários com a corrupção praticada no governo petista como política de cooptação é respondido por seus porta-vozes como se esses críticos odiassem os pobres, ou se sentissem incomodados pela presença cada vez maior da população de baixa renda nos aeroportos do país.

De fato, existe uma relação freudiana de desejo com aquilo que se critica nos outros quando tais críticas ultrapassam as raias dos fatos e se estendem a uma confissão de ódio subjetivo. Quando lemos o livro A Nomenklatura de Michael Volensky verificamos que na antiga União Soviética, existiam salas VIPs para os dirigentes (de qualquer nível) do partido e da burocracia soviética não apenas em aeroportos, mas também em estações ferroviárias.

Os dirigentes eram recebidos com carros e motoristas para os conduzirem aos seus destinos. Não se misturavam com o povo, em nenhuma hipótese. Até para descer dos aviões havia o ritual de separação de dirigentes dos demais tripulantes. Além de lojas e supermercados particulares para as famílias. Mas, quando caíam em desgraça, eram frequentemente acusados de ter perdido a “ligação com as massas”.

“Em 1621 o frade inquisidor de Lisboa dizia que eram Judeus não só os que praticavam o judaísmo, mas também os que contrariavam o Santo Ofício. Esta declaração remete aos nossos tempos de ortodoxia em que se diz que são contrarrevolucionários todos os que se opõem ao governo revolucionário” (Saraiva, op. Cit).

O sectarismo permite entender como certos tipos de crítica emanam de uma consciência que psicopaticamente deseja usufruir daquilo que denuncia nos adversários como uma perversão moral. Um desejo secreto de luxúria se esconde por trás não apenas dos miseráveis de Joãozinho Trinta, mas também dos ideólogos da miséria como podemos constatar do crescimento dos bens materiais da elite petista.

E a necessidade de esconder o fracasso do presente consiste na obsessão de criticar o passado com todas as falsificações possíveis e inevitáveis para uma mente contaminada pela fé ardente no coletivismo.

Para provar que o espírito de colaboração é muito mais poderoso em países onde a cultura do individualismo é preponderante, bastaria levantar os dados do sucesso de empreendimentos criados com a adesão voluntária de participantes, como os milhares de softwares de código aberto, a Wikipédia e tantos outros. Não por acaso, a cultura do individualismo sempre foi prestigiada como sinônimo de liberdade, pois é dela que emana o empreendimento independente, cujo sucesso está marcado pelo apoio espontâneo e sem tutela de sua comunidade.

O fracasso do PT como partido e ideologia não se limita a um fenômeno isolado e pertencente a um grupo de ativistas desmiolados. Têm razão os críticos que o equiparam a um fenômeno social genuinamente nacional. O PT representa o conglomerado mais vasto de um modo de pensar calcado em valores arcaicos que estão em todas as instâncias de nossas instituições degradadas pela ignorância de querer mudar os outros sem mudar a si mesmas.

Não é necessário perguntar às professoras que fazem o magistério nas ruas se elas se acham responsáveis pelo declínio de nossos índices de educação para termos as respostas de nossas calamidades históricas das quais o petismo foi o mais colossal acolhedor, e que o Brasil carregará como mais uma herança maldita ao longo das décadas que virão.

A longa permanência no poder das ideias petistas serve de aferição crepuscular de uma cultura imersa em um obscurantismo cultivado nas cátedras.

Estaria o Brasil condenado a reviver uma nova expulsão dos jesuítas como fez Pombal em Portugal, na segunda metade do século XVIII, como única forma de permitir que as ideias iluministas transitem em nosso território?

Só o tempo dirá se nossa crise será capaz de criar a unidade necessária para enfrentar os maiores inimigos da inteligência e do saber: o professorado petista herdeiro de nosso passado jesuítico adaptado ao niilismo marxista.

Em todo caso, o legado do petismo não desaparecerá tão cedo de nossa sociedade. Ele persistirá enquanto o estado brasileiro conseguir se manter à margem da modernidade e impedir que a sociedade desabroche em todo o esplendor de seus talentos esbulhados.

O socialismo brasileiro tem suas raízes no mundo jesuítico e numa interpretação do cristianismo ainda coagulado pela moral medieval. Enquanto estes valores não desaparecerem, o populismo pode mudar de nome, mas sempre vai nos assombrar com sua tragédia de decomposição moral e colapso econômico.


6 de maio de 2014

Tobias Barreto - Discurso em mangas de camisa

Observação preliminar sobre o "Discurso em mangas de camisa" — Em Setembro de 1877, apareceu-me a ideia de organizar nesta cidade, e à semelhança de outros, já algures existentes, um pequeno Club Popular. Como todas as lembranças infelizes, que no nosso país têm a propriedade de germinar com a mesma rapidez do alho plantado em noite de S. João, segundo a crença vulgar — a minha ideia prontamente grelou; mas também, com a mesma prontidão, murchou e morreu. Foi esta ainda uma das muitas ilusões de que se tem alentado o meu espírito nesta bela terra onde aliás vim sepultar os dois mais caros objetos do meu coração e da minha fantasia: — minha Mãe e meu futuro!...

Foi ainda uma ilusão, sem dúvida, porém um pouco mais durável, um pouco menos enganadora do que, por exemplo, a realidade das flores, com a sua vida de um só dia: minha ilusão durou quinze.

Por ocasião e a propósito de realizar o meu plano, pronunciei o discurso que aí vai. Publicado logo depois no Jornal do Recife, não deixou de ser então, como era natural, agradável a uns, e displicente a outros. Mas ficou nisto.

Correram os dias, mudaram-se as coisas, e eu entendi que devia, para dar uma feição mais permanente aquele produto de outros tempos, publicá-lo em brochura, como agora o faço, acompanhado de notas, que servem de ilustração ao meu pensamento.

É o que tenho a dizer sobre a história do livrinho. Quanto ao mais, o leitor o julgue, como bom e justo lhe parecer.

Escada, 11 de Fevereiro de 1879.


MEUS senhores! Ainda uma vez, é a mim que incumbe vir expor-vos, e em traços mais visíveis a ideia que se propõe realizar o Club Popular da Escada. A primeira reunião que já fizemos, não foi, nem podia ser inteiramente satisfatória, sob este ponto de vista, porquanto, além da grave dificuldade, que há em falar-se, de modo, eficaz, a um auditório não preparado, acresce que seria então antecipar, sem vantagem para esta sociedade, a explanação detalhada do seu objeto e dos seus intuitos. Bem quer me parecer que semelhante reserva, da minha parte, podia dar direito a se supor que há no fundo deste meu tentame uma certa dose de mistério e intenção secreta, que só pouco a pouco é dado perceber. Mas isto seria errôneo e altamente injusto.

O pensamento que forma a base desta sociedade, como de outras de igual natureza, não se resume — é verdade — numa definição, nem se esgota em centenas de discursos. Só às crianças é lícito imaginar que poderiam conter na palma da mão qualquer estrelinha, que se lhes afigura do tamanho de uma moeda, e apta para um brinquedo. Do mesmo modo, somente aos parvos é permitido crer que o conceito inspirador e dirigente de uma corporação criada com fins humanitários, políticos e sociais, qualquer que seja o círculo de sua ação, é suscetível de abranger-se numa folha de papel, e pode se deixar ver em todos os seus aspectos e atitudes sedutoras, à luz mortiça de velhas frases consagradas ao culto aparatoso dos ídolos do dia.

Porém também é certo, senhores, que quando se evangeliza uma ideia nobre, por mais densa mesmo que seja a nuvem, em que ela venha envolvida, o gênio do povo se encarrega de penetrar-lhe no íntimo e conhecer, por instinto, o seu valor e o seu alcance. Nem eu quero dissimular que uma associação, à guisa da nossa, que tem por principal agente o espírito popular, o ímpeto democrático do século, encerra naturalmente alguma partícula de reação e protesto contra a tirania das coisas, algum germe de rebeldia contra a impudência dos deuses, e importa, como tal, uma gota de assa-fétida na taça de néctar dos poderosos da terra.


Mas isto não desfigura a placidez e serenidade do nosso intento, nem seria motivo suficiente para as chamadas autoridades constituídas nos pedirem contas, por tentativa de insurreição. Tranquilizem-se, pois: se há aqui algum segredo, esse segredo não é para vós; é para aqueles que têm a orelha longa e fina, que no simples ato da livre respiração, que na sístole e diástole do coração do povo percebem sempre um como fluxo e refluxo do mar, que vem engoli-los; é para aqueles, em cuja opinião o menor esforço para sair-se deste sono de abatimento e miséria, é um plano de amotinados, assim como o sangue, que borbulha e jorra impetuoso, pode ser também um revolucionário, na opinião do punhal; é para aqueles, enfim, que tendo boas razões de unirem-se a nós, de estarem conosco, não se dignam, todavia, de aparecer aqui, pelo receio que lhes inspira o contato dos lázaros políticos, quais somos todos nós, os homens do trabalho e não do emprego público, os deserdados da pátria, os excluídos do seu banquete, mas que, a despeito de tudo, guardamos ainda uma esperança no peito e uma seta na aljava!… É para esses, sim, que o exercício de um direito pode tomar as proporções de um fenômeno perigoso, de uma nuvem tenebrosa, que esconde no bojo alguma tempestade. Quanto a nós, porém, não nos incomodemos por isso; e quanto a eles, deixemo-los conjecturarem o que lhes aprouver; e prossigamos em nossa marcha.


Volto a tratar, senhores, do assunto capital do nosso entretenimento, que já foi em síntese indicado a primeira vez que aqui nos reunimos. Esforçar-me-ei, sobretudo, por ser claro. Não compareço entre vós, para fazer-me admirar, mas para fazer-me compreender. A musa que me inspira nesta ocasião é muito modesta, para que me obrigue a trajar a grande gala da linguagem bordada a ouro, e muito menos a ouro francês. Alguma coisa de familiar, alguma coisa de designável por um discurso em mangas de camisa, é o que vos venho apresentar. Se a viagem é curta e aprazível, se fui eu quem vos convidou para ela, não seria uma extravagância, adicionada de uma impolidez, que eu quisesse ir a cavalo, quando os demais vão a pé? Nada, pois, de formalidades, nem jeitos oratórios; nada de espartilho retórico: todo a cômodo, e com toda a calma, vou expor-vos o que nos interessa.


Disse uma vez o padre Lacordaire que a posição mais desfavorável ao orador é quando tem de falar a homens que comem; porém há outra, a meu ver, ainda mais desfavorável: é quando se fala a homens que têm fome, se não se trata dos meios de satisfazê-la, ou ao menos de moderá-la. Tal seria, por certo, a minha posição diante de vós, como iniciador da ideia de um Club Popular, se me viesse à mente a singular lembrança de ocupar-me em outros assuntos, que não fossem os males da nossa vida política, o estado de penúria, e a pior das penúrias, a penúria moral, em que laboramos, o desânimo dos espíritos, a surdez das consciências, em uma palavra, todos os sintomas da doença, que mata as nações, o abandono de si mesmo, o esquecimento de seus direitos, pela falta de justiça e liberdade, de que todos nós, sentimo-nos sequiosos e famintos. Não me compete, nem seria agora oportuno, lançar as vistas no país inteiro, depondo sobre a mesa das dissecações o grande corpo brasileiro, para sujeitar a uma análise rigorosa a totalidade dos seus órgãos. Não interessa mesmo, nem a mim nem a vós, dividindo o Estado em suas partes naturais, tomar a província por objeto de nossa apreciação. Limito-me, portanto, ao município, e ao município concreto, quero dizer, a este de quem somos habitantes. É um fragmento do monstruoso tremó; mas este pedacinho reflete tão bem a nossa face, o nosso caráter nacional, como todo o espelho.



O que mais salta aos olhos, o que mais fere as vistas do observador, o fenômeno mais saliente da vida municipal, que bem se pode chamar o expoente da vida geral do país, é a falta de coesão social, o desagregamento dos indivíduos, alguma coisa que os reduz ao estado de isolamento absoluto, de átomos inorgânicos, quase podia dizer, de poeira impalpável e estéril. Entre nós, o que há de organizado é o Estado, não é a Nação; é o governo, é a administração, por seus altos funcionários na corte, por seus sub-rogados nas províncias, por seus ínfimos caudatários nos municípios; não é o povo, o qual permanece amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser a comunhão da língua, dos maus costumes e do servilismo.

Os cidadãos não podem, ou melhor não querem combinar a sua ação.


Nenhuma nobre aspiração os prende uns aos outros; eles não têm, nem força defensiva contra os assaltos do poder, nem força intelectual e moral para viverem por si; tal é o fato mais notável que a observação estabelece em geral, porém, que me parece não se manifestar em lugar algum tão carregado de más consequências, como na Escada. Aqui de certo, os habitantes do município, máxime os da cidade, fazem a impressão de viajantes, que se reuniram à noite em uma mesma casa de rancho mas logo que amanheça, cada um tomará o seu caminho, quase sem probabilidade de outra vez se encontrarem. Deste modo de viver à parte, de sentir e pensar à parte, resulta a indiferença, com que olha cada um para aquilo que pessoalmente não lhe diz respeito, e enquanto não chega o seu dia, contempla impassível os tormentos alheios, sem saber que, como disse o poeta:


A todos cabe o mal da humanidade,
De lágrimas e dor fatal convívio,
E aquilo que um tomou sobre seus ombros
É para os outros verdadeiro alívio.



Não fica aí. Essa impassibilidade, que acabo de assinalar, não se revela somente por uma certa ausência de sincero amor e caridade, nas relações puramente humanas, mas também pela falta de patriotismo, nas relações nacionais, pela ausência de senso político e dignidade pessoal, nos negócios locais. É a esta doença moral de que padece o povo da Escada, que o nosso Club propõe-se aplicar um remédio, senão de todo eficaz, ao menos paliativo.


E importa advertir: o Club Popular Escadense não toma por princípio diretor nenhum dos estribilhos da moda, menos que tudo a célebre trilogia: liberdade, igualdade e fraternidade, três palavras que se espantam de se acharem unidas, porque significam tres coisas reciprocamente estranhas e contraditórias, principalmente as duas primeiras. E para que não se me acuse de paradoxia, permiti-me, por um pouco, tratar de demonstrá-lo; o que tanto mais interessa, quanto é certo que não temos por nós nenhuma das três pessoas dessa trindade revolucionária, e por isso muito importa sabermos, se delas uma só nos basta, ou se de todas necessitamos, bem como se é possível à sua consecução.


Mas antes de tudo — que a liberdade e a igualdade são contraditórias e repelem-se mutuamente, não milita dúvida. A liberdade é um direito, que tende a traduzir-se no fato, um princípio de vida, uma condição de progresso e desenvolvimento; a igualdade, porém, não é um fato, nem um direito, nem um princípio, nem uma condição: é, quando muito, um postulado da razão, ou antes, do sentimento. A liberdade é alguma coisa de que o homem pode dizer: eu sou!…; a igualdade alguma coisa de que ele somente diz: quem me dera ser !… A liberdade entregue a si mesma, à sua própria ação, produz naturalmente a desigualdade, da mesma forma que a igualdade, tomada como princípio prático, naturalmente produz a escravidão. A liberdade é aquele estado no qual o homem pode empregar, tanto as suas próprias, como as forças da natureza ambiente, nos limites da possibilidade, para atingir um alvo, que ele mesmo escolhe. Onde, pois, o indivíduo é perturbado no uso de suas forças, e a respeito das ações que não se opõem à liberdade dos outros, nem às necessidades sociais, é sujeito a uma tutela, aí não existe liberdade, nem civil, nem política, nem de outra qualquer espécie. A igualdade é aquele estado da vida pública, no qual não se confere ao indivíduo predicado algum particular, como não se lhe confere particular encargo. Igual independência de todos, ou igual sujeição de todos. O mais alto grau imaginável da igualdade — o comunismo — porque ele pressupõe a opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau da servidão. A realização da liberdade satisfaz ao mais nobre impulso do coração e da consciência humana; a realização da igualdade só pode satisfazer ao mais baixo dos sentimentos: a inveja. Que uma e outra não se harmonizam, que são exclusivas e repugnantes entre si, prova-o de sobra a revolução francesa, que tendo começado em nome da liberdade, degenerou no fanatismo da igualdade, e reduziu-se ao absurdo nas mãos de um déspota. O povo francês assemelhou-se então a uma cidade que se submerge, só ficando de pé uma torre enorme, no meio do lago imenso: a figura de Napoleão! Estava assim, da melhor forma, o ideal de Mirabeau: — la monarchie sur la surface égale. Os indivíduos, ou os povos, que esquecem a liberdade por amor da igualdade, são semelhantes ao cão da fábula, que larga o pedaço de carne que tem na boca, pela sombra que vê na água do rio.


Não falo da classe econômica propriamente dita, porque a sua vida se limita a uma luta pelo capital, e nada tem que ver com as nossas lutas pelo direito. Após então vem o povo, o povo triste e sofredor, em cuja fronte, não poucas vezes, junto ao estigma da infelicidade, por cúmulo de miséria, a sorte imprime também o estigma da ingratidão; o povo que é o número, mas um número abstrato, um número que não é a força; perseguido, humilhado, abatido, a ponto de sobre ele os grandes disputarem e lançarem os dados, para ver quem o possui, como os judeus sortearam a túnica inconsútil do mártir do Calvário.


Não exagero, senhores, é a verdade. O povo brasileiro, ou muito restritamente, o povo da Escada, é tido na conta de uma coisa apropriável, se já não apropriada. Quereis uma prova entre muitas? Eu vos dou. Reparai bem: o ano passado, quando se tratava da qualificação dos votantes desta paróquia, nessa época de baixeza e picardia, que hoje porém, já não me espanta, porque depois disso tenho aqui mesmo testemunhado mais negras misérias, haveis de estar lembrados que os dois partidos em contenda, para mostrar qual deles tinha por si a maioria, levaram à imprensa, com uma ingenuidade infantil, somente a apreciação do número dos engenhos! … — “Há mais engenhos do lado dos liberais”, — diziam estes.— “Nem tantos, como alegam” — diziam os conservadores, e acrescentavam: — “Se os liberais têm alguns engenhos a mais, os dos conservadores, em compensação, são mais extensos, mais povoados, mais ricos…” — Eis aí.


Quereis melhor? Se isto não era uma questão de fábrica, isto é, de maior número de bois, cavalos e escravos, inclusive os cidadãos votantes, já sei que as palavras perderam o seu sentido, ou eu perdi o uso da razão. É pois evidente que, pela própria confissão das partes, está criada na Escada uma açucarocracia, a qual se julga com direito à posse de todos aqueles que vieram tarde e não encontraram um pouco de terra para chamarem sua, e dentro desse domínio manejarem sem piedade o bastão da prepotência.


Tudo isto, repito, senhores, é de uma clareza solar; de tudo isto estamos inteirados por amarga experiência. Porém, é certo que não devemos desanimar. O processo da ação do povo, se me é lícito assim expressar-me, para adquirir a posição perdida, é sumário: uma espécie de interdito unde vi, em matéria política. Ainda não passou ano e dia para intentá-lo, se é que o povo não prefere usar do meio que as leis permitem aos esbulhados da posse de coisas materiais, e que seria absurdo não permitir igualmente aos esbulhados de coisas mais sagradas que uma jeira de terreno, se é que já não chegamos aquele estado de vilania e transtorno dos conceitos morais, em que a vida é preferível à honra, e a propriedade preferível à vida. Esta linguagem eriça cabelos; a mais de um amigo da ordem pode ela parecer o cúmulo da extravagância; e todavia senhores, este meu vinho tem água, não é dele que se costuma beber nos festins da democracia. Seja, porém, como for, não hesito em declará-lo: o povo da Escada, a quem ora me dirijo, deve pôr-se fora da tutela. Tomando conta de si mesmo, e contestando aos poderosos a faculdade de disporem desta cidade, como de uma filial das suas fazendas, cumpre-lhe erguer-se à altura de um poder, com que eles devem contar, em bem ou em mal, e não continuar a ser um algarismo mínimo, um milésimo de força, cujo erro não lhe perturba os cálculos. Ao povo da Escada importa convencer-se que ele não tem para quem apelar, senão para o seu próprio gênio, que não é o da resignação e da humildade. Importa convencer-se que ninguém se lembra dele, ninguém por ele se interessa. Os magnatas do município, por mais que finjam o contrário, não escapam à censura de serem todos acordes no tratar com desprezo a esta localidade. Sirva de prova o fato extraordinário de não haver um só proprietário do termo, qualquer que seja o seu grau de riqueza, que possua dentro da cidade um prédio, digno de si, relativo à sua posição e à influência que por ventura queira ter. Não há um único sequer, que tenha aqui edificado, nem em grande nem em pequena escala. Muitos até existem, que contam nos dedos de uma só das mãos as vezes que têm vindo à sede do município, e ainda fica dedo desocupado para uma pitada de rapé.

Este fenômeno singular e significativo, creio eu, não se repete em outro lugar, pelo menos, com tão claro propósito de desdém votado à população da cidade. Seria fútil e desprezível a objeção que me fizessem, alegando que as despesas da edificação da nova matriz correram quase todas por conta desses mesmos proprietários. Nenhuma dúvida; porém, o que importa? Uma questão de bigotismo, senão antes de alardo pecuniário, ou de simples consideração ao burel de um capuchinho.


Não vos iludais, senhores. Em assunto de popularidade, de homens dedicados à causa popular, a experiência está feita; e sou tentado a dizer-vos, como o francês H. Beyle: — j´invite á se méfier de tout le monde, même de moi… — Aconselho-vos que desconfieis de todo mundo, até de mim mesmo. Confiai somente em vós, que releva levantardes a fronte, nos vossos esforços, que é mister multiplicar, no vosso próprio caráter, que é preciso reformar.


O município da Escada, e como ele, a província, e como a província, o país inteiro, anseia pela vinda de qualquer grande acontecimento. Não sei qual ele seja, mas ele há de vir.


Não sou judeu para crer no Messias, nem tenho a ingenuidade dos primitivos cristãos para acreditar na parousia; mas sou filósofo em confiar nas leis da história, que regulam o destino dos povos; e essas hão de também cumprir-se entre nós. Os cometas não percorrem uma mesma órbita, e as nações não seguem um mesmo caminho. Do país em geral se ergue como que um sussurro de imprecações e lamentos, é o naufrágio que se aproxima. Nada de bater nos peitos, nem de pedir misericórdia. Ninguém nos socorrerá, se o socorro não vier de nós mesmos. Abramos mão de nossos prejuízos, de nossas reservas, de nossos temores, e sejamos um povo livre.


Sim, meus senhores, é a liberdade que nos falta: não aquela que se exerce em falar, bradar, cuspir e macular o próximo, porque esta temo-la de sobra, mas aquela que se traduz em atos dignos e meritórios. Informa-nos escritor competente que no pórtico da nova casa do parlamento alemão existe, entre outros, o retrato de um célebre deputado liberal, Carlos Mathy, debaixo do qual se leem as seguintes palavras suas: A liberdade é o preço da vitória que adquirimos sobre nós mesmos. É esta, senhores, que deve provocar os nossos anhelos, é desta que carecemos: o preço da vitória adquirida, não tanto sobre um governo maléfico e execrável, como antes sobre nós mesmos, sobre os nossos desvarios, e a nossa facilidade em deixarmo-nos intimidar, ou seduzir, pela tentação dos seus demônios.


Entretanto, eu tenho, neste sentido, sombrias apreensões. Talvez já seja tarde, para consegui-lo. Notai bem: tarde, e não cedo. Não pertenço a escola dos teoréticos pacientes, que julgam o povo ainda não maduro para a liberdade. Como se fosse possível aprender a nadar sem meter-se dentro d´água, ou aprender a equitação sem montar a cavalo! Dislates iguais aos dos que querem que o povo passe por um tirocínio da liberdade, sem aliás exercê-la.


O que me causa apreensões, é o contrário disto. Receio que conosco suceda o que se deu com a mais robusta encarnação do bizantinismo moderno: o império de Napoleão III.


Este infeliz regime teve duas fases: uma de marcha em linha reta, na senda do despotismo, sem transigir, nem tergiversar — foi a época da ascensão ao seu apogeu; outra de decadência e enfraquecimento — foi a época das concessões e tentativas liberais, que durou até a queda final do império e o desastre da nação.


De 1852 a novembro de 1860, que é a data do primeiro decreto, onde o despotismo dignou-se de encurtar o diâmetro, e daí, de concessão em concessão, isto é, de fraqueza em fraqueza até 1870, quero dizer até Sedan !… Semelhante fato, senhores, confirma a seguinte verdade: — que qualquer governo corre o risco de cair, quando mente aos seus princípios e torna-se incoerente — assim como, que uma nação, por força do absolutismo, pode chegar ao estado de incapacidade para um regime livre. Desconfio que o nosso Libertas quae sera tamen… será de todo inútil. O Brasil já faz a impressão de um menino de cabelos brancos. Estamos estragados. Quando aprouver ao imperador conceder-nos um pouco mais de ar, não será fora de tempo, não estará já tudo perdido, até mesmo a honra? Tenho medo!… Nem há razão para estranhardes o paralelo. Se existe alguma diferença, é só de desvantagens para o nosso lado. Poucos anos antes da queda do segundo império, dizia dele um pensador político da Alemanha, que sem embargo da constituição, sem embargo de um senado e corpo legislativo, o que tudo não passava de maquinismo burocrático, o governo napoleônico não era mais do que um puro absolutismo, temperado pelo temor das bombas de Orsini.


Muito bem. O escritor disse a verdade, não, porém, toda a verdade. Não era somente o temor das bombas de Orsini que temperava o governo de Napoleão, o qual se pudera chamar de o socialismo no trono. Era também o amor das classes necessitadas, a continua atenção prestada aos interesses do quarto estado, ponto este que sempre constituiu o pensamento diretor do novo bonapartismo.


Sim, o governo absoluto de Napoleão era ainda temperado pelas sociétés de secours mutuels, pelas cités ouvriéres, pela société industrielle de Mulhouse; era ainda temperado pelos fourneaux do príncipe imperial, que forneciam comida aos trabalhadores por baratíssimo preço, pelos banhos gratuitos da capital; pelo Grand Cafe Parisien, levantado à porta de S. Martin, confinando com os quarteirões dos operários, no qual o homem pobre, por poucos soldos, à luz de candelabros e num divã de veludo, podia tomar o seu petit verre. Entretanto, nós outros o que é que temos? Também um puro absolutismo, apenas, porém, temperado… pela batalha de Avahy, pela Fosca, pela bancarrota do Estado, pela corrupção dos ministros, pela miséria do povo e as viagens do rei. Ou será que vós ao menos vós, cidadãos da Escada, tendes motivos de vos julgardes felizes? Vós que dificilmente adquiris o pão quotidiano, com o suor do vosso rosto, vós a quem é aplicável, bem como à maioria do país, o que uma vez disse Gladstone da sua Inglaterra: — Em nove casos de dez, a vida não é mais do que um combate pela existência?! E que combate! Um combate com a natureza, que não raro se vos mostra cruel; um combate com a sociedade, que se vos opõe não menos madrasta; um combate com o capital, que vos olha desconfiado, e não se digna de animar-vos; um combate com o Estado, que multiplica os impostos, aumenta as dificuldades, toma as vistas do futuro; e desta quádrupla luta é que tem de sair os meios de viver e educar os vossos filhos!… Eu não sou socialista: não encaro o número dos que cuidam poder, com um traço de pena, extinguir os males humanos, quase irremediáveis. Mas também não faço coro com a escola de Manchester; não penso que a pobreza é sempre o castigo da preguiça econômica, e que, como tal, qualquer medida de socorro ou alívio para ela, importa premiar os inertes e preguiçosos. Alto e bom som se diz que a Escada é riquíssima, que é um dos mais ricos municípios da província. Quero crer que seja assim. Porém não é estranhável que sendo o município tão abastado, ofereçam aliás os habitantes da cidade, por este lado, aspecto pouco lisonjeiro? Para as vinte mil cabeças da população do termo, esta cidade contribui com três mil, pouco mais ou menos. Sobre estas três mil almas, ou melhor, sobre estes três mil ventres, é probabilíssimo o seguinte cálculo:


90 por cento de necessitados, quase indigentes.

8 por cento dos que vivem sofrivelmente.

1 1/2 por cento dos que vivem bem.

1/2 por cento de ricos em relação.

Semelhante quadro, que pode pecar por excesso de cor de rosa, não é todavia apto para dar do nosso estado econômico outra ideia, senão a de um pauperismo medonho, quando muito, moderado pela esperança de uma sorte de loteria. Nesta triste conjuntura, o que faz o Estado, o que faz a província, o que faz a comuna, em favor da população, para diminuir-lhe os obstáculos e facilitar-lhe o trabalho? Nada mais nem menos do que sobre o costado da besta, já caída de fadiga, arrumar mais alguns quilos, afim de ajudá-la a erguer-se. O Estado e a Província sugam anualmente deste Município, sem falar de outros canais, e só do que corre pelas duas coletorias, de 25 a 30 contos de réis. Eis o que vai no refluxo. Vejamos agora o que vem no fluxo: 10 porcento dessa quantia, que se gasta com a magra instrução pública; 15 porcento, com a justiça e seus apêndices; 20 porcento, com a polícia; 1 a 2 porcento, com o artigo religião; e o resto, a saber, mais da metade, vai perder-se em outras plagas, sendo ainda para notar que as despesas com a polícia local são as únicas que trazem um resultado prático e sensível, pois que o cidadão, em muitas ocasiões, recebe no lombo a benéfica pancada do refle. Por sua vez a Municipalidade exercita, com o mesmo zelo, as suas funções exaurientes, e não se sabe, em última análise, em que se emprega a sua receita. Por toda parte, pois, e sob todos os pontos de vista, os mesmos sintomas mórbidos, as mesmas ânsias, a mesma angústia. As consciências como que perderam o centro de gravidade moral, e balançam-se inquietas em busca de um apoio. A instrução é quase nula, à medida que também é nulo o gosto de instruir-se; e temos em casa o exemplo. Acabais de ouvir que o dispêndio feito com as escolas desta cidade é muito inferior ao que se faz com a polícia: sinal evidente de atraso intelectual. Não limita-se a isso. Segundo a opinião de competentes, a proporção regular entre o número de habitantes de um lugar e o das pessoas que devem frequentar a escola, é de 12 a 15 porcento, se esse lugar quer ter o título de adiantado. Ora, dos três mil espíritos, que dissemos haver aqui dentro, 4 por cento e alguns quebrados é que se encontra realmente de frequência em cinco casas de instrução que existem, sendo somente 7 por cento o número dos matriculados !… Vê-se pois, que ainda entre nós há uma certa má suspeita contra a arte diabólica de ler e escrever, para servir-me da irônica expressão do italiano Aristides Gabelli.


Juntai esse aos demais fenômenos da nossa decadência.


O Club Popular Escadense, meus senhores, não nutre a pretensão, que seria ridícu1a, de vir levantar um dique de resistência contra a corrente de tantos males, cujo ligeiro esboço acabo de fazer; mas tem o intuito de incutir no povo desta localidade um mais vivo sentimento do seu valor, de despertar-lhe a indignação contra os opressores, e o entusiasmo pelos oprimidos. E há momentos, já disse com razão alguém, há momentos, em que o entusiasmo também tem o direito de resolver questões…


Tenho concluído.






23 de novembro de 2012

A controvérsia dos fins que justificam os meios

Carlos U Pozzobon

O julgamento do mensalão e a condenação dos envolvidos acendeu a discussão sobre uma questão que já tem quase um século. Um dos debates históricos mais importantes sobre a questão dos fins que justificam os meios foi travado por intelectuais como consequência do destino da revolução russa. Dois amigos participaram desse debate que os antagonizou e quase os separou: Victor Serge e Leon Trotsky.

Serge, nascido na Bélgica de pais russos emigrados e empobrecidos, foi um revolucionário de primeira hora nos acontecimentos de 1919 na Rússia. Expurgado e preso por Stalin, foi salvo da prisão por ninguém menos que André Gide, em sua viagem à URSS em 1936, e pelos acontecimentos subsequentes (ver artigo sobre André Gide neste blog).

Trostky havia deixado a Rússia em 1927, perseguido por Stalin em uma série de acontecimentos espetaculares. Ambos os amigos mantiveram correspondência de 1936 a 1940, a qual foi recolhida em museu da França e analisada por Richard Greeman.

A questão central para Serge era o destino totalitário da revolução russa. A revolução, que abrira as portas para a brutalidade, haveria de dar lugar ao mais astucioso e inescrupuloso de seus conspiradores, que para manter-se no poder liquidaria com todos os seus camaradas de forma constante e cruel. Para ele, a revolução perdera-se em 1919 e garantira seu destino burocrático na revolta do Kronstadt, em 1921. Era uma sublevação dos marinheiros de uma base naval situada a 55 km de São Petersburgo contra a carestia imposta pela revolução a Moscou e às demais cidades da grande Rússia. Para abastecer as forças revolucionárias, os dirigentes bolcheviques haviam confiscado os suprimentos que chegavam à cidade, provocando escassez generalizada de alimentos e forçando a população a um estado permanente de descontentamento e protestos.

Serge era mais intelectualizado, europeizado, e menos político, enquanto Trotsky era mais político do que intelectual, e mais russo do que europeu. Para Serge, os vícios do autoritarismo, fracionalismo, intrigas, manobras, estreiteza de visão e intolerância eram características do movimento revolucionário russo, que teriam se estendido até mesmo para a IV Internacional, afirmações que teriam ofendido Trotsky, especialmente para seu movimento recentemente criado. Não rompeu com Serge, devido à velha amizade, mas suas relações ficaram abaladas até sua morte em 1940.

A Oposição russa, no exílio, teve que analisar os acontecimentos que levaram aos resultados desastrosos da revolução russa. Os debates que empreenderam mostram como a política dos fins que justificam os meios danou todo o movimento comunista internacional, em todos os países e em todos os continentes em diferentes épocas, e sepultou o marxismo como alternativa de mudança social para sempre.

O que se sabe é que o descontentamento com a revolução russa era debitado na conta do “contra-revolucionário”. Com semelhante disposição sectária, a repressão foi se intensificando, e, para ser eficaz, instrumentalizando em organismo do novo estado com uma impunidade garantida pelo turbilhão dos acontecimentos, onde o ontem era rapidamente esquecido e posto de lado pela avalanche dos atropelos do novo dia.

Assim, o movimento dos marinheiros foi visto como contra-revolucionário, mas nada mais era do que um levante contra as condições de vida impostas pela revolução, que haveria de criar sua NEP (Nova Política Econômica), com a finalidade de aliviar a escassez de alimentos, justamente poucos dias depois de ter metralhado os insurgentes de Kronstadt. Para Victor Serge, estava mais do que evidente que o erro de Lênin abrira as comportas da total indiferença com os princípios do movimento operário que havia moldado o movimento revolucionário. Ademais, era comum a tentativa de justificação do banho de sangue com as mentiras habituais. Zinoviev, então membro do grupo dirigente da revolução, mentiu ao afirmar que o Kronstadt havia sido tomado por um general branco chamado Kozlowski, que estaria no comando dos marinheiros, para justificar o ataque. Emma Goldman e Alexandre Berkman, um casal de anarquistas americanos que estava presente na revolução e que mantinha contato com Serge, propô-se a mediar o conflito e foi rejeitada. Em seu “Minha Desilusão com a Rússia”, Emma Goldman analisa os acontecimentos, mostrando claramente que as advertências de que a invasão da fortaleza de Kronstadt iria manchar o movimento comunista internacional para sempre, não foram respeitadas pela direção, e Trotsky pessoalmente comandou o cerco e a invasão, com resultados avassaladores para qualquer espírito revolucionário que tivesse presenciado a sanha sanguinária dos bolcheviques. Não só foram feitas dezenas de execuções depois dos amotinados se renderem, como os marinheiros prisioneiros foram levados e executados semanas a fio sem qualquer clemência pelo exército de Trotsky.

A controvérsia do assunto vai longe. Quem comandava a polícia secreta bolchevique, chamada de Tcheca, era nada mais nada menos que o funesto Dzerjinski, que dizia não ter havido nenhum massacre. Trotsky se justificou atribuindo aos rebeldes o costumeiro chavão de serem pequeno-burgueses. Mas, para Serge, a questão era clara: a degeneração do bolchevismo já havia se iniciado ainda antes deste massacre, e mesmo achando que em linhas gerais o movimento estava certo, só se deu conta que a revolução estava condenada ao totalitarismo tempos depois, quando já era tarde. Em vez de estimularem a democracia entre os trabalhadores e a liberdade de pensamento, os bolcheviques partiram para a repressão às heresias, criando um sistema monolítico de partido único e uma estreita ortodoxia com o pensamento marxista. Haviam fechado 95% dos jornais da Rússia e a centralização do poder avançava em todos os ramos de atividades.

Estas controvérsias estavam presentes nos anos 30, especialmente porque Victor Serge era o tradutor para o francês do livro de Trotsky, chamado Sua Moral e a Nossa. Neste livro Trotsky defendia que “os fins justificavam os meios”, porém que certos meios são incompatíveis com a meta socialista de liberação humana. A publicação da obra na França veio acompanhada de uma resenha em que os argumentos de Trotsky eram ironizados com tiragens do tipo: “matar reféns adquire diferentes significados, conforme a ordem seja dada por Stalin ou Trotsky ou pela burguesia”.

Ao saber disso Trotsky ficou extremamente irritado a ponto de atribuir a frase ao próprio Serge, e num ímpeto escreveu um artigo chamando sem citar seu nome de “moralista e sicofanta contra o marxismo” e “vendedor ambulante de indulgências a seus aliados socialistas, ou o chupim em ninho estranho”. Depois de cartas de desculpas e subsequente amortecimento dos ânimos entre velhos amigos, Richard Greeman sintetizou: “deixando de lado a abusiva atribuição de Serge a um ponto de vista que não era seu, a lógica de Trotsky era perfeita. A luta de classes e sua expressão suprema, a guerra civil, é por necessidade brutal e destrutiva. A única questão moral que importa é ‘de que lado estás?’: do lado dos reacionários e exploradores que buscam preservar seus privilégios, ou do lado dos trabalhadores que lutam para dar a luz a uma nova sociedade? Tratar de adotar uma posição intermediária e criticar as ações dos revolucionários desde um ponto de vista da moralidade abstrata (‘matar é errado’) era absurdo. Cada bando usará seus meios à disposição para ganhar. Os que oscilam entre os dois campos pregando a moralidade só terão êxito impondo a moralidade desenhada para mantê-los passivos e pacientes em seus sofrimentos. Tal moralismo, arguia Trotsky... era uma ponte para a reação”.

Esta lógica poderia ser muito natural para o espírito revolucionário da época, mas ela não explica quase nada: novamente vem a questão reformulada com novo enfoque: se os fins são justificados pelos meios, quais são os meios que não podem ser usados para que não comprometam os fins? Ou melhor, quais os meios que destroem os fins?

Neste ponto, vendo em retrospectiva, Serge dizia que a criação da Tcheca em 1918 era antissocialista e ia contra a classe operária. Tinham criado o marco institucional sobre o qual Stalin iria galgar para estabelecer sua ditadura contra a revolução e os revolucionários. Mais que moral, o problema era político-institucional, histórico, mas Trotsky não se dava por vencido:

“Os julgamentos públicos são possíveis somente em um regime estável. A guerra civil é uma condição de extrema instabilidade da sociedade e do Estado. Assim como é impossível publicar nos periódicos os planos do Estado Maior, também é impossível revelar em julgamentos públicos as condições e circunstâncias das conspirações, já que estas se acham ligadas intimamente com o curso da guerra civil. Os julgamentos secretos, não há dúvida, aumentam enormemente as possibilidades de erro. Isto significa somente, podemos conceder rapidamente, que as circunstâncias da guerra civil não são muito favoráveis para o exercício da justiça imparcial”.

Serge rebateu dizendo que os erros da Tcheca de nenhum modo eram excessos inevitáveis que podiam ser atribuídos às condições da guerra civil. Somente um pequeno número de casos julgados tinha a ver com conspirações, e inclusive estes casos podiam ser conduzidos por cortes regulares, celebrando-se ‘in camera’, isto é, em confidencialidade, quando fosse necessário. A maioria dos casos reprimidos com tortura, execução e espancamentos, quando não fuzilamentos sumários praticados pela Tcheca, estava relacionado à indisciplina, protestos, opiniões contra o governo, diferenças ideológicas, demonstrações que acabavam em uma repressão completamente descabida. Os acusados não tinham direito à defesa, a serem ouvidos nem vistos. Com estas condições, tudo o que caía na rede era considerado conspiração, espionagem ou o que estivesse na ordem do dia. Ou seja, estas mesmas técnicas foram usadas mais tarde para destruir os velhos revolucionários e tudo o que parecesse contra-revolucionário por Stalin.

“Não teria aumentado sua própria popularidade a revolução, se desmascarasse publicamente seus inimigos para que todos vissem?” perguntava-se Serge. Trotsky respondia que em uma revolução o estado das massas é cambiante e, portanto, o democratismo pode ser fatal para a vitória. Mas Serge devolvia o argumento dizendo que o estado do grupo dirigente também é cambiante e que ele pode justificar cada vez mais repressão com base na aceitação de fatos passados, criando uma espiral de violência sem controle. “O partido em 1921 não era mais o partido de 1917”, dizia ele. A conclusão a que se chega sobre os eventos da revolução russa é que se a ditadura (do proletariado) preservava a Rússia dos perigos da contra-revolução “burguesa”, também assentava as bases para a contra-revolução burocrática que iria acabar com ela. Ou se confiava nas massas, e teria que administrar o ambiente volúvel e caótico da insurgência, incluindo a perda de supremacia política, ou se abririam as comportas para o totalitarismo – e foi o que aconteceu. A revolução fracassou por não saber lidar com o próprio povo a quem queria salvar. E as bases para a derrota foi a adoção de quaisquer meios para fins que nunca chegaram. A permanência do czarismo não teria sido tão danosa para o futuro da Rússia comparado com a destruição humana causada pelo bolchevismo. Pelo talento conhecido e comprovado do povo russo, o país estava destinado a ser um dos maiores artífices da evolução tecnológica, cultural e artística do século XX. A revolução não só colocou tudo a perder, como transformou um povo inteiro em zumbis de uma tirania que consumiu 5 gerações.


Minha Desilusão na Rússia

13 de novembro de 2012

Paz: Dostoievsky

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Dostoievski: el diablo y el ideólogo

Octavio Paz

Hace un siglo, el 28 de enero de 1881, murió Fedor Dostoievski. Desde entonces su influencia no ha cesado de crecer y extenderse; primero en su patria ― ya había alcanzado en vida la celebridad ―, después en Europa, América y Asia. Esta influencia no ha sido exclusivamente literaria sino espiritual y vital: varias generaciones han leído sus novelas no como ficciones sino como estudios sobre el alma humana y cientos de miles de lectores en todo el mundo han conversado y discutido silenciosamente con sus personajes, como si fuesen viejos conocidos. Su obra ha marcado a espíritus tan diversos como Nietzsche y Gide. Faulkner y Camus; en México dos escritores lo leyeron con pasión, sin duda porque pertenecían a su misma familia intelectual y se reconocían en muchas de sus ideas y obsesiones: Vasconcelos y Revueltas. Es (o fue) un autor preferido por los jóvenes: todavía recuerdo las conversaciones interminables que sostenía, al finalizar el bachillerato, con algunos compañeros de clase, en caminatas que comenzaban al anochecer en San Ildefonso y terminaban, pasada la medianoche, en Santa María o en la Avenida de los Insurgentes, en busca del último tranvía. Iván y Dimitri Karamazov peleaban en cada uno de nosotros.

Nada más natural que aquel fervor: a pesar del siglo que nos separa, Dostoievski es nuestro gran contemporáneo. Muy pocos escritores del pasado poseen su actualidad: leer sus novelas es leer una crónica del siglo XX. Pero su actualidad no es la de la novedad intelectual o literaria. Por sus gustos y sus preocupaciones estéticas es un escritor de otra edad; es prolijo y, si no fuese por su humor, extrañamente moderno, muchas de sus páginas serían tediosas. Su mundo histórico no es el nuestro. El Diario de un escritor tiene muchas páginas que me repugnan por su esclavismo y antisemitismo. Sus tiradas antieuropeas me recuerdan, aunque son más inspiradas, los desahogos y resentimientos del nacionalismo mexicano e hispanoamericano. Su visión de la historia a veces es profunda pero también confusa: carece de esa comprensión del acontecimiento, a un tiempo rápida y aguda, que nos deleita, por ejemplo, en un Stendhal. Tampoco tuvo la mirada de un Tocqueville, que traspasa la superficie de una sociedad y de una época. No fue, como Tolstoy, un cronista épico. No nos cuenta lo que pasa sino que nos obliga a descender al subsuelo para que veamos qué es lo que está pasando realmente: nos obliga a vernos a nosotros mismos. Dostoievski es nuestro contemporáneo porque adivinó cuáles iban a ser los dramas y conflictos de nuestra época. Y lo adivinó no porque tuviese el don de la doble vista o fuese capaz de prever los sucesos futuros sino porque tuvo la facultad de penetrar en el interior de las almas.

Fue uno de los primeros ― tal vez el primero ― que se dio cuenta del nihilismo moderno. Nos ha dejado descripciones de ese fenómeno espiritual que son inolvidables y que, todavía, nos estremecen por su penetración y su misteriosa exactitud. El nihilismo de la Antigüedad estaba emparentado con el escepticismo y el epicureísmo; su ideal era una noble serenidad: alcanzar la ecuanimidad ante los accidentes de la fortuna. El nihilismo de la India antigua, que tanto impresionó a Alejandro y a sus acompañantes, según cuenta Plutarco, era una actitud filosófica no sin analogía con el pirronismo y que terminaba en la contemplación de la vacuidad. El nihilismo era, para Nagarjuna y sus seguidores, la antesala de la religión. Pero el nihilismo moderno, aunque también nace de una convicción intelectual, no desemboca ni en la impasibilidad filosófica ni en la beatitud de la ataraxia; más bien es una incapacidad para creer y afirmar algo, una falla espiritual más que una filosofía.

Nietzsche imaginó el advenimiento de un "nihilista completo", encarnado en la figura del Superhombre, que juega, danza y ríe en los giros del Eterno Retorno. La danza del Superhombre celebra la insignificancia universal, la evaporación del sentido y la subversión de los valores. Pero el verdadero nihilista, como lo vio con mayor realismo Dostoievski, no danza ni ríe: va de aquí para allá ― alrededor de su cuarto o, es igual para él, alrededor del mundo ― sin poder jamás descansar pero también sin poder hacer nada. Está condenado a dar vueltas, hablando con sus fantasmas. Su mal, como el de los libertinos de Sade o la acidia de los monjes medievales, atacados por el demonio de mediodía, es una continua insatisfacción, un no poder amar a nadie ni a nada, una agitación sin objeto, un disgusto ante sí mismo ― y un amor por sí mismo. El nihilista moderno, Narciso desdichado, mira en el fondo del agua su imagen rota en pedazos. La visión de su caída lo fascina: siente náuseas ante sí mismo y no puede apartar los ojos de sí. Quevedo adivinó su estado en dos líneas difíciles de olvidar:

las aguas del abismo
donde me enamoraba de mí mismo.

Stavrogin, el héroe de Demonios (aunque sea menos literal, la antigua traducción: Los poseídos, era más exacta), escribe a Daria Pavlovna, que lo amaba: "He puesto a prueba, en todas partes, mi fuerza ... Durante esas pruebas, ante mí mismo o ante los otros, esa fuerza se ha revelado siempre sin límites. Pero ¿a qué aplicarla? Esto es lo que nunca supe y lo que continúo sin saber, a pesar de todo el ánimo que quieres darme ... Puedo sentir el deseo de realizar una buena acción y esto me da placer; sin embargo, experimento el mismo placer ante el deseo de cometer una maldad ... Mis sentimientos son mezquinos, nunca fuertes ... Me lancé al libertinaje ... pero no amo ni me gusta el libertinaje... ¿ Crees, porque me amas, que podrás darle algún propósito a mi existencia? No seas imprudente: mi amor es tan mezquino como yo ... Tu hermano me dijo un día que aquel que ya no tiene lazos con la tierra, pierde inmediatamente a sus dioses, es decir, a sus designios. Se puede discutir de todo indefinidamente pero yo sólo puedo negar, negar sin la menor grandeza de alma, sin fuerza. En mí, la negación misma es mezquina. Todo es fofo, blanduzco mole. El generoso Kirilov no pudo soportar su idea y se voló la tapa de los sesos estourou os miolos ... Yo nunca podría perder la razón ni creer en una idea, como él ... Yo nunca, nunca, podría darme un tiro en la sien." ¿Cómo definir a esta situación? Desánimo, falta de ánima. Stavrogin: el desalmado.

Sin embargo, después de haber escrito esa carta, Stavrogin se ahorca en el desván. Ultima paradoja: el cordón era de seda y el suicida, previa y cuidadosamente, lo había untado de jabón. La grandeza del nihilista no reside ni en su actitud ni en sus ideas sino en su lucidez. Su claridad lo redime de lo que Stavrogin llamaba su bajeza o mezquindad. ¿O el suicidio, lejos de ser una respuesta, es otra prueba? Si es así, es una prueba insuficiente. No importa: el nihilista es un héroe intelectual pues se atreve a penetrar en su alma dividida, a sabiendas de que se trata de una exploración sin esperanza. Nietzsche diría que Stavrogin es un "nihilista incompleto": le falta el saber del Eterno Retorno. Pero quizá sea más exacto decir que el personaje de Dostoievski, como tantos de nuestros contemporáneos, es un cristiano incompleto. Ha dejado de creer pero no ha podido substituir las antiguas certidumbres por otras ni vivir a la intemperie, sin ideas que justifiquen o den sentido a su existencia. Dios ha desaparecido, no el mal. La pérdida de las referencias ultraterrenas no extinguen al pecado: al contrario, le dan una suerte de inmortalidad. El nihilista está más cerca del pesimismo gnóstico que del optimismo cristiano y su esperanza en la salvación. Si no hay Dios no hay redención de los pecados pero tampoco hay abolición del mal: el pecado deja de ser un accidente, un estado y se transforma en la condición permanente de los hombres. Es un agustinismo al revés: el mal es ser. El utopista quisiera traer el cielo a la tierra, hacernos dioses; el nihilista se sabe condenado de nacimiento: la tierra ya es el infierno.

El retrato del nihilista, ¿es un autorretrato? Si y no: Dostoievski quiere escapar del nihilismo no por el suicidio y la negación sino por la afirmación y la alegría. La respuesta al nihilismo, enfermedad de intelectuales, es la simplicidad vital de Dimitri Karamazov o la alegría sobrenatural de Aliocha. De una y otra manera, la respuesta no está en la filosofía y las ideas sino en la vida. La refutación al nihilismo es la inocencia de los simples. El mundo de Dostoievski está poblado de hombres, mujeres y niños a un tiempo cotidianos y prodigiosos. Unos san angustiados y otros sensuales, unos cantan en la abyección y otros se desesperan en la prosperidad. Hay santos y criminales, idiotas y genios, mujeres piadosas como un vaso de agua y niños que son ángeles atormentados por sus padres. (¡Qué opuestas visiones de la niñez la de Dostoievski y la de Freud! Mundo de criminales y justos: para unos y otros están abiertas las puertas del reino de los cielos. Todos pueden salvarse o perderse. El cadáver del padre Zósima despide un tufo exala um cheiro de corrupción, revelador de que, a pesar de su piedad, no murió en olor de santidad; en cambio, al recordar a los bandidos y criminales que fueron sus compañeros de prisión en Siberia, Dostoievski dice: "allá el hombre, de pronto, escapa a toda medida". El hombre, "criatura improbable", puede salvarse en cualquier momento. En esto el cristianismo de Dostoievski está cerca de las ideas sobre la libertad y la gracia de Calderón, Tirso y Mira de Amescua.

Para nosotros, los santos y las prostitutas, los criminales y los justos de Dostoievski poseen una realidad casi sobrehumana; quiero decir, son seres insólitos y de otro tiempo. Un tiempo en vías de extinción: pertenecen a la era preindustrial. En este sentido Marx fue más lúcido pues previó la disgregación de los vínculos tradicionales y la erosión de las antiguas formas de vida por la doble acción del mercado capitalista y la industria. Pero Marx no adivinó el surgimiento de un nuevo tipo de hombres que, aunque llamándose sus herederos, consumarían en el siglo XX la ruina de los sueños y aspiraciones socialistas. Dostoievski fue el primero en describir esta clase de hombres. Nosotros los conocemos muy bien pues en nuestros días se han convertido en legión: son los sectarios y los fanáticos de la ideología, los prosélitos de los Stavrogin y los Iván. Su prototipo es Smerdiakov, el parricida, discípulo de Iván.

Los sectarios no han heredado de los nihilistas la lucidez sino la incredulidad. Mejor dicho, han convertido a la incredulidad en una nueva y más baja superstición. Dostoievski los llama endemoniados aunque, a diferencia de lván y de Stavrogin, no tienen conciencia de que están poseídos por los diablos. Por eso los compara con los cerdos del Evangelio (San Lucas, VII, 32-36). Al perder su antigua fe, veneran ídolos falsamente racionales: el progreso, las utopías sociales y revolucionarias. Han abjurado de la religión de sus padres, no de la religión: en lugar de Cristo y la Virgen adoran dos o tres ideas de manual. Son los antepasados de nuestros terroristas. El mundo de Dostoievski es el de una sociedad enferma de esa corrupción de la religión que llamamos ideología. Su mundo es la prefiguración del nuestro.

Dostoievski fue revolucionario en su juventud. Por sus actividades fue encarcelado. condenado a muerte y después perdonado. Pasó varios años en Siberia ― los campos de concentración de la Rusia actual son una herencia perfeccionada y amplificada del sistema de represión zarista ― y a su regreso rompió con su pasado radical. Fue conservador, cristiano, monárquico y nacionalista. Sin embargo, sería un error reducir su obra a una definición ideológica. No fue un ideólogo ― aunque las ideas tengan una importancia cardinal en sus novelas ― sino un novelista. Uno de sus héroes, Dimitri Karamazov, dice: Debemos amar más a la vida que al sentido de la vida. Dimitri es una respuesta a Iván, pero no es la respuesta: Dostoievski no opone una idea a otra sino una realidad humana a otra. A diferencia de Flaubert, James o Proust, las ideas son reales para él, pero no en sí mismas sino como una dimensión religiosa de la existencia. Las únicas ideas que le interesaron fueron las ideas encarnadas. Algunas vienen de Dios, es decir, de la profundidad del corazón; otras, las más, vienen del diablo, es decir, del cerebro. Como el alma de los clérigos medievales, la conciencia del intelectual moderno es un teatro de batalla. Las novelas de Dostoievski, desde esta perspectiva, son parábolas religiosas y su arte está más cerca de San Pablo, San Agustín y Pascal que el realismo moderno. Al mismo tiempo, por el rigor de sus análisis psicológicos, su obra anticipa a Freud y, en cierto modo, lo trasciende.

Debemos a Dostoievski el diagnóstico más profundo y completo de la enfermedad moderna: la escisión psíquica, la conciencia dividida. Su descripción es, simultáneamente, psicológica y religiosa. Stavrogin e Iván padecen visiones: ven y hablan con espectros que son demonios. Al mismo tiempo, como ambos son modernos, atribuyen esas apariciones a trastornos psíquicos: son proyecciones de su alma perturbada. Pero ninguno de los dos está muy seguro de esa explicación. Una y otra vez, en sus conversaciones con sus espectrales visitantes, se ven constreñidos a aceptar, con desesperación, su realidad: en verdad hablan con el diablo. La conciencia de la escisión es diabólica: estar poseído significa saber que el yo se ha roto y que hay un extraño que usurpa nuestra voz. ¿Ese extraño es el diablo o nosotros mismos? Cualquiera que sea nuestra respuesta, la identidad de la persona se escinde. Estos pasajes son alucinantes: las conversaciones de Iván con sus demonios están relatadas con gran realismo y como si se tratase de sucesos cotidianos. Abundan las situaciones absurdas y las reflexiones irónicas. Alternativamente el miedo nos hace reír y nos hiela la sangre. Experimentamos una fascinación ambigua: la descripción psicológica se transforma insensiblemente en especulación metafísica, esta en visión religiosa y, en fin, la visión en cuento que mezcla de modo inextricable lo sobrenatural y lo cotidiano, lo grotesco y lo abismal.

Los diablos de Dostoievski poseen una veracidad única en la literatura moderna. Desde el siglo XVIII los fantasmas de nuestros poemas y novelas son poco convincentes. Son personajes de comedia y la afectación de su lenguaje y de sus actitudes es, a un tiempo, pomposa e insoportable. Los de Goethe y Valéry son plausibles por su mismo carácter extremadamente intelectual y simbólico; también son aceptables los que de manera deliberada e irónica se presentan como ficciones fantásticas: el diablo de La mano encantada de Nerval o el delicioso Diablo enamorado de Cazotte. Pero los diablos modernos hacen todo lo posible por hacernos saber que vienen de allá, del mundo subterráneo. Son los parvenus de lo sobrenatural. Aunque los diablos de Dostoievski también son modernos y no se parecen a los antiguos demonios medievales y barrocos ― lascivos, astutos y un poco estúpidos ― no son literarios. Tienen una realidad clínica, por decirlo así. En esto reside, quizá, su gran descubrimiento: vio el parentesco oculto entre el mal y la enfermedad, entre la posesión y la reflexión. Son diablos que razonan y que, como si fuesen psicoanalistas, se empeñan en probar su inexistencia, su naturaleza imaginaria. Triunfan gracias a esos razonamientos irrefutables; Iván y Savrogin, dos intelectuales, no tienen más remedio que creerles: son verdaderamente el diablo pues solamente el diablo puede razonar así. Pero también estarían poseídos por el diablo si se aferrasen a la creencia de que se trata de meras alucinaciones de una mente enferma. En uno y otro caso, los dos están poseídos por la negación, esencia del demonio. Así se cumple el pensamiento que aterra a Iván: para creer en el diablo no es necesario creer en Dios.

Hay una especie inmune a la seducción del diablo: el ideólogo. Es el hombre que ha extirpado la dualidad. No conversa: demuestra, adoctrina, refuta, convence, condena. Llama a los otros camaradas pero jamás habla con ellos: habla con su idea. Tampoco habla con el otro que todos llevamos dentro. Ni siquiera sospecha que existe: el otro es una fantasía idealista, una superstición pequeño-burguesa. El ideólogo es el mutilado del espíritu: le falta la mitad de sí mismo. Dostoievski amaba a los pobres y a los simples, a los humillados y ofendidos pero nunca ocultó su antipatía hacia los que se decían sus salvadores. Le parecía absurda su "pretensión de querer liberar al hombre de la carga de la libertad". Carga terrible y preciosa. Los ideólogos han correspondido a su antipatía con otra no menos intensa. En una carta a su amiga Inés Armand, Lenin lo llama "el archimediocre Dostoievski". En otra ocasión dijo: "no pierdo el tiempo con esa basura". En la época de Stalin fue un autor casi prohibido y todavía hoy, en los círculos oficiales, es visto como reaccionario y un enemigo. A pesar de la hostilidad gubernamental, sus libros son los más leídos en Rusia, sobre todo entre los estudiantes, los intelectuales y, claro, los detenidos en los campos de concentración.

El tirano es arbitrario y caprichoso; contra los excesos de locos y desequilibrados como Nerón o Calígula, el remedio tradicional ha sido el puñal del regicida. Es un recurso inutilizable contra el despotismo ideológico, que es sistemático e impersonal: no se puede asesinar a una abstracción. Pero la ideología, que es inmune a las balas, no lo es a la crítica. De allí que el déspota ideológico no conozca, como forma de expresión, sino el monólogo y el discurso. La tiranía del ideólogo es el soliloquio de un profesor sádico y pedante, empeñado en hacer de la sociedad un cuadrado y de cada hombre un triángulo. Por esto, aparte de la permanente fascinación que sentimos ante su obra, Dostoievski es actual. Su actualidad es moral y política: nos enseña que la sociedad no es un pizarrón quadro-negro y que el hombre, criatura imprevisible, escapa a todas las definiciones y prisiones, incluso a las del tirano convertido en geómetra.


Publicado em Revista Vuelta nr. 52, março de 1981.